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MANUEL MOLARINHO: “A música é só um bem comum que nós queremos partilhar”

Foto do escritor: Pedro PenteadoPedro Penteado

Pedro Penteado entrevista o instrumentista e cantor português Manuel Molarinho


Manuel Molarinho em seu projeto solo Manipulador. Foto: Inês Leal
Manuel Molarinho em seu projeto solo Manipulador. Foto: Inês Leal

Manuel Molarinho é um dos rostos mais conhecidos da cena underground da cidade de Porto, em Portugal. É reconhecido em quase todos os shows que vai assistir. Conhece de A a Z os transeuntes musicais da segunda maior cidade portuguesa: quem são, o que tocam e onde tocam. Enfim, conhece a fundo o ecossistema de lá. Com 41 anos, Manuel caminhou por diversos projetos até chegar ao Baleia Baleia Baleia em 2018, seu duo de baixo-bateria com Ricardo Cabral, de 38 anos. Num som direto flertando com o punk e letras que sempre encrencam com a situação da sociedade; recomendo os dois discos (Baleia Baleia Baleia, de 2018, e Suicídio Comercial, de 2022) com enfoque nas seguintes músicas: Bebé Nestlé, Quero Ser um Ecrã e Egossistema. Com Ricardo, já estão trabalhando no terceiro álbum, além de um selo: o Saliva Diva. 


Manuel se encontrou com a Galérica no dia 12 de janeiro, um domingo ensolarado, para conversarmos sobre a flora musical da cidade, suas experiências com o selo Saliva Diva e suas percepções da cena musical brasileira durante a turnê de sua banda Baleia Baleia Baleia no Brasil, no ano passado. Durante a conversa na tradicional Padaria Ribeiro, na região dos Clérigos, muitas comparações foram feitas e um panorama musical da cidade foi dado.


Este encontro também proporcionou uma visita ao Centro Comercial Stop, um espaço que um transeunte pode dar como abandonado até abrir uma pequena porta branca e se deparar com mais de 100 salas comerciais transformadas em estúdio. Uma onda de sons, do metal ao indie e do trance ao hip hop invadem seu ouvido de uma vez só. É caótico, mas uma das manifestações musicais mais lindas já vistas por este repórter. Apesar disso, a gentrificação da cidade dá seus sinais e o Centro vem sendo boicotado. Agora os estúdios funcionam apenas por 12 horas ao dia – antes eram 24 horas –, e com cada vez menos salas alugadas já que muitos dos estúdios eram praticamente notívagos, funcionando fora do horário comercial, quando os músicos não trabalham. Essa nova escala horária aumentou as chances do local ser comprado por algum empreendedor. 


No mesmo encontro, dentro do Fiat verde musgo de Manuel, com três assentos na frente, visitamos o Maus-Hábitos, umas das casas de show mais respeitadas da cidade; naquele domingo estava fechado. Ao fim do dia fui convidado para assistir o show da jovem Vitória Vermelho no Amparo 99. 


Fechando a visita ao Porto, pude assistir ao ensaio do duo Baleia Baleia Baleia, em um pequeno estúdio na Rua da Galeria de Paris. Após subir três lances de escada, foi possível ver o tal pedal que voltava a ser usado e boa parte das composições para o novo disco. Uma imersão quase completa.


*


PEDRO PENTEADO: Queria primeiro saber a história do Baleia. Como surgiu a banda? Sempre foram vocês dois? Como que veio?

MANUEL: O Ricardo [Cabral] tinha uma sala de ensaio aqui pertinho. Nós nos conhecemos porque ele organizava um festival em Lamego, que é a cidade dele, e eu estava na altura a trabalhar num barzinho pequenino no Porto, que dava para fazer umas coisas. E ele conheceu porque foi falar comigo, queriam fazer [uma apresentação] lá. E depois acabei indo tocar no festival dele nessa altura, e ele começou a me convidar para ir fazer jams na sala dele. Pá, houve uma vez que ainda apareceu mais gente e tal, mas depois só apareci eu e ele. Então pronto, foi assim que surgiu. Começamos só nós dois. É pá, e em vez de não tocarmos, ficava a batalha mais barulho. Chegamos a ligar a bateria nos amplificadores também.


E assim você foi moldando o seu som?

Eu já tinha umas bandas anteriores onde eu fazia [o uso de vários amplificadores], mas não fazia isso. Mas a exploração de quatro amplificadores foi toda feita a partir da sala de ensaios. Passar de um para dois, ser um de guitarra. Depois de começar, foi tudo feito com ele. E sim, fomos sempre os dois e acho que não temos assim grande coisa de ter mais gente. A única coisa que nós sabemos: não queremos ter guitarra.


Você já tinha esse lance do teu equipamento com o baixo, de fazer esse som, de pensar o instrumento dessa forma, desde antes do Baleia, ou foi desenvolvendo com a banda?

Já tinha. Já andava a desenvolver porque eu tenho um projeto solo que se chama Manipulador. Já andava a desenvolver, usar o baixo como um instrumento total que soa baixo, mas também soa percussão, a textura e guitarra a solo. Mas ainda não tinha explorado essa coisa de separar sinais e ter vários amplificadores diferentes. Essa espacialização do som foi muito feita com o Ricardo, mesmo, que ele também é engenheiro de som e começou a puxar por mim. E depois temos dois pedais delay nos amplificadores do lado só para atrasar sinal. São tudo coisas que ele trouxe.


Vocês do Baleia Baleia Baleia estão gravando agora?

Estamos a acabar de compor as músicas e a definir o conceito para começar a gravar o disco, que terá uma pegada experimental, mas mantendo a essência dos trabalhos anteriores.


E nesse disco novo, vocês estão pensando em manter a raiz dos dois primeiros? Vocês vão experimentar algumas coisas novas? Que caminho está tomando?

Nós achamos sempre que vai acontecer uma coisa ou outra, mas depois, pá, só saem músicas, não é? É o que for. Sei que há um pedal que eu tinha que nós não andávamos a explorar. Ou seja, que vamos, estamos a incorporar, vamos ter mais sons mais loucos. Está sendo um bocadinho por aí. Acho que talvez estejamos a explorar alguns ritmos um bocadinho mais alegres. Sempre foi: nós não fazemos muitas perguntas, nem muitas posições. Entramos e começamos.


E nunca foi limitante para vocês serem só dois na banda?

Às vezes dava vontade de ter mais um. Enfim, coisas pequenas, imagina? Quero me mandar para cima do público. Mas se eu o fizer, não há ninguém tocando o instrumento, estás a ver?


Mas nunca foi um problema?

Não, não. Já experimentamos espaços assim, mas muito poucas vezes ter mais uma pessoa numa música ou uma coisa assim do gênero. Eventualmente havemos de fazer isso no futuro, mas também gostamos disto assim. É simples e essa limitação também estimula a criatividade.


O Saliva Diva é um dos vários selos em Portugal que ajudam bandas novas a se encontrar no mercado, marcando shows, auxiliando o caminho dela.  Mas com uma proposta acima de tudo coletiva, como dito no manifesto do Selo: “Acreditamos na função utilitária da produção criativa como forma de catarse e união, como estímulo sensorial e intelectual, como embalo e despertador.”


Como foi a história do Saliva Diva? 

Na altura, o Ricardo [Cabral] fazia parte de um certo coletivo. Eu também fiz na altura, que é o Zigur, que organizam um festival em Lamego, o Zigurfest, e também tinha uma editora. O primeiro disco nós até lançamos por essa editora, mas ela foi-se desfazendo no componente editorial. E nós sentimos necessidade de criar um selo para lançar as nossas coisas.


Inicialmente, era isso. Só que aquela coisa básica de criar um selo para gravar as nossas coisas. Então em janeiro de 2020 fundamos o Saliva Diva. Mas agora não é apenas ter só esse componente de lançar discos – isso era uma base, era uma desculpa, era sobretudo uma experiência de organização. Aquela coisa de: “ah, se isto está mal, porque é que não fazes diferente”? Pronto. Nós queríamos fazer diferente.


E demorou muito tempo, os primeiros quatro anos foram super atribulados, não sabíamos o que fazer, era muito inerte. E depois chegamos aqui a um ponto onde funciona. Estamos com 12 pessoas a coordenar, mais 15 a colaborar. E há pessoas que estão fora, dentro, às vezes estão três anos sem fazer nada e voltam. Há pessoas que se vão juntando, há pessoas que vão saindo. Ninguém é punido, o compromisso que assumimos é totalmente orgânico. Vamos nos reunindo uma vez por semana.


E aí as bandas que começaram a entrar. Como vocês fazem o contato, elas vinham até vocês ou vocês iam até elas?

No início eram mais bandas amigas, que já conhecíamos, que acabavam por chegar até nós. Depois, a partir do ano passado, sobretudo, começamos a ter muitas maltas (*forma de se referir ao público e, nesse caso, às bandas) que começava a vir ter conosco, porque queriam ser lançadas por nós, há um editor independente. Mas as bandas que são donas de seu nariz, que querem ir para onde forem, já houve duas ou três bandas que começaram nesta liga e saíram para outras editoras e é melhor assim.


Mas é, começámos a sentir que a partir de uma determinada altura o pessoal nos procurava. Isso também para nós foi bom, porque de repente bandas, por exemplo, os Maquina, nós fomos falar com eles que estavam quase a lançar e tínhamos acabado de tocar juntos e curtindo. 


Então começámos a sentir que já havia assim uma mudança, antes era muito centrado no Porto também, agora temos algumas bandas de outras partes. Começou com os Melquíades em 2022. Mas os Galgo também, os Chat GRP, são bandas que não são de cá – então já começámos a ter algumas bandas de fora também.


O Chat GRP, inclusive, veio de onde? Estava ouvindo e curti bastante…

Eles são alentejanos, ou seja, ali do sul de Lisboa, aquela região que é o Alentejo. Eles são todos de lá. Apesar de circundarem um bocadinho ao pé de Lisboa neste momento, entre Lisboa e o Alentejo.


E ainda estão com o Marquise, que vai lançar o primeiro LP.

O Marquise vai ser lançado em fevereiro, final de fevereiro.


Lembro de você ter comentado lá no Brasil sobre a dificuldade de vocês furarem essa bolha em Portugal e começarem a tocar em outros lugares da Europa. E, então, você falou desse lance horizontal, de se ajudar. Você vê a cena se fortalecendo ao ponto de conseguir alçar lugares maiores, de furar a bolha? Temos por exemplo o Maquina, que está excursionando agora.

É mais ajudar no sentido de ajudar, não sei bem se para alcançar lugares maiores. Portugal tem uma coisa que apesar de tudo eu acho interessante, que é: temos um underground que talvez por não ter muita responsabilidade, por ser um país pequeno, não há propriamente, uma indústria para se apoiar aqui. Então o underground acaba por ser bastante experimental e livre. E, além disso, a cada 60 quilômetros há um sítio para tocar, há uma associação, e o pessoal aqui dá sempre comida, dá sempre dormida e qualquer coisa que precisar. E então o que acontece acaba por ser que o circuito aqui acaba por ser bastante digno para as bandas que estão no início de carreira.


O problema é quando tu queres crescer, que é o que acontece com o Maquina, que começa a ter um hype e ter mais gente interessada por aí. Então Portugal começa a ser pequeno. E eles já têm uma editora deles, a Fuzz, que é da Grã-Bretanha, e um booker deles, que, se não me engano, é francesa [Swamp Booking], e aí começa a ser um bocadinho pequenino.


A vontade é de entrar e ajudar, temos muitos músicos na label, no coletivo e queremos aconselhar o melhor possível, ajudar. Mas assim, nós não temos propriamente essa capacidade de achar que vamos conseguir levá-los para lugares grandes, isso vai ter que ser as bandas a fazer por elas mesmas. O que nós podemos fazer é ajudar o máximo possível, aqueles consolidem o que estão a fazer, a sentirem-se acolhidos e a ajudar com concertos. Mas sobretudo cá, é claro que se conseguíssemos fazer esta ponte com o Brasil com mais popularidade, acho que já era uma coisa muito especial.


Mas não é propriamente, não é um negócio, não tem uma perspectiva de crescimento, é muito mais uma preocupação de nos ligarmos humanamente e da forma como nos tratamos uns aos outros. Sim, queremos ser pagos pelo trabalho que fazemos, mas com calma, perceber como é que as coisas podem acontecer. Mas sempre com dignidade. Com o mínimo de dignidade, né? Total é difícil.


Você comentou que tem muitos lugares para tocar. Vocês sentem que, por Portugal ser um país menor (comparado a São Paulo e o Brasil, onde cada cidade tem uma cena própria e tudo mais), vocês acham que tem uma proximidade, uma interlocução maior com o público, uma coisa mais orgânica?

Aqui no Porto tem, não sei, 300 mil habitantes neste momento. O grande Porto tem 2 milhões, mas a cidade do Porto acho que tem 300 mil, é uma cidade pequena. E tem para ir umas 10 venues (*casas de show), se calhar até é mais. Mas sim para bandas, tem umas 10 venues. E não é raro ires a um concerto e estar tudo louco, tudo aos saltos, crowdsurfing, mosh e tal. Pois é, o pessoal vai lá pelo show. Não é igual em todo o lado, mas acho que neste momento, especificamente no Porto, vive-se isso.


Porém, acho que a questão da proximidade, às vezes, não é bem assim. Porque há sítios pequenos onde tu sentes que o sítio é pequeno e que as pessoas têm quase vergonha de se divertirem porque o vizinho está a ver. Mas aqui tem uma energia fixa, os concertos são quase sempre cheios. Público pelo menos ativo, sempre tem uma rapaziada. É, de vez em quando corre mal, mas acho que é em todo o lado assim. Mas se você pega São Paulo são 16 milhões, 10 milhões na cidade, também é igual, tem o mesmo número de público dos concertos que eu vi lá, é o mesmo número de público que eu vejo aqui, também há de haver mais concorrência, obviamente, mas tem o sentido que há uma vibração qualquer assim.


Ano passado vocês vieram tocar no Brasil, fizeram um monte de datas, viajaram o Brasil inteiro, conheceram mais o país do que eu até. Queria saber como foi para vocês e agora, meses depois, o que vocês acharam. Como foi a experiência de tocar em outro continente, outro público?

Ora, foi incrível. Foi muito melhor do que eu estava à espera. E depois, aqui em Portugal já temos muitos concertos, já nos preocupamos com outras coisas; ali foi conquistar pessoas de novo.


Imagina, eu ando a dizer muito isto às pessoas, eu cá, quando o Baleia começou a tocar, eu não sabia bem se era a música ou se éramos nós, porque nós já cá estávamos a fazer coisas há algum tempo e apesar de tudo – este reconhecimento das pessoas também ajuda para que as pessoas venham e gostem. E eu tinha um bocadinho, sei lá, aquela eterna dúvida de “será que isto funciona num sítio novo?” e no Brasil eu não conhecia ninguém.


Então, primeiro ver que aquilo funcionava, independentemente de não se perceber tudo, porque o sotaque é diferente – percebe-se o que é preciso. E depois ver as coisas a funcionarem lá para nós foi, assim, uma validação. E por outro lado, como eram pessoas novas, era a primeira vez que nos estavam a ver, também havia aquela pica de as querer conquistar com a energia.


E tivemos depois muita sorte, porque o concerto em Salvador, com o Tangolo Mangos, já estava cheio. O concerto na rua no Rio foi animal, centenas de pessoas. O último concerto que demos em São Paulo, no FFFront, também já estava cheio. Quando fomos a Juiz de Fora, estávamos a tocar numa cozinha lá do Canil Rex, mas tipo, eram umas quarenta pessoas, mas que parecia abarrotado. Então metade das datas já foram assim, mesmo no Picles alçava muita gente. Metade das datas que nós fizemos já tinha gente. Não foi aquilo de começar de novo com cinco pessoas ou dez pessoas de cada vez.


E foi ótimo sentir que o pessoal queria que a gente voltasse o mais rápido possível. Não é fácil, porque as viagens são um obstáculo, mas gostaria muito de conseguir voltar.


Vocês tiveram contato com outras cenas brasileiras, com outras pessoas? Queria saber como foi. Vocês tocando aqui em Portugal há muito tempo, vocês já têm uma noção do que rola aqui, uma coisa mais management também por trás do que rola. Queria saber quais as diferenças vocês viram, as semelhanças. O que vocês acharam?

Eu achei um bocadinho injusto para o underground [no Brasil]. Acho que as condições, ver o pessoal a tocar e não conseguir pagar o jantar e o Uber, para mim já é um limite que hoje acho inaceitável. Até porque nós fomos ver concertos quase todos os dias e vimos bandas inacreditáveis, muitas vezes a tocar para quinze pessoas, dez pessoas. E outras vezes também vimos casas lotadas e mesmo assim percebemos que as pessoas estão mesmo a fazer porque precisam de fazer, não há sequer a ideia de que podem fazer algum guito (*cachê, receber pelo show), algum dinheiro no dia, e achei para o underground uma coisa mais injusta.


Porque o que me parece também é: o Brasil sendo um país muito maior e com muito mais pessoas, também há muito aquela coisa do “se isto bater, bata sério”. Há de tudo, eu vi de tudo, e vi músicos super jovens a fazerem coisas com um tato e uma sensibilidade inacreditável. Vi criatividade a rolar, mas também vi muitas coisas que estavam à procura de serem encontradas. Foi o que eu senti.


Fica tão tenso que às vezes há certas coisas que se calhar podiam… não quero dizer como verdade, isto é uma generalização feita a minha experiência de um mês. Mas também achei que esta coisa de estourar faz com que, às vezes, o caminho que se leve seja menos experimental e seja mais canção. Não quero estar a dar nenhum exemplo específico, é só uma sensação que fica. 


Também apanhei coisas que são totalmente experimentais e apanhei coisas que me surpreenderam, até há uma coisa que eu gosto muito, e meio que nós começamos a imitar. Uma coisa que eu adorei, é tipo, se alguém vai tocar, convida-se sempre pessoas para tocar. E não é para as pessoas tocarem a música da pessoa que está a dar o concerto, é para virem tocar as músicas deles. Esta confluência, esta capacidade de estarmos permanentemente a tocar uns com os outros, acho isso super bonito. É uma coisa que nós aqui é mesmo difícil: quando há featurings é uma coisa muito planeada – a pessoa vem tocar uma música específica. Aqui parecem mais artificiais, lá é super orgânico. Gostei muito desse lado.


Por exemplo, um dos concertos que eu fui ver, o Kim e Dramma, não fazíamos a mínima ideia do que estávamos à espera, e o pai dele também tocou. Então, era uma cena de hip hop experimental, super bem tocada, super bonita. Depois pelo meio, o pai do vocalista vai cantar com eles, tocar umas músicas, e assim uma onda mais MPB, na realidade, mas super bem feito também. E de repente tu estás a ver um show em que estás a apanhar uma coisa que está a acontecer, e aquilo é enriquecido com uma coisa que não tem propriamente a ver, mas que acaba por se tocar. Então, houve assim momentos desses que para mim foram muito bonitos e que eu tenho muita dificuldade a encontrar em concertos aqui. Talvez esse seja o aspecto que eu achei mais diferente, que é: há uma lógica mais coletiva, mais de participação contínua.


De certa forma também acho que talvez na parte de trás da cabeça haja um bocadinho menos de liberdade. Porque por, ser um underground tão injusto e impraticável, tu estás naquilo, tu tens que alçar sempre uma coisa que dê resultado. Tens de tentar alcançar alguma coisa que permita-se pelo menos continuar a querer fazer. Então aí eu acho que isto acaba por se virar contra, porque acabam por ficar menos experimentais e menos únicos em algumas coisas. Via muitas bandas e músicas que resolviam os temas de forma mais previsível.


Então, é assim, pedindo-me uma generalização é aquilo que eu consigo fazer. É claro que a minha experiência é super diminuta. Vi muitos concertos num mês, mas pronto, estive lá só um mês. Eu só acho é que, sei lá, muitos músicos têm naturalmente a ambição de viver da música, ou pelo menos pagar os seus instrumentos, as suas coisas. E enquanto que aqui eu sinto que não é porque tu fazes música mais comercial ou não sei o que é que vai bater, aliás, para quê? Estás a ver? Quase não há espaço em nada, então fazes só e pá, vais tocar ali, aqui, aquilo lá e acabas a fazer qualquer coisinha, não é nada de especial.


[No Brasil] não, quer dizer, se tivesse uma casa lotada, perdes dinheiro na mesma. O teu esquema tem que ser outro, é mais tipo fazer música que bata para que depois subas às casas onde aí realmente já consegues fazer. O esquema é outro. Eu aqui vivo de concertos, por exemplo, e os concertos que eu dou são, tipo, todos os que eu dei lá. Não é muito diferente. Se eu estivesse nesse esquema [brasileiro], era impossível viver de dar concertos. Lá achei particularmente injusto, pá, porque custa-me muito ver músicos inacreditáveis a darem um concerto do outro mundo, ganharem nada e pagarem o próprio Uber para casa.


Essa turnê que vocês tiveram com o Brasil começou pelo cantor  Monch. Queria saber como foi essa conversa que ele estava na Seloki Records no Brasil e foi para o Saliva aqui em Porto. Queria saber como veio essa história, como foi esse início de conversa, como foi a chegada.

Então, ele veio para cá experimentar viver durante uns tempos. Ele agora vai voltar [para o Brasil]. E, pá, foi isso, ele mandou-nos o disco, nós gostamos. Na Saliva só editamos por unanimidade, portanto o disco teve unanimidade. Ele já tinha a edição da Seloki e nós fizemos a edição cá em CD. E gostamos. Então, como ele vinha em novembro [de 2023], nós começamos [a trabalhar na produção dos shows]. Eu, o Ricardo, o Zé do Conferência Inferno e mais uma malta dos Marquise depois de o conhecer, ofereceram-se logo para tocar com ele, para ele ter uma banda disponível. Então foi tudo muito rápido. Em janeiro [de 2024] ele já estava a tocar e ao longo de um ano ele deu 20 concertos em Portugal. E agora ainda temos mais quatro concertos este mês, portanto foi uma surpresa.


E depois foi muito bem recebido. A música dele foi muito bem recebida aqui. Já há programadores interessados em tê-lo em festivais. Portugal tem muitos festivais também, isto aqui não é uma cena fixa. Tem 300 festivais, sim, em coisas mais pequenas. Festivais maiores quase nem interessam, tem muito poucos slots para bandas portuguesas. Mas os festivais pequenos, há muitos festivais, alguns só de música portuguesa.


E o Monch já está um bocadinho no radar. Usou várias formações diferentes, tocou em trio, tocou em sexteto, tocou com guitarristas diferentes, com bateristas diferentes. Acho que só eu é que toquei em quase todos, com teclas, sem teclas, experimentou tudo e mais um pouco.


E depois há uns apoios aqui, uns editais que a gente candidata, e que nos candidatamos para fazer a tour no Brasil, e o Monch é que estava a fazer a produção. Um bocadinho foi o que ele fez, não para compensar, mas para agradecer o que nós fizemos por ele. Já conhecia o pessoal aqui também, facilitando. Foi ele que marcou a tour toda, com a ajuda da Laura [Scotolo, auxiliou o Monch na produção da turnê ]. Mas foi isso, foi assim tudo muito rápido, um casamento muito rápido. Nós ainda hoje estivemos a tocar, ontem estivemos a tocar.


E também, tirando o Monch, veio a Sophia Chablau e Uma Enorme de Tempo também fazer turnê aqui na Europa. Foi o Monch quem organizou este concerto também. Ele que chamou o pessoal do Marquise, criou logo essas pontes. Aliás, foi engraçado, nós quando aterramos em Salvador, eles estavam lá. Então foram as primeiras pessoas que nós vimos quando chegámos ao Brasil, um pessoal do bem.


Vocês estavam falando aqui dos editais. Mas vocês têm um programa de incentivo do governo português, alguma coisa do tipo, ou vocês fazem muito por conta própria?

Do governo há alguns editais ou de instituições diferentes. Há alguns do governo, mas são muito difíceis e exigentes. O que tem dado para fazer mais tours é o da GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas). Imagina, nós temos a SPA (Sociedade Portuguesa de Autores), que é tipo a ABRAMUS (Associação Brasileira de Música e Artes), para autores. E depois há a GDA, que é para intérpretes – ou seja, não é para quem compõe, mas para quem toca. E a GDA tem apoios para edição e circulação. E nos candidatamos a um destes apoios à circulação, da Fundação GDA, que dá o suficiente para, no caso deste, ir ao Brasil, as viagens, para 3, 4 pessoas.


Neste caso, sem o edital nós não conseguimos ir. Porque apenas as bilheteiras não nos iam dar capacidade. Não temos essa capacidade para estar um mês sem esse apoio. O apoio foi mesmo fundamental. E vai ter que ser sempre nesta base. Para irmos, ou começamos a fazer algumas articulações com algumas ajudas. Mas acho isso mais difícil, é mais fácil tentar fazer através dos editais aqui. E pronto, se houver apoio, vamos, senão, não.


Você acha que, por exemplo, há editais suficientes? Você acha que é bem amparado ou falta apoio, nesse sentido?

Aham. É só um bocadinho menos. Os Tangolo Mangos também ganharam o edital e vêm à Europa – na realidade, estou a marcar a tour deles cá em Portugal.


Eu acho que está um bocadinho dos dois lados. Cá, eu não vejo muitas bandas a irem para o Brasil tocar. Porque há alguns editais que saem para mais bandas, mas também não são de muito dinheiro. Então é mais fácil para fazer coisas na Europa. Para ir ao Brasil tem que ser numa lógica de conseguir fazer tudo muito bem feito e ter alguns contatos e esta ficou uma benesse. Porque imagina, se tivéssemos que pagar estadia durante um mês, já não dá. Então, esta parte provavelmente é equivalente. Porque eu também vejo muitas bandas a virem do Brasil para cá. Eu acho que antigamente até havia um apoio específico para a Europa que era quase automático. Havia uma vontade de divulgar.


A música brasileira tem muito peso em Portugal. Toda a gente ouve música brasileira. Todos os lugares que tem, o pessoal fala, gosta. Toda a gente é fã, sobretudo de MPB, Samba, Bossa Nova; enfim, os clássicos. E mesmo a música underground, os Boogarins vêm cá e vai estar a casa cheia, de certeza. O Terno também veio tocar aqui. A SCUEPT encheu. Depois também há a comunidade brasileira crescente que acaba por se apoiar. 


Como os portugueses quando estão lá fora também apoiam, não é?  Quando somos imigrantes, se vem alguém do nosso país, nós queremos ir ver, não é? E por falarmos as mesmas línguas, aqui há todas as condições para as bandas virem.


Aliás, digo-te mesmo sem merdas se eu disser a um programador que quero ir tocar, a conversa é uma. Se eu disser que estou a fazer a tour de uma banda brasileira, que tenha o mínimo de reconhecimento, é mais fácil. Há logo uma sensação de que vai correr bem. Não estou a dizer que é só por serem brasileiros. Há logo uma abertura.


Talvez pela imaginação do que deve ser a banda.

É, sim. Opa, e na realidade eu percebo, não é? Há uma admiração pela cultura musical, não é? Que é uma coisa que aqui talvez comece a existir. Mas nós no domingo não vamos ao quintal tocar com os nossos tios e com os nossos pais. Aqui juntas têm família, mas é muito raro isso ser um evento musical. Há muito aquela... Eu sinto, eu quase, esse handicap.


Às vezes vejo músicos que parecem que nasceram com um instrumento. Eu não sinto que tenha isso. É uma coisa que eu comecei a gostar com 16, 17, 18 anos e que comecei a aprender. Então, ainda é um esforço para mim tocar. Depois vejo pessoas que... É, esse concerto de Kim e Dramma para mim foi um bom exemplo. Eles tinham 20, 21 anos e eu estava a olhar para aquilo. Com os olhos deles, nunca na vida. Tem uma coisa bonita. Ele não tem vergonha da tradição. Também toca um samba, também toca um MPB.


E há um repertório comum entre tu, teu pai, teu tio e teu avô. Todos conhecem, todos podem tocar e participar. E aqui há as músicas do meu pai, que são do meu pai. As minhas músicas, que são as minhas músicas. Ninguém se junta em nenhuma mesa para tocar as coisas dos outros. Acho que tem também isso entre as bandas.


Porque nós tivemos três semanas em São Paulo, uma semana em Salvador e tivemos um par de dias em Minas Gerais e um par de dias no Rio. Deu para perceber mais pelas conversas, como é que a cena girava. Opa, e lá está. As generalizações são feitas a partir da tua experiência. Acho que deves estar profundamente enganado sobre tudo. Mesmo na forma, no trato… Sei lá, vi uma coisa muito específica. Estava a mostrar uma banda de cá. E automaticamente...Acho que estava a mostrar... E vai, acho... O Tim, no carro. E ele gostou. E a primeira coisa que ele disse é que se ela algum dia vier, eu quero tocar com ela.


Primeiro também é a confiança, que às vezes não estamos habituados, mas que é bonita. Que é uma confiança que vem de um lugar de amor. De um lugar de... Eu gostei tanto disso que eu quero fazer parte. São pequenos detalhes que eu vejo diferenças Que eu não sei propriamente explicar de onde vêm, porque é que existem.


São... São só pequenas diferenças, mas que vão construindo e deixando com uma outra cara, talvez. Em um dos shows que vi havia um gajo que era organizador de sons, que tinha… As vozes das pessoas estavam a cantar as violas coxas. E estava numa mesa e estava a pôr efeitos por cima. E a criava assim um universo meio surreal. Super experimental. Lá estava uma pessoa a dançar pelo meio. Uma pessoa a fazer projeção através de líquidos num projetor.Eu fui vendo muita coisa lá. Senti-me como se estivesse lá um mês a viver e não propriamente a passear. Foi fixe.


E acho que vai incorporar algumas coisas do Brasil no disco novo do Baleia, talvez? 

Não tem como não. Acho que sim. Não sei. Sem querer já o estávamos a fazer, de alguma forma. Aliás, mesmo esta coisa de tocarmos músicas dos nossos amigos, isto já vem de uma tradição de ver concertos de bandas brasileiras que fazem muito isso. E não é assim tão comum aqui. Tipo, se tu fizesses uma versão, o mais normal seria fazer uma versão de uma banda estrangeira.


Tipo, tocar as bandas de outras pessoas e sobretudo dos teus amigos. Não é uma coisa que eu vejo com muita regularidade acontecer aqui. E nós com o Baleia já começámos a fazer isso e já tinha essa inspiração. Esta coisa da música não tem dono. A música é só um bem comum que nós queremos partilhar. E há coisas que certamente vão saltar. Para pedacinhos de letras, para ritmos… Nós somos influenciados por o que vivemos. É empírico.


Para encerrar, eu queria que você indicasse umas cinco bandas daqui de Portugal para o pessoal do Brasil.

Cinco? Eia! (risos) Assim, é duro estar a fazer esse trabalho, porque nós temos uma editora. Então, para mim, o maior… Obviamente que eu quero falar das bandas que estão na editora, mas já falamos do Marquise. Vão ter um disco novo. Conferência Inferno também falamos. Nós aqui já falamos de algumas. Já falamos do Maquina…


Então, excluindo essas que já foram citadas e apresentadas.

Eu acho que o bom do que se está a passar na cena aqui é que é muito fácil encontrar uma banda que te surpreende. Mesmo que às vezes não toque muito bem. Mas que se sente que tem uma mente, uma ideia. Há um caso, por exemplo, de uma banda que é os Unsafe Space Garden. Que são da Gig Rocks, que são de um coletivo amigo, uma editora. E eles têm uma coisa meio Frank Zappa, muito infantil, mas no sentido imaginativo da infantilidade. Muito livre. Os concertos deles são muito surpreendentes. Foi uma das coisas que eu mais me diverti a ver nos últimos tempos.


Há a Evaya, falamos assim brevemente. Ainda por cima eu acho que há uma tênue possibilidade dela ir ao Brasil tocar, por isso também gostava de lhe dar uma olhada. É outra coisa completamente diferente. É uma eletrônica textural, bastante experimental. E depois a voz é muito brilhante, quase fadinha. E a perspectiva deste disco tem uma coisa muito de integrar-nos na natureza, uma espécie de ativismo ecológico. Não assim tão estampado na cara, mas é só uma forma de estar. É muito bonito mesmo. E se de fato ela puder ir ao Brasil, acho que é um concerto a não perder. 


Olha, vou aconselhar uma banda que são Os Sereias. Há muitas bandas deste gênero agora a aparecer, aquela coisa meio declamada e não cantada. Os Sereias para mim são os primeiros que deram uma roupagem diferente. São um coletivo que se formou de uma forma meio anarquista e o vocalista é um poeta do Porto, já mais velho, um poeta libertário. E os shows são muito barulhentos, muito surreais de uma certa forma também. E para mim, porque representam este experimentalismo da cena underground, acho que eles são um bom exemplo disso. 


Tenho uma outra coisa para propor. É outro universo completamente diferente, mas é bem experimental. É a Joana Guerra. Ela faz música a partir da exploração experimental do violoncelo. Loops, efeitos. Alguns efeitos e voz. E eu digo na brincadeira que se eu estivesse a fazer um top 100 de concertos, havia 3 da Joana Guerra que estavam lá. Eu gosto, acho mesmo o único que ela faz.


Daniel Catarino, que ainda não falei dele, porque é um músico que nós também editamos, e na realidade eu também sou, às vezes, baixista dele. Tenho sido durante muito tempo. A Baleia faz uma versão de uma música do Daniel Catarino (Adultério na Igreja). Ele tem uma discografia, pá, de 20 discos. O último disco, eu fiz parte da gravação e da produção. E acho que gosto muito. E acho que também como tem muitos discos e muitas coisas para ver para trás. 


*


BANDAS CITADAS NA CONVERSA PARA VOCÊ CONFERIR:

  • Marquise

  • Conferência Inferno

  • Chat GRP

  • Maquina

  • Manipulador

  • Vitória Vermelho

  • Unsafe Space Garden

  • Joana Guerra

  • Daniel Catarino

  • Os Sereias

  • Evayad

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