The Cure lança seu 15º álbum, Songs of a Lost World, no seu melhor jeito introspectivo
Poucos discos neste ano me impactaram tanto quanto o lançamento de Songs of a Lost World (2024), da banda inglesa The Cure. Pouco falado, o álbum era esperado com uma curiosidade receosa por se tratar do primeiro lançamento da banda em 16 anos, desde o minguado 4:13 Dream (2008) que, com certeza, não é o favorito de ninguém.
O processo de anúncio deste novo trabalho foi interessante: após uma década inteira apenas tocando seus odisseicos shows de 3 horas, a banda britânica, quase quinquagenária, começou a apresentar músicas novas entremeadas em seus clássicos - como foi o caso de “Alone”, que abriu o show da banda em São Paulo, no Primavera Sound 2023. Aliado a isso, as entrevistas do frontman e compositor principal do grupo, Robert Smith, afirmando que tinham material suficiente para três lançamentos alimentavam ainda mais as esperanças dos fãs. Pois pule para setembro deste ano, quando a banda anunciou o primeiro single do novo trabalho - aquele que abriu o show do Primavera Sound - junto com um site misterioso e cartas para alguns fãs seletos. Era realidade, a banda lançaria seu primeiro álbum em quase duas décadas. Depois de dois singles, Songs of a Lost World caiu nos streamings como um cometa gótico e nos surpreendeu com seu brilho melancólico e cru.
Um dos pontos altos da banda em seu novo trabalho é a coesão, ao contrário de 4:13 Dream. Durante os quase 50 minutos de viagem, a banda trabalha com calma todo o trabalho gestado durante anos, sem pressa nenhuma, longas introduções com um capricho nas dinâmicas e construções de climas bucólicos. A faixa de abertura, "Alone”, precisa de quase 3 minutos de caminhada para que Robert Smith se apresente no vocal, cantando do mesmo jeito desde os 20 anos. Com um fio de lembrança no gênero shoegaze, o cartão de visitas flerta com a desesperança que dita o álbum. Fincando a bandeira, Smith canta usando o poema de Ernest Dowson, Dregs, como base: “Este é o fim de cada música que cantamos / O fogo se apagou em cinzas / E as estrelas se escurecem com lágrimas”, soando certeiro no mundo atual.
Outro pilar para Robert no novo trabalho é o amor, que trabalha com um arranjo de cordas lindo em “And Nothing is Forever”. O início da faixa por si só já emociona, lembrando a banda na época de Disintegration, em seus sons arrastados e românticos como “Pictures of You”, só que agora moldado numa forma apocalíptica, como se o mundo desmoronasse ao redor do compositor.
A partir da terceira música, o disco levanta voo. “A Fragile Thing” é mais uma canetada de Robert Smith, que fala sobre a solidão enquanto é guiada pelo baixo de Simon Gallup, peça fundamental da banda, puxando os holofotes para si em diversas partes da obra com seu timbre metálico e áspero. Após guardarem o trem de pouso, “Warsong”, uma das melhores do álbum, é a pista onde o baixista desliza, mas onde, também, o guitarrista Reeves Gabrels mostra suas cartas e demonstra ser um exímio instrumentista, um ótimo acréscimo à banda - ele acompanha a banda há pelo menos dez anos, antes tocava com David Bowie (1947-2016).
Caminhando para a etapa final do disco, “Drone:Nodrone” sobe os bpms e flerta com as músicas mais agitadas da banda. A faixa atesta o que já estava claro: a musculatura firme da banda em criar as bases da música e nos abstrair enquanto Robert, com suas letras, nos arrasta para seu quarto escuro. São aflições mundanas.
“I Can Never Say Goodbye” escancara, de novo, a beleza melancólica que a banda faz com maestria. Um solo de Gabrels que nos rasga por dentro enquanto Smith lamenta sobre o luto de quando perdeu seu irmão Richard Smith, “Da noite cruel e traiçoeira / Algo maligno vindo por aí / Para roubar a vida do meu irmão”.
“All I Ever Am” pode ser descrita como o ponto baixo do disco. Ela não tem muita a fibra das outras músicas e soa apressada como se estivesse apenas para compor o disco, mas ainda vale como um exercício de entender a mente de Robert Smith na medida em que o compositor divaga ainda de forma melancólica sobre seu passado e suas memórias.
A corrida tem seu fim em “Endsong”, 10 minutos de trabalho, sem a mínima pressa de dar tchau. São seis minutos e meio de puro crescendo para que, assim, o vocal apareça em plena erupção, quando o instrumental não se comporta mais. Essa erupção reflete o passado, o passado de sonhos e esperanças, se questionando como tudo aquilo passou e a velhice chegou. “Está tudo acabado / Nada restou de tudo que eu amava / Sem esperanças, sem sonhos, sem mundo / Eu não pertenço mais aqui”. É a faixa mais poderosa do disco, ela destroi suas esperanças por dentro. Não é rancoroso, mas sim passivo; a passividade de aceitar que a vida passou junto com suas esperanças. “Deixado sozinho sem nada no final de cada canção”.
É particularmente difícil escrever sobre esse disco, o motivo: dói. As letras são certeiras e você se depara consigo mesmo durante a audição para relembrar de momentos e paixões, ficando sozinho na cabeça do autor. O álbum vem como uma pancada. É tudo construído numa malha muito bem costurada pela experiência, de um tecido excelente, escolhido a dedo pelos 10 anos de gestação. Songs of a Lost World é se teletransportar pro quarto soturno de Robert Smith, seja o de 65 anos ou o de 20.
É um disco diferente de toda a carreira deles. Talvez, se forçar, você se lembre de Pornography, quarto disco do grupo e o terceiro da tal “Trilogia da Depressão”, só que desacelerado, sem aquela ansiedade regada a cocaína ou o caos da época. Além de ser mais um atestado da genialidade do Robert Smith, seja como guitarrista ou como compositor - um dos mais agudos de sua geração. Sendo alguém que olha para trás, se depara com o passado, suas relações e pertencimentos e não se enxerga mais, vê tudo passar enquanto ele fica, permeado por um arrependimento britânico. Só que aí está o pulo do gato: ele canta sobre isso desde o começo da carreira e escreve uma carta de despedida por disco. E quantas cartas de despedida alguém pode escrever? Robert Smith não foge da morte ou reflete sobre ela, ele luta contra o correr do tempo pois não consegue controlá-lo, ou melhor, não se conforma com a fatalidade que é o passar do tempo.
Impressiona como, depois de quase 50 anos, o The Cure pode ser celebrado, dançado e chorado pelo jovem triste que lê Baudelaire no quarto, ou pelo velho partido que lamenta sobre o que resta em sua vida, enquanto desconhecidos dançam ao som de “Just Like Heaven” em alguma festa em alguma esquina. E como conseguem fazer um “comeback” bom, firme e coeso, fugindo da regra que assombra a categoria.
*
Songs of a Lost World (2024), de The Cure
Gravadora: Polydor Limited
Capa: Andy Vella, apresentando a escultura “Bagatelle” de Janez Pirnat
Minutagem: 49’14’’
Onde escutar: Nas plataformas de streaming
Onde comprar: Universal Music Store
Comentários