Sérgio Ferro em Dois Tempos: Crítica ao Plano e a Singularidade pós 1990
- Esaú Brilhante
- 11 de jun.
- 8 min de leitura
Ensaio reflete sobre a produção do pintor curitibano a partir da exposição 'Sérgio Ferro Trabalho Livre'
Entre março e junho deste ano, a exposição Sérgio Ferro Trabalho Livre, esteve em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Com curadoria de Maristela Almeida e Fábio Magalhães, a retrospectiva abarcou todas as décadas da produção do artista, desde os primórdios dos anos 1960 até o presente.
Sérgio Ferro (1938, Curitiba) é um arquiteto, pintor e teórico brasileiro, conhecido por sua crítica à arquitetura tradicional e seu engajamento com uma abordagem social da prática arquitetônica. Foi professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), onde teve um papel fundamental na formação de gerações de arquitetos. Nos anos 1970, devido à repressão da ditadura militar, exilou-se na França, onde continuou sua carreira acadêmica e teórica. Mais do que uma homenagem merecida, a exposição Sérgio Ferro Trabalho Livre também é um convite para uma produção significativa no entrecruzamento de arte e política que se deu no contexto brasileiro dos últimos 50 anos.
Menos do que promover uma análise ou “resenha” da exposição, proponho-me aqui a articular algumas ideias a partir dela. Dessa forma, buscarei concentrar o meu recorte no campo da produção das artes plásticas, ao passo que a arquitetura será contemplada de forma tangente. Me proponho apresentar duas análises de momentos diferentes da produção de Ferro. Na primeira, abordarei como a produção de Ferro insere-se no contexto da ”crise do plano”, ou seja o debate envolto na negação da superfície pictórica (plano do quadro) no contexto das artes plásticas durante a década de 1960. Já na segunda, buscarei interpretar elementos da produção de Ferro a partir dos anos 1990 como sua produção mais potente e singular. Essas duas reflexões são complementares e proporcionam uma visão consistente sobre alguns dos debates presentes na exposição.
I. A resposta de Ferro à Crise do Plano
A “crise do plano”, refere-se à instabilidade ou problematização da superfície bidimensional tradicional, o plano pictórico da pintura – ou seja, a própria superfície do quadro. Desde o Renascimento, o plano pictórico funcionava como uma janela estável e organizada para o mundo representado. Com o advento das vanguardas modernistas (como o cubismo, suprematismo e neoplasticismo), esse plano começou a ser colocado em evidência. A pintura passou a evidenciar sua própria materialidade e estrutura, rompendo com a ilusão de profundidade e com a narrativa linear.
No livro A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition (2000), a crítica de arte estadunidense Rosalind Klauss apresenta uma crítica ao princípio de autonomia que o plano pictórico significou para alguns modernistas no começo do século 20, crentes em sua estabilidade. Para artistas como Piet Mondrian (1872-1944) e Kazimir Malevich (1879-1935), o quadro era valorizado como uma superfície pura, autônoma, plana, onde a profundidade ilusionista era eliminada. O abandono da pretensão de autonomia possibilitou a reapropriação de outras plataformas mais ricas e consonantes no momento da sociedade capitalista do pós-guerra. Em tensão com os canais de conexão dos bens de consumo, por exemplo. Ou seja, a negação da tela representou uma crise tanto formal quanto teórica, porque envolveu o modo como os artistas lidam com a representação, o espaço e o significado de suas produções.
Em Teoria da Vanguarda (1970), o filósofo e ensaísta alemão Peter Bürger argumenta uma dissonância das neovanguardas dos anos 1960 com as do período “heróico” do anos 1920. Valendo-se do conceito de “instituição arte”, ou seja, pensando a arte como fenômeno social além de dialético entre produção e recepção, ele considera que essas produções perderam a mediação privilegiada e repetem as estratégias anteriores como “tragédia”, sem promover o choque desalienador das vanguardas dos anos 1920. Essa perspectiva vai de encontro com a anterior, de Klauss, para quem a condição “pós-meio”, essa superação das categorias tradicionais de meios artísticos, seria exatamente uma possibilidade de crítica institucional, revigorada e adaptada ao novo formato da arte pós-guerra.
Pensando na produção de Ferro no contexto desse debate, seu início na década de 1960 nos apresentou uma alternativa, dentro do próprio plano, para a sua crise. Tais como outros artistas do período, o pintor e escultor argentino Lucio Fontana (1899–1968) é um exemplo latinoamericano que em muito dialoga com a produção de Ferro, com seus cortes na tela que evidenciam o plano da obra. As respostas de Ferro vem de uma “disputa” no plano, de uma autoconsciência de seu plano de trabalho, mas juntando em um mesmo “ente” o trabalho plástico e a construção civil.
Usando uma “técnica mista”, obras como Greve (1961), realocaram o plano como forma plástica produtiva consonante ao processo de instrumentalização do modernismo pela burguesia brasileira na construção civil, aglutinando em sua superfície uma materialidade bruta, quase recalcada desse processo agora em evidência. Esse mesmo processo, pautado em uma dependência histórico-social de um capitalismo periférico, é relido sobre o plano como farsa. A fuga do plano não se tornou uma alternativa visto que a produção ainda era tida de forma hegemônica no Brasil, em seu caráter dependente.

Já a obra Revolução (1961), seguiu ao utilizar uma materialidade recalcada no plano, e isso retorna ao alto modernismo, com uma de suas principais ferramentas: a colagem. Na colagem, a sociedade de massa brasileira aparece não como Pop, mas como resto de consumo – jornais, tinta, madeira. O que aparece estranhado em outros ramos na produção aqui se mostra como contradição plástica.
Na década de 1970, durante a ditadura militar, Sérgio ainda prosseguiu nesse processo de trabalho com o plano, mas fora no “enquadramento” – como se criasse o ente, agora em regime de urgência, fora da rigidez hierárquica do espaço simbólico da “representação”. Sua materialidade anterior torna-se “presencialidade”. São desse contexto: São Sebastião (Lamarca) (1971) e São Sebastião (Marighella) (1969–1970). Nelas os suportes sobre madeira – sobre os quais foi aplicado acrílico; parafuso; metal; acrílico e látex; imagem de gesso – agora remetem a uma presença em frente ao espectador, não mais em um outro campo, “perdido” e envolto dos materiais da construção, do trabalho mascarado sob o “milagre brasileiro”.

Esse primeiro momento da produção artística de Ferro corresponde a uma resposta à crise do plano. Colocar o plano em perspectiva é evidenciar a relação entre produção e as condições objetivas de uma realidade específica. Sua obra não “saiu” do plano mas “trouxe” para sua superfície elementos que estão presentes em outras formas de produção, como a construção civil. Isso envolve, por exemplo, o sonho modernista ligado ao desenvolvimentismo no pós-guerra (presente em países Latino-americanos), assim como a reorganização das formas do fazer artístico diante da nova sociedade de massa.
II. A excepcionalidade da produção de Ferro a partir dos anos 1990
Essa fase ainda dialoga com a anterior: pode-se perceber que suas buscas por respostas ao plano continuam presentes aqui, mas por meio de outras ferramentas – uma mudança de tática sem alterar a estratégia. Em sua obra teórica, especificamente no livro Artes Plásticas e Trabalho Livre – vol. II, Ferro apresenta o Cubismo Analítico como a construção pictórica mais forte e significativa desde a perspectiva renascentista. Os princípios do Cubismo Analítico, tal como formulados por Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963) entre 1909 e 1912, envolvem a decomposição das formas em múltiplas perspectivas, fragmentando o objeto para revelar sua estrutura interna e sua articulação com o espaço. Assim como a incorporação na tela elementos não comuns às artes plásticas até então, como jornais. São desse período obras como Ma Jolie (1911–1912) e Garrafa, copo e violino (1912), ambas de Picasso, e The Portuguese (1911), de Braque.

Ou seja, no Cubismo Analítico, há uma tentativa de expor a totalidade do real como uma construção, desmontando a ilusão da representação naturalista e ressaltando o fazer artista como mais um dentro de outras formas de fazer.
A produção de Ferro a partir dos anos 1990 segue princípios das colagens do Cubismo Analítico, o de recolocar a arte na esfera da produção social e negar sua subordinação. Porém, agora os usa como princípios norteadores para uma volta ao interior do plano, sem necessariamente acrescentar a ele elementos externos. Com um fazer à mostra, presente nas colagens por meio da pintura, rascunho a mostra, e somados à técnica do non finito.
O non finito, enquanto prática, ressalta o processo do fazer e, consequentemente, evidencia a subordinação da obra ao trabalho, recuperando o estranhamento próprio de uma feitura “em si”. Essa técnica, cuja formulação é atribuída a Michelangelo (1475-1564), consiste em deixar a obra aparentemente inacabada, como se ainda estivesse em processo. Revelando, assim, as marcas do trabalho manual, os vestígios do esforço criativo como nas obras Pietà Rondanini (1552–1564) e São Mateus (1506), ambas esculturas de Michelangelo, ou em Adoração dos Magos (1481), pintura de Leonardo da Vinci (1452-1519). Mais do que uma questão formal, trata-se de uma escolha estética e filosófica que recusa a ideia de obra "concluída", trazendo à tona o embate entre o artista e o material, o gesto e a resistência da forma.

Nesse momento, Ferro “descolou” ícones das pinturas renascentistas, símbolos da negação e do encobrimento do trabalho, e os “colou” em um novo regime de visibilidade: agora, esses elementos aparecem à mostra e vivos. Se antes era como se as artes plásticas fossem ao canteiro de obras, agora é como se, conscientes de sua potência na feitura, as contradições se dissipassem e as artes se afirmassem plenamente como obra plástica na fatura final.
Não se trata aqui de estabelecer um “purismo” plástico ou uma autonomia readequada. A intenção é chamar atenção para alternativas de subversão do sentido plástico enquanto determinação reflexiva da produção social, com as artes inseridas em um “regime de Agitprop”, como aponta Ferro ao discutir o Cubismo.
A relação dialética da vanguarda não consiste em reviver formas passadas, mas em compreender qual a melhor tática para a conjuntura presente. Lenin já indicava, no campo político e artístico: “É necessário saber, em cada momento, encontrar o elo particular da cadeia que devemos agarrar com toda a força para dominar toda a cadeia.” Essa lógica se expressa na junção e instrumentalização antagônica de formas plásticas em uma unidade de produção insubordinada.
Quando Marx, na Crítica da Economia Política (1959), afirma que a transformação do trabalho em capital ocorre apenas no processo de produção, Ferro respondeu a essa tese ao buscar na feitura os modos de desarticular a subordinação do trabalho, sustentando sua ideia das artes plásticas como possibilidade de trabalho livre. Na fatura final de suas obras, observa-se uma reorganização da montagem como forma de trabalho em si, ou seja, o trabalho ocupando o lugar da representação. A forma está ali e, ao mesmo tempo, permanece inacabada; a marca reaparece (como uma pincelada evidente e orgulhosa), o fundo é “cancelado” com cor sólida. A produção ativa assume agora um regime propriamente plástico.
Esse momento pode ser considerado como o mais expressivo da produção de Sérgio, pois suas respostas tornam-se mais diversas e potencialmente revolucionárias – uma vez que a arte, mesmo como ideia abstrata, não está fora da luta de classes, e o plano, em sua concretude, tampouco. Essa forma, portanto, clama por disputa em seu próprio campo. Em Jeudi de la Passion (2012), por exemplo, um rascunho do desenho foi colado na ponta direita da obra, muito semelhante à imagem que foi ao quadro. Ambos, lado a lado, rompem com a hierarquia entre desenho e pintura. Não são meramente fases do trabalho, mas expressões de liberdade, exteriorizações mediadas pelo quadro. Não existe “inacabado”: há apenas feitura e fatura coexistindo em unidade. Isso não separa as artes em um mundo austero e distante, mas as coloca no presente, ativas, como denúncia e também como nova possibilidade de plástica.

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