Escavar a história: registro como arqueologia de si
- Mariana Mariotto
- 3 de jun.
- 9 min de leitura
Atualizado: 4 de jun.
Além de rockstar, quando eu era criança queria ser arqueóloga. Achava interessantíssima essa coisa viajar para lugares exóticos, estudar civilizações antigas e procurar alguma coisa – qualquer coisa – até encontrar. Uma vez, questionei minha mãe dizendo que o mundo inteiro já tinha sido desvendado. Já se sabiam todas as respostas, fórmulas e leis, todas as moléculas, espécies, países, línguas e culturas. Não tinha uma ponta solta, não deixaram mais nada para ser descoberto. Minha única função era engolir (aprender) tudo aquilo.
Esses dias, estava na casa da minha tia, até que encontrei o livro perfeito: Teach Yourself Archaeology (1953, English Universities Press), de Stanley Graham Brade-Birks (1887-1982). Espirrei todas as vezes que o abri. Nas dedicatórias: Para Hilda, Mary, Elizabeth e……………………… MARIANNE! Não sei você, mas pra mim, esse foi um sinal claro de que era o momento de retomar essa minha vontade e escavar a história – alguma história.
Neste mesmo período, fui à Galeria Superfície para visitar a exposição da Ana Amorim (1956, São Paulo) e me encantei com essa grande… escritora! Em tecidos ou papeis, ela relata objetivamente os percursos de seu dia em Mapas Mentais. Amorim registra o que faz, o que deixou de fazer e, muitas vezes, a vida ao seu redor: os acontecimentos políticos, os trajetos pela cidade, a localização dos moradores de rua.

Enquanto os arqueólogos se fascinam pelo passado, Amorim tenta, a todo custo, estudar e registrar o presente – ciente de que essa tarefa é uma causa perdida. Ela sabe até o número de passos que deu em determinado dia, registrando o resultado com um sistema super específico, no qual também se revela: a data do percurso–sua idade–quantos dias faltam para finalizar o ano. Por exemplo: 16052025–25–229, ou seja, o dia que eu visitei a exposição (16 de maio de 2025), minha idade naquele dia e quantos dias faltavam para acabar o ano. Muitas vezes, o título de suas obras é criado a partir desse sistema.
Um exercício que evidencia, mesmo sem querer, a repetição e a simplicidade escondidas no cotidiano e, quando colocadas sob outra escala, tornam-se uma vida inteira. A singularidade dos dias se transforma em um aglomerado de camadas que só param de se sobrepor com a morte. E aí só resta essa quantidade enorme de pequenas crônicas do dia a dia.
Uma das primeiras coisas que aprendi no livro emprestado, é que a arqueologia “é uma área em que qualquer pessoa inteligente pode conter proficiência suficiente para apreciar objetos do passado distante, ou mais recente, e fazê-los contar sua história” (p. 13).

Participante da exposição Tempos Fraturados, no MAC-USP (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo), Ana Amorim trouxe um painel de 365 objetos envoltos por uma embalagem de plástico. Este trabalho resultou de um exercício diário no qual a artista procurava por um objeto ao seu redor imediato. Cada objeto registra um momento, uma história, uma cor específica. Ao todo, eles compõem um diário visual, além de uma coleção de evidências ou, melhor ainda, de artefatos históricos. Não são só lembranças, mas vestígios de um indivíduo, de uma existência. É Ana Amorim se fazendo presente no mundo. De que forma se expressam as diferenças entre as seguintes imagens se, em sua essência, ambas dizem: “eu estive aqui”?


Mapas, passos, objetos, palavras… Tudo se soma à tentativa de segurar o segundo, evidenciar a existência. A princípio, quando a artista decidiu que faria da própria vida a sua arte, os Mapas Mentais não eram para serem vistos, mas imaginados. Mesmo com o desenvolvimento do trabalho, que agora exibe os mapas em diversas superfícies, Amorim mantém o exercício de escrever no diário e registra seus percursos todos os dias há quatro décadas (desde 1987). Na exposição da Galeria Superfície, seus primeiros diários aparecem expostos em um pedestal; uma caixa de vidro os preserva e os protege, como documentações antigas, sagradas.

Você sabia que Annie Ernaux, escritora francesa, mantém dois diários? Um para si e outro para rascunhar seus livros. Apesar de alguns de seus registros pessoais pararem em seus livros, para complementar raciocínios, eles nunca são escritos pensando na publicação final. O processo de escrita de Ernaux é detalhado em Escrita como faca e outros textos (2023, Ed. Fósforo), no qual temos acesso a uma entrevista/troca interessante com o escritor Frédéric-Yves Jeannet.
O uso do diário não só representa um espaço seguro de reflexão, como também um lugar de revisitar memórias, percorrer pelos tais caminhos que esquecemos, mas que em um dia específico foram tão reais, tão profundos. Daí surge a pior questão do mundo: escrever para esquecer ou escrever para lembrar? Na dúvida, me mantenho na segunda opção.
Registro e mantenho diários desde meus 12 anos, raramente pego algum para reler. Mas eu gosto da sensação de que está tudo registrado; tudo existiu embora eu não me lembre, embora o tempo passe tão rápido. A certeza do registro é um atestado contra a insanidade. É um lembrete de que fomos capazes e, portanto, talvez ainda sejamos. É ter onde despejar tudo aquilo que ninguém quer ouvir mas que você quer muito dizer. Registrar é me sentir no mundo e sentir o mundo em mim.
Acho que a minha mãe também é um bom exemplo disso, já que sua única certeza de todas as viradas de ano é que vai comprar uma agenda nova. Ela gosta dessas pequenas, de levar na bolsa. E ela guarda todas elas. Claro que não é metódica no registro tanto quanto Ana Amorim, afinal, trata-se de um objeto de organização pessoal que não possui um propósito artístico como finalidade.
Então resolvi mudar isso. Minha mãe não é artista, mas eu fiz o favor de escavar essas agendas. Já estava com essa ideia quando vi um trabalho de Leila Danziger (1962, Rio de Janeiro), Todos os dias de nossas vidas (2013-2015). Nele, a artista e poetisa organizou uma coleção de agendas vazias de seu falecido pai, experiência também narrada em seu livro Ano novo (2016, Editora 7Letras).

Comentei sobre esse trabalho em outro texto, e desde então tenho essa vontade de também revirar as agendas que minha mãe coleciona. Na verdade, a palavra “colecionar” tem um sentido muito puro para a ocasião. Quando colecionamos tendemos a manter esses objetos completamente intactos. Não é o caso. Eu mantenho meus diários, minha mãe mantém suas agendas. É nessa conotação de guardar o registro como comprovação da existência que quero seguir.

Não quero tirar nem um porcento do mérito e nem de toda a poesia e beleza desse trabalho de Leila Danziger. Só que, por muito tempo, fiquei com essa questão na cabeça: de como é impossível alguma mulher – ou melhor, alguma mãe – se dar o luxo de simplesmente colecionar agendas vazias, totalmente em branco, como é o caso do pai da artista.
Nas agendas lotadas e rabiscadas da minha mãe, notamos a vida de uma mulher que não perde um evento, um aniversário, reunião ou item da lista de supermercado. Uma mulher que vem e que busca e possui dois empregos diferentes, além de ser mãe e esposa. Acho que, dez anos atrás, ela não entendia esses últimos dois itens como um terceiro e quarto trabalho – fora a parte de manter uma casa, que também dá uma trabalheira por si só. Em qual lugar deste planeta uma mulher coleciona agendas completamente vazias?
Aqui, portanto, pretendo fazer uma releitura da obra de Danziger. Trazendo sua série de composições com agendas como inspiração, pedi a licença da minha mãe para folhear suas agendas e exibi-las. Ela autorizou.

Vejo nas agendas de minha mãe essa comprovação da existência ligada também ao orgulho, como um memorial de tudo que foi feito em um ano. As pequenas conquistas do dia dia. Como uma questão de superação, de olhar para trás e se sentir vitoriosa. Por qual outro motivo guardaríamos nossas agendas?
Nas obras de Ana Amorim, vemos mapas complexos e dias intensos de trabalho, ao mesmo tempo que vemos dias de ócio. A artista também faz questão de escrever sobre esses dias, pelo motivo que for, e ainda assim registra o número de passos que deu, mesmo sem sair de casa. Em um mar de caminhos percorridos, o que mais me chamou atenção na exposição da Galeria Superfície foram esses dias de pausa.


Com Teach Yourself Archaeology, aprendi que o estudo da arqueologia não depende, exclusivamente, do estudo de campo. Não é a sujeira da terra que define um arqueólogo – apesar desta parte poder estar contida no pacote. Uma parcela importante da arqueologia vem da contextualização, da pesquisa, da interpretação e do uso da literatura a seu favor.
Além disso, Brade-Birks nos lembra constantemente: qualquer um pode fazer arqueologia. Já que viajar para lugares exóticos e estudar civilizações antigas não é necessariamente uma exigência – nem uma realidade, muitas vezes –, ele sugere começar pelo nosso próprio bairro, pelas coisas ao nosso redor.
Contato diário com pessoas, conversas casuais podem revelar pontos de interesse que ninguém no mundo inteiro, por mais inteligente que seja, pode ter uma oportunidade tão boa de aumentar a soma do conhecimento humano. Escute as pessoas mais velhas falando sobre a época da escola e suas infâncias: eles podem lembrar de costumes e crenças que estão quase esquecidos. Eles podem te dizer canções antigas e histórias passadas que nunca foram escritas. (BRADE-BIRKS, p. 196)
É isso que a Mrs Dalloway de Virginia Woolf (1882-1941) faz ao passear por Londres enquanto interage com seus vizinhos, produzindo um retrato da sociedade pela perspectiva de uma mulher aristocrata. Isso é o que a minha mãe faz em suas agendas, sem se dar conta. É o que Annie Ernaux e Ana Amorim fazem: registram em diários os aspectos do tempo em sintonia com suas vidas pessoais.
No final das contas, não virei arqueóloga. Mas, pensando bem, a escrita não deixa de ser uma arqueologia, uma escavação. Quando começo um texto, não sei bem por onde ir, não sei o que vou encontrar, mas tem aí alguma coisa, eu posso sentir. Vou me aproximando, chego muito perto, até encontrar. De forma semelhante, Ernaux revela:
Para mim, antes de escrever não existe nada além de um material informe, lembranças, visões, sentimentos etc. Todo o desafio consiste em encontrar as palavras e as frases mais precisas, que farão as coisas existirem. (ANNIE ERNAUX)
Encontrar palavras. É verdade que não busco por segredos das civilizações antigas, mas por palavras – uma por uma, até formar uma sequência que faça sentido. Essas frases vão compor toda uma história, extraída não do solo literal, mas da vida em si.
Virginia Woolf também me entende: com tempo e investimento suficientes, a escritora inglesa foi capaz de desenvolver sua escrita de uma forma que diversas outras autoras femininas da mesma época não conseguiram – trata-se do início do século 20. O processo criativo de seu quarto romance, Mrs Dalloway, está documentado em diários e outros tipos de arquivos. Ao acessar esses textos, datados de 1923, a pesquisadora Ana Carolina Mesquita transcreve, em seu artigo Escavando cavernas (2025) para a revista Quatro cinco um, o relato da descoberta de uma nova técnica de escrita:
Eu devia falar sem parar [...] sobre minha descoberta: como escavei lindas cavernas atrás dos meus personagens; acho que isso me dá exatamente o que eu preciso. (VIRGINIA WOOLF em seu diário, 30 de agosto de 1923)
Pouco tempo depois, a escritora inglesa percebe:
Levei um ano inteiro tateando até descobrir o que chamo de minha escavação de cavernas, processo com que revelo o passado em prestações, à medida que me vem a necessidade. (WOOLF em seu diário, 15 de outubro de 1923)


Esse método de escrita, que Woolf chamou de “cavernas”, recupera experiências e memórias próprias que se cruzam embaixo da terra e, quando necessário, reaparecem e reverberam nos seus personagens. Segundo Ana Carolina Mesquita, a escritora foi capaz de “conectar um único dia a todos os que o precederam e, com isso, sustentar que um dia nunca é apenas um dia”. Por meio dessa técnica, vemos como as pequenas coisas da vida – intensa de percursos e atividades, mas também repleta de momentos de pausa – podem ser transformadas em arte. De acordo com Mesquita, “existe uma permeabilidade entre o olho que vê, aquilo que ele olha e aquilo em que se transforma o olhar”.
Não procuro palavras na terra, mas pelo rastro da vida. A minha, a nossa. Esse caminho que é tão marcado e profundo mas também tão frágil e facilmente esquecido. Afinal, o que somos senão camadas de gostos e histórias momentâneas, que vão se sobrepondo ao que parece ser infinito mas não é?
Quando eu era criança, queria ser arqueóloga. Escrever, no fim das contas, não é tão diferente disso.

*
NOTAS
A exposição 27032025-6.720-280-68 / 24052025-5.328-222-68, individual de Ana Amorim na Galeria Superfície, foi prorrogada e ficou aberta para visitação até 30 de maio de 2025.
Tempos Fraturados é uma mostra de longa duração e ficará disponível para visitação no MAC até 2028
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
Av. Pedro Álvares Cabral, 1301 - São Paulo
de terça a domingo, das 10h às 21h
Entrada gratuita