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Notas sobre Uma Transa AntárticAmazônica

Atualizado: há 3 dias

Luca Scupino e Mariana Mariotto participam da abertura da nova exposição da Casa Seva, em São Paulo


A Casa Seva, galeria de arte com enfoque em sustentabilidade, abriu a exposição Uma Transa AntárticAmazônica em 27 de maio. Criada em agosto de 2024, essa é a quinta exposição da galeria e traz dois nomes da fotografia brasileira: Jorge Bodanzky (82 anos) e João Paulo Barbosa (51).


Esse encontro entre fotógrafos surgiu de uma espécie de sonho de Carolina Pileggi, curadora e fundadora da galeria, e celebra um olhar íntimo para os detalhes de duas paisagens aparentemente díspares: a Amazônia e a Antártica – ambientes fotografados por Bodanzky e Barbosa, respectivamente. Ambos os fotógrafos conhecem bem essas duas localizações e as exploram em seus mínimos detalhes, com uma abordagem poética e também científica, trazendo suas correlações para o equilíbrio ambiental.


Dois olhares, duas gerações, diferentes técnicas e formas de retratar aquilo que, para nós, é tão distante e intocável. As fotografias não exibem sinal de vida humana ou animal e são, em sua grande maioria, focadas em detalhes das paisagens – ora fluidos, ora geométricos. Este olhar preciso aponta para a familiaridade dos fotógrafos a estes ambientes, como se sua presença naquele bioma fosse mais que uma visita, mas uma segunda moradia. Assim, há um paradoxo entre a ausência de vida nas paisagens e a presença não anunciada dos artistas por trás das câmeras, informando uma relação de mutualismo: os fotógrafos se tornam parte do ecossistema retratado.


A fotografia de cima é de João Paulo Barbosa. Embaixo, fotografia de Jorge Bodanzky. Imagem: Luca Scupino
A fotografia de cima é de João Paulo Barbosa. Embaixo, fotografia de Jorge Bodanzky. Imagem: Luca Scupino

São desenhos, formas e contornos que só a própria natureza poderia criar. Riscas e fendas; ou copas e troncos de árvores retorcidos; o gelo que derrete e escorre, formando uma poça que parecia ser de chuva amazônica. O tipo de detalhe que se enxerga quando se conhece um lugar com intimidade; tendo a licença para exibir as “partes íntimas” desses biomas que normalmente são retratados em sua totalidade: pela sua grandeza; pela sua riqueza natural, vegetal ou animal; pela lente do exótico. Aqui, vemos as cenas por um olhar tão localizado que poderiam ser em qualquer lugar. Apesar de distintas, as paisagens começam a se aproximar e se confundir.


Fotografia de Jorge Bodanzky
Fotografia de Jorge Bodanzky

Em 1974, quando Jorge Bodanzky propôs a noção de “transa” para compreender a realidade da Amazônia e do Brasil no título de seu filme Iracema – uma Transa Amazônica, trata-se de um conceito que vai além do trocadilho com a rodovia que rasgaria a região em duas. Com o aceno à tropicália de Caetano Veloso e à antropofagia oswaldiana, a “transa” é aquilo que trama, que mistura e que a tudo engolfa: em suma, o caos natural capaz de perturbar a ordem da civilização a qual, acreditavam os militares, seria trazida para aquele “inferno verde”.


Nesse sentido, trazer essa ideia para contrastar, em um gesto comparativo, as imagens tanto da Amazônia quanto da Antártica posa um desafio: como aproximar as duas realidades no que possuem em comum e ao mesmo tempo manter as singularidades de seus biomas, seus problemas sociais e ambientais, ou mesmo a identidade estilística de seus fotógrafos?


É um fato, mencionado em uma das entrevistas que constam na exibição, que as correntes polares da Antártica chegam na Amazônia, ao passo em que a fuligem das queimadas no norte do continente sul-americano chegam ao gelo do sul por meio de “rios voadores” e depositam-se sobre ele. A natureza é, por definição, algo em movimento constante, sempre se comunicando de maneiras inesperadas, estabelecendo novas relações em uma espécie de transa. E esta ideia é, então, incorporada para a maneira como se organiza a exposição.


Sem oferecer a identificação do local ou dos autores de cada imagem, as fotografias são postas lado a lado e propõem ao espectador que este mesmo estabeleça as conexões. Se, no início, as diferenças entre as imagens parecem claras (verde de um lado, azul do outro), com o tempo as coisas começam a se confundir. Até chegarmos ao final da exibição, quando somos deixados com a impressão de que aqueles dois biomas passaram a se contaminar, em uma espécie de transferência térmica das imagens. A dialética é menos intelectual do que puramente sensorial, evocando a umidade, a temperatura, a geologia e a vegetação dessas regiões que passam a se comunicar pelas molduras das fotografias, naquele cubo branco onde tudo é possível.


Lado a lado, as semelhanças vão se tornando progressivamente mais evidentes que as diferenças. Entre o movimento e a estaticidade, o calor e o frio, entre os contornos turvos e a geometria da linha, entrevemos os conflitos e os rastros de um mundo que é apenas um. E que, sobretudo, permanece altivo face ao perigo cada vez mais próximo, seus mistérios sondados pela expedição do fotografar.


Bodanzky documenta a Amazônia em filmes e fotografias há mais de 50 anos, ele a conhece como a palma de sua mão. No entanto, é de se surpreender que o cineasta, com o passar da idade, sempre encontra novas maneiras de lançar seu olhar à realidade da região. Ele afirmou, no debate após a inauguração da exposição, que “toda visita é como se fosse a primeira”. Seu trabalho é profundamente ligado a esta fenomenologia do olhar, que vem de sua herança como fotógrafo – ele mesmo opera a câmera em todos os seus filmes e afirmou, em uma entrevista realizada à Mnemocine em 2023: “meu cinema é o meu olhar da câmera, eu faço cinema através da minha câmera”.


No caso, as fotografias evidenciadas nesta exposição se distanciam da abordagem documental e mais diretamente social presente nas imagens exibidas na exposição “Que País é Esse: a câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985”, organizada pelo Instituto Moreira Salles (IMS) e atualmente em exibição na cidade de Brasília. Suas imagens da Amazônia, aqui, propõem um entendimento sensível no nível dos detalhes, buscando, mais do que mostrar algo ou produzir uma tese sobre a região, capturar uma sensação, o movimento fugidio de uma natureza em risco de desmanchar no ar.


Fotografia de Jorge Bodanzky
Fotografia de Jorge Bodanzky

Se fotografar é o ato de inscrever a luz em imagens, o cineasta Bodanzky a inscreve como cinetismo: o uso da exposição longa, de zooms na própria fotografia, além de movimentos da câmera dão às imagens um aspecto turvo, esfacelado. O que ele busca não é a abrangência da paisagem, mas o infra presente na unidade mínima da natureza visível pelo olho da câmera. O mundo visto no verde de uma planta, na superfície de um rio, no borrão da terra, que evapora no calor. Uma Amazônia a qual não se pode enxergar senão detendo o olhar naquilo que escapa e se transforma.


O longa-metragem Iracema aponta como as forças destrutivas do capitalismo se entranham nas relações sociais de uma região vítima do subdesenvolvimento e na própria maneira como o ambiente é percebido. Esta denúncia presente no filme dá lugar, na exposição, a um outro olhar: menos voltado ao que foi destruído e mais voltado à natureza que, de alguma maneira, restou e comunica algo em seu aspecto mais abstrato.


Enquanto a Amazônia de Bodanzky é fluida, a Antártica de João Paulo Barbosa é rígida, linear, geométrica. Uma imagem relata a mobilidade da natureza evanescente, a outra produz imobilidade. Mas este aparente equilíbrio é instável: existe uma ordem e a imagem fotográfica, que rouba o instante em seu menor compasso, é a sua perturbação. Como uma casa de cartas, as imagens mostram uma beleza sensível que pode se desintegrar no mínimo desequilíbrio.


No bate-papo da exposição, em 27 de maio. Imagem: Luca Scupino
No bate-papo da exposição, em 27 de maio. Imagem: Luca Scupino

Das fotografias de Barbosa, uma das mais impactantes é aquela localizada logo de frente à entrada da galeria, que mostra uma superfície branca de gelo, coberta pela neve, com um enorme “rasgo” na diagonal, uma rachadura que forma um rio gelado profundo. Há, na mesma imagem, a estabilidade de uma paisagem intocada pela civilização junto de uma enorme violência do corte que a atravessa, mostrando um mundo rachado em dois – talvez a “rasgadura” de que fala o crítico de arte francês Didi-Huberman em seu livro Diante da Imagem (Editora 34, 2013), um corte que suspende nosso conhecimento e que nos coloca em contato direto com o imponderável na representação artística. Toda geometria se encontra no limiar da instabilidade.


Por mais distante que o continente gelado pareça da Amazônia – seu oposto absoluto em termos de clima, flora e vida animal – permanece em comum a ideia de pertencimento à terra: Barbosa, como afirmou na inauguração, foi adotado e não conhece sua origem ou mesmo o local onde nasceu. Neste sentido, encontrou a Antártica como um lugar em que pôde definir como seu berço e, além disso, uma utopia à qual todos os povos pertencem – afinal, o continente é governado por dezenas de metrópoles pelo mundo. Ao mesmo tempo, não deixa de ser irônico que, na condição de colônia, a Antártica emerja como o local onde tudo e todos se encontram; o ponto no qual as experiências dos dois biomas talvez mais se estreitem.


Fotografias de Jorge Bodanzky, à esquerda. À direita, fotografias de João Paulo Barbosa. Imagem: Mariana Mariotto
Fotografias de Jorge Bodanzky, à esquerda. À direita, fotografias de João Paulo Barbosa. Imagem: Mariana Mariotto

Ao contrário de Bodanzky, para Barbosa toda vez em que está na Antártica surge o medo de ser sua última visita. Isso porque os olhos da exploração e do turismo local têm se tornado cada vez mais intensos nesse continente. Por mais exótico e intocável que possa parecer, o ponto mais frio e seco do planeta Terra é um território internacional, com leis próprias e regido pelo Tratado da Antártida (1959), o qual determina que o local deve ser preservado e não deve ser palco de disputas devido a sua importância ambiental. O Tratado defende principalmente a liberdade de pesquisa científica, o uso da região para fins pacíficos, a proibição de explosões nucleares e de novas reivindicações territoriais, segundo artigo do Jornal da USP. 


Lá estão instaladas centenas de bases, de 29 países diferentes, todas com intuito de pesquisa científica – biotecnologia, bioprospecção, campo magnético, propagação de ondas de rádio e a observação de raios cósmicos são exemplos dos estudos realizados na Antártica. Barbosa também aponta esse continente como um local de alta prospecção mineral. A exploração é proibida no local, por ser economicamente e ambientalmente inviável. Países se interessam por reservas minerais de cobre, ouro, platina, prata, carvão e petróleo – o artigo estima cerca de 200 bilhões de barris de petróleo. Sem o Tratado, é possível que os interesses econômicos já tivessem devastado por completo o chamado “último continente”, sendo este alvo de exploração e posse desde sua redescoberta, no século 19, até a primeira metade do século 20.


Fatores como o clima, a distância ou mesmo as dificuldades do trajeto – como a Passagem de Drake, uma zona marítima de ondas gigantes e tempestades impiedosas – seriam, para muitos, um impeditivo para viagens ao continente antártico. Ainda assim, nenhum deles foi um problema para alguns aventureiros dispostos a enfrentar essas condições. Como foi o caso de Amyr Klink, velejador brasileiro, que fez sua primeira expedição marítima rumo à Antártica em 1989 e, mais tarde, em 2006, com toda a família – sempre com um propósito documental, educativo-ambiental.


Barbosa, porém, chama a atenção durante sua fala no bate-papo de abertura da exposição para o fato de que o turismo na Antártica aumentou, principalmente a partir de 2020. Segundo a Associação Internacional de Operadores de Turismo Antártico (IAATO), o continente chega a receber 78,5 mil turistas do mundo todo durante o verão (de novembro a março). Se essa parecia ser uma região difícil de se chegar, atualmente existem agências, pacotes e programações turísticas para o local, possível de ser alcançado via cruzeiro, vôo ou embarcação.


Fotografia de João Paulo Barbosa
Fotografia de João Paulo Barbosa

Por mais que na sua fala e pesquisa Barbosa exponha uma Antártica “em ruínas”, essa parte não se faz presente nas fotografias. A presença humana, as mudanças climáticas, a devastação não aparentam ser o foco principal da exposição. Mais do que uma exposição sobre a devastação dos biomas, Uma Transa AntárticAmazônica versa sobre os traços da natureza e seu dom de interligar o funcionamento do planeta. O fato de que esses dois ambientes estabelecem uma relação simbiótica e estética, independente (ou justamente por causa) de seus contrastes. Sem ao menos a presença da diversidade animal, vemos uma Amazônia e uma Antártica como dois lugares distantes, intocados, repletos de silêncio. É como se, finalmente, deixássemos a natureza existir em profundidade e serenidade.


SERVIÇO

Uma Transa AntárticAmazônica

Casa Seva

Vila Modernista, casa 1 / Al. Lorena, 1257 – Cerqueira César, São Paulo (SP)

Terça a sexta-feira, das 11h às 18h; Sábado, das 11h às 15h

Até 02 de agosto

Entrada gratuita

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