Noites brasileiras: arte moderna entre ritos, sonhos e resistências
- Esaú Brilhante
- 15 de jul.
- 11 min de leitura
Esaú Brilhante analisa os sete eixos curatoriais da exposição “Tecendo a manhã”, da Pinacoteca, articulando obras, movimentos, contextos e imaginários
Introdução – No limiar da luz: arte, tempo e modernidade
Em exposição na Pinacoteca, a mostra Tecendo a manhã: vida moderna e experiência noturna na arte do Brasil, com curadoria de Renato Menezes e Thierry Freitas, segue um movimento alinhado aos novos esforços da História da Arte brasileira, especialmente no que se refere à produção moderna. A exposição traz em seu catálogo obras de artistas provenientes de diversos estados do país que atuaram com diferentes plataformas visuais, desde pinturas, esculturas, xilogravuras, vídeos, fotografias e cartazes. Buscando pensar a experiência do século 20, não há uma linearidade na cronologia, ao passo que as diferentes técnicas são expostas de forma a potencializar tal abordagem.
Trata-se de abordagens que privilegiam experiências coletivas, evidenciando a simultaneidade e a dialética da produção artística no contexto do processo social brasileiro. A arte moderna, em sua vertente hegemônica, é sustentada por contrastes e binarismos, tensões entre tradição e renovação, condensadas em debates anteriores, que funcionam como chaves interpretativas para toda a produção.
O debate sobre a arte nacional no final do século 19 centraliza alguns focos que representam polos na produção e recepção da arte moderna no país. Um deles promove a defesa da arte como instrumento de formação cultural do Império, proposta por Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806–1879), que acreditava na criação de uma arte nacional dentro dos moldes europeus. Outro polo se apresenta na crítica de Gonzaga Duque (1863–1911), um dos primeiros a defender uma arte “modernizante” no Brasil. Em seu livro A Arte Brasileira (1888), Duque propôs uma ruptura com a visão “acadêmica”, que interpreta como dominante, denunciando a estagnação da arte nacional. Uma crítica que seria incorporada por certos círculos modernistas no início do século 20.
No modernismo “formalista”, a tradição de críticos como Mário de Andrade (1893–1945) e Sérgio Milliet (1898–1966) é marcada por debates sobre temas como figuração e abstração, arte popular e a "arte do inconsciente". Esses tópicos, fundamentais para a produção artística moderna, ajudaram a criar mitologias e regras próprias. Contudo, é evidente que essa abordagem limitou e apagou outras possibilidades, como a produção de arte sacra ainda no século 19 ou a produção gráfica no início do século 20; além de sua estreiteza geográfica, centrada principalmente nos grandes centros urbanos do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Alfredo Bosi (1936–2020), em seu livro Dialética da Colonização, argumenta que a arte brasileira carrega a contradição da formação social do país, com a presença do passado colonial e a força criativa da busca por sua superação. Esta busca é sustentada pela experiência cotidiana e suas mais complexas manifestações. A exposição Tecendo a manhã: vida moderna e experiência noturna na arte do Brasil, ao centralizar a experiência noturna, reúne diferentes facetas da vida moderna e ao mesmo tempo questiona interpretações cristalizadas. A metáfora de “tecer a manhã”, inspirada no poema de mesmo nome de João Cabral de Melo Neto (1920–1999), implica ação, resistência e trabalho conjunto. A manhã, então, se “costura” após a travessia da noite, com seus enigmas, ritos e assombrações. O tempo noturno, portanto, não é apenas a ausência de luz ou uma transição funcional entre dois dias, mas uma oportunidade de repensar a própria História da Arte Brasileira.
Este ensaio se organiza a partir dos sete eixos curatoriais da mostra, propondo uma leitura crítica que articula obras, movimentos, contextos e imaginários. Ao longo desse percurso, a noite brasileira se desdobra em multiplicidades: é espaço de festa e de trauma, de invenção e marginalidade, de sonho e sobrevivência.
I. O cair da noite – A invenção moderna da escuridão
De Baudelaire (1821–1867) a João do Rio (1881–1921), a noite escancara as novas possibilidades da vida moderna. A eletricidade e a cidade, palco da modernidade, aglutinam formações ímpares. Com o avanço da urbanização no final do século 19, o entardecer deixou de ser um convite ao recolhimento para se tornar o início de uma nova jornada sensível. A modernização, com características brasileiras, mistura o urbano e o rural, criando cenários que fogem ao contraste entre cidade e campo. Antes da eletricidade, outras formas de luz já cortavam a noite. A vida moderna se tornou visível à noite, e, por sua vez, este período passou a ser um espaço de representação e experimentação artística.
Entre os artistas presentes na exposição, encontramos as obras do baiano Carlos Bastos (1903–1984). Com sua formação e atuação em Salvador nos anos 1940, o pintor e ilustrador soube captar a ambiência mística e dramática da noite tropical. Em suas cenas, figuras emergem do escuro com luminosidade simbólica, muitas vezes ligadas a temas do sagrado ou da sexualidade reprimida. O uso de cores densas e volumes alongados remete ao crepúsculo como estado psicológico, onde o real se funde ao mitológico.
Por outro lado, o cronista visual paulistano Agostinho Batista de Freitas (1906–2002) oferece outra chave para o cair da noite: sua pintura registra, com precisão afetiva, os momentos em que a cidade muda de ritmo – com faróis acesos, fachadas iluminadas e multidões retornando do trabalho. A noite urbana, em suas telas, é também documento social e convite à observação poética.
Amadeo Luciano Lorenzato (1904–1994), pintor mineiro da primeira metade do século 20, insere-se na tradição moderna de uma pintura que faz experimentos na linguagem dentro dos limites de linha e volume, construindo uma visualidade figurativa, mas complexa. Suas paisagens, gênero tradicional repensado, prolongam linhas e cores para atenuar as linhas imaginárias entre o campo e a cidade, entre o dia e a noite. Em sua materialidade sobre o tema, ele explora, apresenta esse ponto de tensão e encontro entre diversos elementos, sujeitos e situações.

II. Ritos, festas e bailes – A noite como tempo coletivo
A cultura visual brasileira sempre reconheceu na noite o espaço privilegiado das festas e dos rituais. Mais do que entretenimento, trata-se de manifestações de pertencimento, espiritualidade e resistência. A noite dos terreiros, dos maracatus pernambucanos, dos blocos e dos bailes suburbanos é vivida em ritmo próprio. Uma temporalidade cíclica e comunitária, que escapa à lógica do relógio ocidental. O que para olhares externos pode ser apenas um momento, para o grupo que pratica esses eventos são formas de convivência de longa duração e identidades bem consolidadas. Como as festas juninas na obra de J. Barale, que cria um mundo auto referencial para seus balões e fogueiras com o uso das dimensões do suporte do quadro. Ou na policromia de José Antonio da Silva, em sua fatura vigorosa de cores que não se resumem aos adereços da festa mas extrapolam para todo o mundo que o cerca.
No vai e vem de moderno e tradição, a presença da fotografia do baiano Voltaire Fraga estabelece a inserção do olhar moderno sobre a tradição das festas populares. Demonstrando essas práticas, acostumadas a seu lugar em um passado estático, atravessam as lentes e os interesses modernos. Fraga captura o neo da Bahia dos anos 50, mas seu preto e branco abstrai a cor e preenche com um certo olhar essencial, do carnaval de rua às avenidas largas da cidade em ebulição.
A arte se torna meio de consagração e crítica, deslocando o foco da cultura homogênea e linear para um “topos” diversificado e atravessado por contrastes. Contrastes de luz, cor, vestes e arquitetura. A noite é aqui tempo de corporeidade, incorporação e transfiguração.
A música, o corpo e a dança são celebrados como formas de conhecimento. A festa não é escapismo, é criação de mundo. Nesse eixo, a noite aparece como pulsação coletiva, onde o ritmo possui sua própria razão como princípio de organização da experiência. Fugindo assim ao binarismo romantizado da oposição ração/emoção.

III. Boêmios e notívagos – A poética dos marginais
A ideia de boemia foi, ao longo do século 20, uma das formas mais marcantes de pensar a subjetividade artística na cultura brasileira. A figura do notívago, do poeta, do artista, do cronista de botequim cristalizou-se como um “tipo” moderno: alguém que habita a noite não apenas como espaço, mas como ética. Por vezes, essa categoria foi mobilizada de maneira fixa, cristalizando uma certa ideia romântica e perdendo sua complexidade e tensão como, por exemplo, a figura que orbita entre diferentes classes e que apresenta, na negação do labor, uma outra forma de existir. O filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin (1892–1940), em seu estudo Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1938), aproxima o boêmio do “conspirador”, imagem do século XIX que conspirava contra a ordem. Não como prazer desinteressado, mas como atuação política. Dessa forma, a exposição traz nomes consagrados do modernismo para dialogar com produções também modernas, mas que evidenciam em sua constituição a contradição própria da boemia.
Um exemplo disso é Heitor dos Prazeres (1898–1966), músico e pintor carioca, que soube como poucos traduzir em imagens a vibrante sociabilidade da noite carioca: rodas de samba, gafieiras, encontros no morro e nos salões são retratados com um olhar amoroso, quase coreográfico. A boemia, em suas obras, é cultura viva, nascida da resistência e da arte popular. Os jogos de inquietude social e angulações de volume não são apenas líricos, trazem uma complexa gama de “apostas” e “riscos” apresentados na forma do cotidiano.
O artista lituano, radicado em São Paulo, Lasar Segall (1891–1957), por sua vez, oferece um retrato mais sombrio da noite urbana: suas figuras solitárias e ruas desertas ecoam os traumas da imigração, do exílio e da violência moderna.
Já o carioca Di Cavalcanti (1897–1976) encontra no cabaré e na dança popular não só um motivo visual, mas um posicionamento social: a noite como espaço onde o corpo se emancipa e os papéis sociais se embaralham. De Di, chama atenção o Retrato de Josephine Baker (década de 1920), feito quando a artista, ativista e ícone cultural da virada do século 20, esteve no Brasil. O quadro comporta a revolta surrealista da noite, na liberdade dos traços e na montagem contraposta dos corpos.
Com isso, a exposição interroga a produção boêmia como privilégio de classe e, sem negar seu lado lírico e poético, toma como linha principal a emancipação noturna.

IV. A lua e o lobisomem – Mitologias da transformação
Na tradição oral brasileira, a lua é mais do que um astro: é agente de metamorfoses. Ao trazer esse elemento como eixo temático, a exposição o trata como parte da epistemologia da História da Arte, indo além de um simples conteúdo narrativo contextual. De Monteiro Lobato (1882–1948), em A Negrinha (1919), a Guimarães Rosa (1908–1967), em Meu Tio o Iauaretê (1946), a figura do lobisomem está presente em uma tradição literária que mistura o popular e a fantasia, razão e instinto. A figura do lobisomem sintetiza o temor e o fascínio por aquilo que a noite revela. A arte brasileira soube integrar esses mitos como parte de um imaginário moderno, tensionando os limites entre razão e instinto, civilidade e animalidade.
Minton da Costa (1915–1988), pintor carioca que aderiu ao abstracionismo a partir dos anos 1950, apresenta obras repletas de alusões à metamorfose, à magia e ao oculto. Ele elabora uma visualidade na qual os corpos se desfazem e se recombinam sob a ação da noite. Os traços fortes e as paletas intensas criam um universo onde o fantástico é familiar, mostrando uma interpretação da abstração que rompe com uma ideia meramente formalista, mas que dialoga com significantes complexos de interpretação do real.
O paulista Arthur Luiz Piza (1931–2013), em sua gravura e escultura, articula o mistério lunar com uma geometria quase ritualística. Suas formas evocam ciclos, fases, transmutações, como se a lua imprimisse no mundo uma ordem invisível. Já a artista plástica nipo-brasileira Tomie Ohtake (1913–2015), com sua obra Lua (1984), com suas grandes dimensões, ocupa quase completamente a parede lateral, fazendo com que sua obra “orbite” toda a exposição. Com sua linha lírica, produz formas que flutuam como satélites, ora cheias, ora fragmentadas. A noite, em sua obra, é presença suave e magnética. Dessa forma, a lua, como sujeito do percurso, nos faz pensar a noite não apenas como um fenômeno natural, mas como outra forma de vida.
V. Enigmas oníricos – O sonho como forma de ver
Desde a rápida e efusiva recepção dos estudos de Sigmund Freud (1856–1939) por círculos de arte moderna, o onírico foi um elemento mobilizado para contestar a lógica linear. A arte brasileira produziu uma galeria rica de imagens noturnas com influências do Simbolismo e do Surrealismo e nas correntes psicanalíticas. O sonho, nessa tradição, é via de acesso ao inconsciente, mas também à verdade oculta da experiência histórica.
Maria Martins (1894–1973), com suas esculturas híbridas, Farnese de Andrade (1926–2006), com seus objetos do silêncio, e Leonilson (1957–1993), com seus escritos fragmentados, constroem uma noite que não se vê, mas se sente. Não mais de um sonho individual, mas coletivo. Seus trabalhos revelam aquilo que o dia não explica: o medo, o afeto, o vazio, o desejo. Em muitos aspectos, esse eixo condensa de forma fragmentada as tensões do percurso até ele. Nesses artistas, o sonho é matéria plástica, uma forma de pensamento que desafia a palavra e encontra na imagem um modo de ser.

VI. Pesadelos e assombrações – A memória do trauma
Nem toda noite é festa ou devaneio. A história brasileira, marcada por exclusões, violências e silenciamentos, também assombra a produção artística. A noite, nesse eixo, é figura do medo e do trauma, não como ausência de sentido, mas como memória ativa do que foi apagado.
O escultor e ceramista natural do Vale do Jequitinhonha, Ulisses Pereira Chaves (1922-2006), com suas cenas soturnas e corpos tensionados, constrói um imaginário onde o urbano se torna hostil. Seus trabalhos figuram entre a vigília e o delírio, habitantes de cidades desumanizadas e frias. Mestre Galdinho (1929-1996), escultor de Pernambuco, por outro lado, trabalha com o imaginário do juízo final e das assombrações sertanejas, trazendo o medo como parte do cotidiano simbólico do Brasil profundo. Ambos artistas comumente associados à produção “popular”, constroem com o uso da materialidade escultórica uma oposição à ideia de “outro” mobilizada pela arte brasileira desde o modernismo hegemônico dos anos 1920. Rosalind Krauss em A Escultura no Campo Ampliado (1979), aborda certa produção de escultura moderna que concilia tempo e experiência, o tempo não mais como forma fixa mas como evento. Uma abordagem diacrônica do ser em uma forma escultórica.
Também em J.Borges (1935-2024), sua obra O monstro do sertão (1990) coloca a xilogravura dentro da produção imagética do que se teme e que igualmente faz parte do real. Não há divisão cartesiana do imaginário como invenção, mas como traço do real existente, sua linha e volume apresentam um frontalidade diante do olhar. É uma imagem que possui sua imposição e respeito na forma com que é composta.
Essas visões, distantes entre si em linguagem e origem, convergem na crítica: mostram que o Brasil moderno carrega um passado não resolvido, que ressurge, à noite, como espectro. O processo como fluidez presente. A produção popular, pensada desde o crítico Lourival Gomes Machado (1917-1967) a partir das conquistas formais do modernismo, está presente aqui para ir além dessa barreira e constitui uma própria abordagem sobre o real.

VII. O amanhecer – A arte como recomposição
Após a travessia da noite, a manhã não é uma vitória simples. Na exposição Tecendo a manhã, o amanhecer é apresentado como possibilidade, não de esquecimento, mas de reinvenção. Como no poema de João Cabral, é preciso que muitos teçam: a manhã não surge, se constrói. Possibilidade essa encontrada em toda obra de Djanira, aqui representada no quadro No sonho do Menino pobre, onde em uma composição vertical, quase religiosa, os planos da existência são sublimados. Chão e céu são compostos em uma estrutura circular e seu caráter onírico se apresenta como realização de desejo, ao fundo azulado cores e formas entram em harmonia da certeza de condições melhores. Apresentando assim um final otimista da exposição, como a solar fotografia do filme franco-brasileiro Orfeu Negro (1959), adaptado da peça de Orfeu da Conceição (1956) de Vinicius de Moraes (1913-1980).
A exposição embaralha cronologias, repensa o binarismo e apresenta a agência de artistas fundamentais na arte brasileira. E, dessa forma, não se localiza no pessimismo político, mas na possibilidade de novas abordagens a partir do passado.

NOTA DE SERVIÇO
A exposição Tecendo a manhã: vida moderna e experiência noturna na arte do Brasil termina em 27 de julho de 2025
Pinacoteca – Edifício Pina Luz
Praça da Luz, 2 – Bom Retiro, São Paulo
de quarta a segunda-feira, das 10h às 18h
entrada gratuita ao sábados
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