Conheça a história da 2 Mililitros Cia Teatral, companhia que pesquisa teatro para bebês, fundada por Thiane Lavrador e Júlia Mariano em 2017
Estamos sentados em círculo entre almofadas, banquinhos e o chão. A maioria dos meus colegas de plateia têm menos de 2 anos e me instigam a perceber as coisas como se fosse a primeira vez, como talvez seja para muitos deles. As risadas soltas; um choro aqui, outro ali; as reações exacerbadas e sem filtro me encantam tanto quanto o jogo quase mágico que as atrizes Thiane Lavrador e Júlia Mariano desenrolam na minha frente, contando a história de uma astrônoma irlandesa.
Escrevo esse texto na rebarba desse encantamento; ainda que já tenham passado meses desde que assisti à Os Céus e suas Histórias (2022), peça para bebês montada pela 2 Mililitros Cia Teatral e dirigida por Elenira Peixoto. Para muitos, pensar em teatro para bebês pode parecer um pouco inusitado, mas o formato tem crescido no Brasil graças aos esforços de artistas como Thiane e Júlia, fundadoras da 2 Mililitros. Tive o prazer de conversar com Thiane para me aprofundar um pouquinho nesse fascinante e encantador território e é essa conversa que compartilho aqui.
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Quando morou em Londres entre 2012 e 2017, a atriz entrou em contato com o teatro para bebês por meio da Unicorn Theatre, companhia pioneira em trabalhos para o público jovem no Reino Unido. Seu interesse surgiu de uma inquietação sobre como esse formato funcionava. Thiane ficou encantada depois de assistir a peça Scrunch (2014), de Sarah Argent e Kevin Lewis, dirigida por Sarah, e passou a assistir ao espetáculo sempre que podia, analisando quais os momentos mais engajavam os pequenos, como eles eram construídos, o que acontecia para que uma apresentação fosse considerada boa ou não.
Ao voltar para o Brasil em 2017, a vontade de experimentar com esse público entrou em ebulição. Thiane chamou Júlia, sua parceira de trabalho, para montarem uma peça e voltou a procurar Sarah para se aprofundarem no assunto. Esse contato com Sarah foi uma primeira pista de que o teatro para bebês é um tema pouco pesquisado ou formalizado e que muito do desenvolvimento desse tipo de trabalho se dá de forma empírica e por trocas muitas vezes informais. Do desejo, curiosidade e encantamento da atriz, nasceram a 2 Mililitros Cia Teatral e a peça Cadê? (2017), com pesquisa e atuação de Thiane.
A partir daí, o mergulho no teatro para bebês ganhou profundidade. Pesquisando mais sobre quem produzia para primeiríssima infância no Brasil, a companhia entrou em contato com Elenira Peixoto, fundadora da Cia Zin, e com o Grupo Sobrevento já veteranos nessa linguagem. Thiane compartilhou sobre um convite, em 2022, do Sobrevento para um encontro entre artistas que produziam espetáculos para bebês. Neste encontro se firmou a percepção do caráter informal da troca, em uma rede de fortalecimento do teatro para bebês dentro das próprias artes cênicas - muito porque esse é um gênero ainda pouco conhecido, ou mesmo reconhecido - e a compreensão de que teatro para bebês envolve inclusive uma luta política de valorização e direito à cultura desde o início da vida.
Partindo dessa compreensão política do bebê como uma pessoa, um sujeito, como um cidadão - fato que às vezes parece ser desconsiderado ou esquecido -, Thiane frisou que fazer teatro para bebês não é diferente do que fazer teatro para um público adulto, no sentido de que o rigor com a produção é o mesmo: há pesquisa de todas as linguagens, de cenário, figurino, trilhas sonora e musical, luz, dramaturgia. E isso significa levar em conta as particularidades desse público. Para esmiuçar esse ponto e o que a 2 Mililitros chama de “introdução gentil ao teatro”, descreverei a experiência de assistir a Os Céus e suas Histórias.
O espetáculo tem como inspiração a trajetória da astrônoma irlandesa pioneira Annie Maunder (1868-1947) e parte de jogos de luz e sombra, além de elementos da dança, para criar um espaço lúdico e sensível de descobertas. De forma que o público-alvo, isto é os bebês, não se canse e possa estar disposto e atento para aproveitar a apresentação, a entrada é liberada somente instantes antes de a peça começar. Enquanto isso, esperamos em um espaço com objetos divertidos - nesse caso, almofadas e móbiles em formato de Lua e Estrelas -, que fazem um sucesso enorme entre os pequenos. Perto da porta de entrada há um espaço para “grandes volumes” (carrinhos, mochilas, bebês-conforto), o que libera lugar perto do cenário e os responsáveis por carregar esses objetos. A luz é baixa, mas a sala ainda está clara; conforme o público se acomoda, a luminosidade diminui aos poucos, de forma bastante suave.
Sentamos ao redor do cenário, uma estrutura de metal com uma espécie de lona branca, que cobre o chão ou o teto a depender do momento da peça. As atrizes - ou exploradoras - vão tirando pequenos objetos de uma mala: lanternas, lunetas, potes com água colorida, globinhos espelhados. Sem terceiro sinal, a apresentação começa e se divide em dois momentos: um momento mais contemplativo, ou narrativo, e o momento brincante, quando os bebês são chamados para dentro do palco para interagir com os materiais do cenário, os objetos, as atrizes, os outros espectadores e, claro, consigo mesmos. Apesar de mais descontraído, Thiane explicou que esse momento tem um sentido dramatúrgico e compõe a peça tanto quanto o primeiro, sendo importante inclusive para atender os desejos e curiosidade dos bebês, que aqui são entendidos também como pesquisadores-exploradores.
O que a companhia chama de introdução gentil ao teatro, é justamente o respeito às particularidades e necessidades desse público: a compreensão do tempo limite de concentração e paciência dos bebês; um blackout construído gentilmente de forma a permitir que todos se acostumem com o escuro; a supressão do terceiro sinal, que poderia assustar; a disponibilidade de trocadores de fraldas dentro da sala de espetáculo; o acolhimento de comportamentos que poderiam ser considerados inadequados em outras situações como choros, conversas, caminhadas pelo espaço. “Permissividades”, como colocou Thiane.
Isso torna o teatro um espaço seguro para que essas pessoas no comecinho da vida explorem novas experiências, sejam elas materiais, sociais ou emocionais. Me chamou muito a atenção como os bebês transitavam por várias sensações e emoções ao longo da peça, algumas quem sabe novidades para eles. Destaco um momento em que um bebê estava mamando e quando uma das atrizes passou perto dele com um dos materiais, ele abriu mão do peito para observar o que acontecia. Ou ainda um que, segurando firme a mão do pai, ria desconfiado sem desgrudar o olho da cena. Explora-se o riso, a brincadeira, a concentração e imaginação, a percepção do que gera interesse ou não, os limites e transições entre a surpresa, o susto e o divertimento.
Ao pensar sobre tal exploração, Thiane compartilhou seu momento preferido de Cadê?, que segundo ela é considerado um tanto polêmico por algumas pessoas: na peça, objetos são retirados de uma cabana, sempre revelando esse gesto, mas, em determinado momento, a atriz entra na cabana e sai dentro de um saco de presentes, ou seja, a figura familiar da atriz some e surge uma nova, dessa vez desconhecida. Aos poucos, uma mão ou um pé aparecem e a atriz ressurge. Segundo ela, na maioria das vezes as crianças ficam intrigadas com esse movimento, mas às vezes ele gera medo ou inquietação. Ela contou que não revelar a entrada no saco é uma escolha proposital, pois assim como muitas vezes em teatro adulto há incômodos, bebês podem ser instigados a experimentar novas perspectivas mais desafiadoras.
Nesse sentido, ela apontou que a construção da encenação e das “adaptações” para o público são feitas em conjunto - uma alimenta a outra. Em Os Céus…, por exemplo, a diretora Elenira amplia para depois afunilar - acrescentando camadas de complexidade, que geram interesse e dão tempo de os bebês se acostumarem e absorverem aquele contexto.
Escolhas cênicas como a mencionada acima, reiteram a convicção do bebê como pessoa capaz de compreender e interpretar o mundo, ainda que de forma diferente do que um adulto faria. Thiane comentou sobre o questionamento de muitas pessoas quando ouvem sobre teatro para bebês: elas se perguntam se os bebês entendem a peça e Thiane em geral responde “o que é entender?”. Ela contou também que a experiência com plateias majoritariamente de bebês, como acontece em creches, costuma ser mais proveitosa, porque evita ou diminui comentários explicativos ou narrativos do que está acontecendo, os quais muitas vezes surgem por uma falta de confiança estrutural (e às vezes inconsciente) na capacidade de interpretação dos pequenos. A atriz reforçou que muitas propostas são mais efetivas quando há mais bebês que adultos, quando a autonomia dos bebês é respeitada e exercida.
Thiane compartilhou também que os disparadores para criação das peças partem de diferentes lugares: em geral, Júlia e ela se alternam para que os desejos de pesquisa das duas sejam contemplados. Os Céus…, por exemplo, surgiu novamente do encantamento de Thiane, depois de ler uma reportagem da BBC sobre a cientista Annie Maunder, e da percepção de que aquele assunto era política e estéticamente interessante.
Pensando na estética da peça, chama a atenção o fato de que os materiais, do cenário aos objetos de cena, são simples: ferro e lona, para o primeiro; potes de vidro com água colorida, lunetas de canos de pvc, lanternas, tecidos brilhosos, para os segundos. Contudo, a maneira como eles são tratados é bastante elaborada, inventiva e inteligente. Thiane explicou que houve uma longa pesquisa de materialidades para encontrar objetos que agregassem e estivessem a serviço da cena; que fizessem parte de uma mesma família, ou seja, se relacionassem entre si e com o tema - ciência e astronomia. Há em cada objeto um cuidado narrativo e estético, expressando o rigor defendido anteriormente.
Além disso, uma camada fundamental para a pesquisa dos objetos foi o momento brincante da peça, no qual os bebês entram no palco e os manipulam. Existe um cuidado e orientação para que esse momento seja proveitoso e, claro, preserve a segurança de todos. As lanternas oferecidas, por exemplo, são mais fracas do que as utilizadas em cena; além da possibilidade de deixar os potes de vidro disponíveis ou não - Thiane, apesar de defensora dessa possibilidade, explicou que há sessões em que isso não é possível porque o público está muito agitado ou tem muitas crianças mais velhas entre os pequenos. Entretanto, é comum que os objetos precisem ser substituídos ao longo de uma temporada e, por isso, precisam ser fáceis de serem produzidos, como colocou a atriz. Se é proposto oferecer objetos para serem explorados, é necessário que eles sejam seguros e permissivos.
Ela reforçou, contudo, que essa postura que acolhe permissividades não significa permitir que se faça qualquer coisa: a orientação sobre como manipular - ou cuidar - desses objetos, envolve um aprendizado sobre respeito ao teatro e ao outro. Como apontou Thiane: “introduzir ao mundo do teatro envolve também mostrar como se comportar enquanto plateia”. Isso fica muito claro na firmeza gentil com que é avisado que é hora de devolver os objetos e tranquilidade com que isso é recebido.
Falamos também sobre os motivos para se fazer teatro para bebês para além da própria maternidade, ressaltando que ainda é comum considerarmos os bebês responsabilidade apenas da família nuclear, em especial das mães, mas na verdade, crianças são um grupo social que precisa ser incluído e considerado por toda a sociedade. O que fez lembrar a discussão sobre a importância de redes de apoio e refletir sobre a possibilidade da cultura e do teatro também serem parte dessa rede. As adaptações e permissividades já citadas cumprem um papel nesse sentido e envolvem um acolhimento inclusive com as mães / responsáveis pela criança.
Eis mais um motivo para a defesa, fortalecimento e divulgação do teatro para bebês, que, como comentado no início do texto, costuma acontecer dentro de uma rede de pessoas que já produzem para esse público. Nesse sentido, parcerias como a firmada com o Instituto Brasileiro de Teatro (iBT) para a temporada do início do ano representam um avanço e uma conquista significativa para todo o formato. Além do iBT, que trouxe financiamento e foi responsável pela divulgação, houve uma parceria com o Sobrevento, que cedeu seu espaço. Ambas fundamentais para tornar viável - e leve - uma temporada com quatro apresentações por final de semana.
Thiane destacou como a divulgação com a assessoria de imprensa especializada do iBT foi fundamental para o alcance que a temporada teve, além de ter liberado as atrizes do já rotineiro acúmulo de função. Em geral, as próprias artistas são responsáveis pelo orçamento, venda, divulgação, procura por espaço de ensaio e apresentação, entre tantas outras funções; o que evidencia a luta que é fazer cultura no Brasil.
Pensando nessas parcerias, Thiane apontou que o teatro é considerado a arte do encontro e como esse encontro diz respeito não só a artista-plateia, mas também a rede de fortalecimento entre artistas. Artistas que não necessariamente estão em contato direto ou constante, mas que podem ser acessados a qualquer momento - como é o caso do grupo do encontro entre pessoas que produzem espetáculos para bebês. Essas trocas, aponta Thiane, são muito valiosas e fazem o trabalho amadurecer, justamente ao compartilhar pontos de vista possibilitando outras formas de lidar com os desafios.
Fico aqui pensando, desejando, um mundo em que essas trocas ganhem mais força e que o ponto de vista de bebês seja cada vez mais considerado. Talvez eles possam indicar outros caminhos para entender, interpretar, se comportar. Um caminho em que o acolhimento e o encantamento sejam base, assim como é a experiência de assistir a Os Céus e suas Histórias.
Os Céus e suas Histórias, da 2 Mililitros Cia Teatral, fez sua estreia em julho de 2022 no Teatro UOL. Dirigida por Elenira Peixoto, a peça permaneceu em cartaz ao longo de todo o mês como parte do Festival de Férias. Em 12 de outubro de 2022, o espetáculo foi convidado para duas apresentações no palco do Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros, tendo sido o primeiro trabalho para bebês a ocupar este espaço. Desde então, Os Céus e suas Histórias circulou por diversas unidades da rede Sesc na capital e interior de São Paulo, integrou o Festival de artes de Matão, o festival para a primeira infância do teatro Ecovilla RiHappy no Rio de Janeiro (RJ) e o XVIII Festival de Teatro da Amazônia. Uma nova temporada da peça foi apresentada no Espaço Sobrevento com 16 apresentações em março de 2024 e se prepara para uma circulação pelo Sesc-RJ em novembro deste ano. Para mais informações sobre o trabalho da companhia, você pode acompanhar o perfil de instagram da 2 Mililitros Cia Teatral ou o site www.2mililitros.com.br
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