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O que uma história contada há meio século tem a dizer sobre os dias atuais

Uma revisita à peça “The Boys in the Band" e suas adaptações para o cinema, analisando o pioneirismo do texto no debate sobre a representação homoafetiva na ficção e a atualidade de seus temas


O historiador britânico Keith Thomas uma vez escreveu que “aqueles que estudam o passado acabam se deparando com duas conclusões contraditórias. A primeira é que o passado era muito diferente do presente. A segunda é que ele era muito parecido.”


Essa é uma sensação que o espectador pode sentir assistindo às duas versões do filme estadunidense The Boys in the Band (trad.: Os Rapazes da Banda). Ambos são uma adaptação da peça de teatro de mesmo nome, escrita por Mart Crowley. A primeira versão, de 1970, foi dirigida por William Friedkin e preserva o primeiro elenco da peça de teatro que deu origem ao filme. Já a versão de 2020, foi dirigida por Joe Mantello e produzida por Ryan Murphy em parceria com a Netflix; ela também preserva o elenco do remontagem que a peça teve na Broadway em 2018.


A PRIMEIRA MONTAGEM DA PEÇA E O FILME DE 1970

Quando foi encenada pela primeira vez no Off-Broadway em 1968, a peça The Boys in the Band causou um grande impacto na cena teatral estadunidense. Pela primeira vez, a experiência de homens homoafetivos aparecia como ponto de partida para a história de uma peça de teatro — como o crítico de teatro Clive Barnes escreveu em sua coluna no New York Times na época: “Esta não é uma peça sobre um homossexual, mas uma peça que toma o meio e o estilo de vida homossexual como certos e os usa como uma experiência humana válida. Assim, esta é uma peça homossexual, não uma peça sobre homossexualidade.”


O título é emprestado de uma fala do filme Nasce uma Estrela (A Star is Born, 1955), dirigido por George Cukor, quando o personagem Norman (interpretado por James Mason) fala para Esther (Judy Garland): “Relaxe. São três horas da manhã no Downbeat Club e você está cantando para si mesma e os rapazes da banda”. A história de The Boys in the Band se passa no decorrer de uma única noite e gira em torno de um grupo de amigos, todos gays, reunidos no apartamento de Michael para celebrar o aniversário de Harold; mas o aniversariante está atrasado e o que era para ser uma noite divertida e leve se transforma em um momento tenso após a chegada inesperada de Alan, amigo de faculdade de Michael e um homem heterossexual conservador. Por meio do humor e com grande honestidade ao retratar seus personagens, The Boys in the Band versa sobre o peso de se viver uma vida inteira dentro do armário e como o custo disso pode ser alto para pessoas homoafetivas.


Em 1957, Crowley começou a trabalhar para diversas produtoras televisivas e ficou amigo da atriz Natalie Wood no set de Clamor do Sexo (Splendor in the Grass, 1961), filme dirigido por Elia Kazan. Eventualmente, a atriz o contratou para trabalhar como seu assistente, mas também como uma maneira de dar ao dramaturgo mais tempo livre para escrever sua peça.


No documentário The Boys in the Band: Something Personal (disponível na Netflix como material adicional ao filme de 2020), Crowley revela não saber se tinha ideia do que estava fazendo ao escrever aquela história: “Eu sabia que estava escrevendo uma peça sobre o estilo de vida gay. Quando eu comecei a escrever, eu tinha sido aconselhado por um monte de pessoas em posição de autoridade de não ir para esse lugar [falar tão abertamente sobre homoafetividade].” Segundo Charles Kaiser em seu livro The Gay Metropolis (Grove Atlantic, 2019), quando Crowley mostrou o texto para sua agente, ela ficou envergonhada a ponto de mal conseguir olhá-lo na cara.


No dia seguinte, o dramaturgo estava no apartamento de Richard Barr apresentando seu texto. O produtor imediatamente acatou a ideia de produzir a peça em parceria com Charles Woodward. Logo em seguida, ele já tinha um diretor: Bob Moore. Juntos, reduziram o texto pela metade de forma a possibilitar sua produção. Foram escalados para o elenco (em ordem alfabética): Cliff Gorman (interpretando Emory); Frederick Combs (Donald); Keith Prentice (Larry); Kenneth Nelson (Michael); Laurence Luckinbill (Hank); Leonard Frey (Harold); Peter White (Alan); Reuben Greene (Bernard); e Robert La Tourneaux (Cowboy).


Embora para muitas pessoas o projeto parecesse arriscado, Crowley tinha escrito o roteiro certo, na hora certa. Mesmo enquanto a peça estava no período de workshop (momento em que o texto é produzido e testado com o público) já havia um burburinho sobre ela. Em 14 de abril de 1968, The Boys in the Band fez sua estreia no Theatre Four, off-Broadway, e se tornou um sucesso comercial, encantando tanto espectadores homoafetivos como heterossexuais e recebendo críticas positivas. Ao lado do musical Hair, de James Rado e Gerome Ragni, (também revolucionário para a época) The Boys in the Band se tornou a sensação daquela temporada.


Apesar de sua história ser quase um olhar cotidiano, o que havia de tão revolucionário na peça residia em sua honestidade e franqueza — como Barnes também havia pontuado em sua crítica para o New York Times. Um pouco após a estreia, Crowley comentou sempre ter odiado o fato de a homossexualidade ser posta como a grande surpresa no terceiro ato de algumas peças: “A vida não é assim. Nem todos os viados se matam no fina”. Dessa forma, The Boys in the Band conseguiu mudar a perspectiva de seu público heterossexual ao fazê-los sentir empatia por aqueles personagens e, assim, advogando para que pessoas homoafetivas sejam aceitas por serem quem são.


Em 1968, qualquer peça que retratasse a homoafetividade seria política por definição e, especificamente no caso de The Boys in the Band, esta foi a primeira obra sobre a homoafetividade pensada para um público amplo e com intuitos comerciais. A intenção de Crowley em usar o palco para mudar a visão do público sobre gays não poderia ser mais clara.


À ESQUERDA: Um dos posteres da primeira montagem. AO CENTRO: Kenneth Nelson (Michael), Frederick Combs (Donald), Robert La Tourneaux (Cowboy), Leonard Frey (Harold), Keith Prentice (Larry), Cliff Gorman (Emory) e Reuben Greene (Bernard) em cena da montagem de 1968. Foto: Friedman-Abeles. À DIR.: O elenco na fotografia clássica / Getty Images.
À ESQUERDA: Um dos posteres da primeira montagem. AO CENTRO: Kenneth Nelson (Michael), Frederick Combs (Donald), Robert La Tourneaux (Cowboy), Leonard Frey (Harold), Keith Prentice (Larry), Cliff Gorman (Emory) e Reuben Greene (Bernard) em cena da montagem de 1968. Foto: Friedman-Abeles. À DIR.: O elenco na fotografia clássica / Getty Images.

A peça ficou dois anos em cartaz, encerrando sua temporada em 6 de setembro de 1970, após 1001 performances. Quem está familiarizado com a História do Movimento LGBT provavelmente irá reparar uma mudança drástica no cenário dessa comunidade entre a estreia da peça e sua última apresentação. Na madrugada de 28 de junho de 1969 eclodiu a Revolta de Stonewall Inn, um dos poucos bares de Nova York onde a socialização entre pessoas LGBT era permitida: cansados das batidas arbitrárias realizadas por policiais nos bares, seus frequentadores começaram a revidar e durante seis dias lutaram contra a polícia nas ruas de Greenwich Village. Apesar de não ser a primeira manifestação realizada por LGBTs em prol de seus direitos, a revolta se tornou marco fundador do Movimento — após 28 de junho não havia mais como voltar atrás. Se The Boys in the Band retratava um momento no qual homossexuais eram obrigados a se esconderem em seus lares e nos poucos bares que os aceitavam, agora eles estavam ocupando as ruas e lutando contra a discriminação. Em sua análise da peça para a introdução da publicação de 2018, o dramaturgo Tony Kushner argumenta que a peça de Crowley retrata exatamente este momento de ruptura no qual vemos o instante onde a última gota d’água cai e o copo transborda.


Em 17 de março de 1970 a adaptação cinematográfica da peça dirigida por William Friedkin estreou nos cinemas estadunidenses. O filme foi produzido pelo próprio Crowley e, além de manter o roteiro da peça quase intacto (algumas cenas e diálogos foram adicionados), o elenco original da peça reprisou seus papeis. Como Kaiser afirma em seu livro, a vivência homoafetiva mudou de forma tão dramática entre 1968 e 1970 que muitas falas soaram datadas para os primeiros espectadores assim que foram proferidas no filme. O público criticou a maneira como todos os personagens eram retratados: os rapazes da banda sentiam um certo ódio de si mesmos por conta de sua sexualidade. O longa acabou não obtendo tanto sucesso comercial quanto a peça, apesar de seu conteúdo ainda ter sido chocante para os espectadores de fora da cidade de Nova York que não tiveram a chance de assistir ao espetáculo.


O roteirista e produtor do filme de 2020, Ned Martel, pontuou no documentário Something Personal o fato de a peça de Crowley ter mostrado para o público LGBT que eles poderiam ser vistos: “E em seguida vieram as conversas difíceis sobre como eles deveriam ser vistos”. No aniversário de 25 anos da peça, em 1993, Richard Kramer entrevistou Crowley após uma exibição especial do filme realizada para homens gays nas faixas-etárias dos 40, 30 e 20 anos. Aqueles com 40 anos de idade teriam dito a Kramer que eles não eram mais daquele jeito (daquela maneira com a qual os personagens agiam), enquanto os de 30 anos afirmaram ser mais daquele jeito do que gostariam de admitir e os de 20 afirmaram ser exatamente daquele jeito. A pesquisa de Kramer sugere que, apesar de todas as mudanças das últimas três décadas, muitas pessoas homoafetivas ainda precisavam lidar com aquele ódio auto-inflingido retratado pela peça — e a diferença entre essas décadas se dava pelo avanço genuíno nas pautas reivindicadas, que já deixava de ser tão incomum.


ESQ.: pôster do filme de 1970. DIR.: Frederick Combs (Donald), Kenneth Nelson (Michael), Reuben Greene (Bernard), Cliff Gorman (Emory) e Keith Prentice (Larry) em cena do filme de 1970, dirigido por William Friedkin. Foto: Cinema Center Films.
ESQ.: pôster do filme de 1970. DIR.: Frederick Combs (Donald), Kenneth Nelson (Michael), Reuben Greene (Bernard), Cliff Gorman (Emory) e Keith Prentice (Larry) em cena do filme de 1970, dirigido por William Friedkin. Foto: Cinema Center Films.

Apesar das diferentes impressões causadas pela obra com o passar dos anos, a força presente em The Boys in the Band se dá por mostrar aos espectadores e fazê-los entender que algo precisa mudar. O comportamento dos rapazes e todos os momentos em que eles depreciam uns aos outros são frutos do sofrimento resultante de viver em uma sociedade que os despreza e que, até aquele momento, os apagava. Como Kushner argumenta em sua análise, esta peça é sobre o preço pago pela estagnação e ao mesmo tempo é uma peça sobre mudança:


Apesar de todos os golpes desferidos e maldades proferidas, de todo o ódio de si mesmos, verdades emergem e, crucialmente, no mundo pré-Stonewall de The Boys in the Band, há momentos em que os padrões se quebram, comportamentos mudam, e seus personagens conseguem articular um comprometimento para mudarem sua postura. [...] O valor de The Boys in the Band se situa não como um catálogo de comportamentos ultrajantes antiquados, mas como uma descrição afiada de um momento: logo antes da explosão, logo antes da chama que inflama a revolução, o momento em que as bicadas e arranhadas dentro do ovo se iniciam, porém antes da casca começar a rachar. O que a peça captura é o quão desconcertante, o quão estranho e o quão embaraçoso esses momentos pré-explosão podem ser, quando a raiva taciturna e a violência incipiente desarranjam e paralisam aqueles que ainda não encontraram os meios para a ação, cujas almas e psiques estão se esforçando com uma tensão abrasiva e enervante em direção à libertação.” (TONY KUSHNER, 2018)


MONTAGENS BRASILEIRAS

A peça já teve três montagens profissionais no Brasil. A primeira estreou em 16 de outubro de 1970 no Teatro Cacilda Becker, onde permaneceu em cartaz até dezembro daquele ano. A montagem foi produzida pelo casal John Herbert e Eva Wilma. Com o texto traduzido por Millôr Fernandes e a direção de Maurice Vaneau, o elenco tinha nomes como: Benê Silva (Bernard); Benedito Corsi (Emory; ou, David, de acordo com a tradução); Denis Carvalho (Hank / Arthur); John Herbert (Alan); Otávio Augusto (Donald); Paulo Adário (Cowboy); Paulo César Pereio (Harold); Roberto Maya  (Larry / Douglas); e Walmor Chagas (Michael).


Ao escrever suas memórias para a coleção “Aplauso Brasil”, John Herbert relembrou que levantou a produção sem sócio ou patrocínio, utilizando recursos próprios. Em plena Ditadura Militar (1964-1985), a censura havia afirmado que o texto estava proibido no Brasil e, para liberarem a encenação, seria necessário mostrar o espetáculo pronto para os censores. O censor que veio de Brasília para assistir à peça chamava-se Carlos Caldas Graieb, pai da atriz Glauce Graieb – de acordo com o produtor, Carlos adorou o espetáculo e por isso liberou a temporada.


ESQ.: Pôster da montagem brasileira de 1970. DIR.: Raul Cortez, Haroldo Oliveira, Dênis Carvalho e Benedito Corsi em cena.
ESQ.: Pôster da montagem brasileira de 1970. DIR.: Raul Cortez, Haroldo Oliveira, Dênis Carvalho e Benedito Corsi em cena.

A temporada realizada no Teatro Cacilda Becker foi um sucesso de público, somando uma bilheteria generosa. O mesmo sucesso parecia iminente quando a peça estreou no Rio de Janeiro, em 21 de abril de 1971, no Teatro Maison de France: na noite de estreia, a casa estava lotada. Na temporada carioca, Raul Cortez assumiu o papel de Michael, enquanto Gésio Amadeu interpretou Bernard. Três dias depois da estreia, no entanto, o DOPS decretou a proibição do espetáculo. John Herbert teve que contratar um advogado para lidar com a situação, sem entender o que poderia ter motivado por trás da proibição depois da peça ter sido apresentada durante seis meses em São Paulo. Depois de dois meses, um funcionário em Brasília o aconselhou a remover os palavrões do texto (uns três ou quatro) e, enfim, o espetáculo foi liberado em junho e apresentado no Teatro da Lagoa. Mas a peça tinha perdido o brilho, permanecendo pouco tempo em cartaz. A primeira montagem de Os Rapazes da Banda retornou para São Paulo em novembro de 1971, e foi apresentada no Teatro Oficina – local onde Lima Duarte deu vida a Harold.


Outros dois nomes de destaque que se juntaram ao elenco foram: Antônio Pitanga, que interpretou Bernard; e Tony Ramos. No entanto, não fui capaz de encontrar uma informação precisa de quando a dupla entrou para o elenco (ainda que tenha encontrado registros de Antônio Pitanga atuando ao lado de Raul Cortez), ou qual personagem Tony interpretou. Outros atores que participaram da primeira montagem incluem: Jorge Gomes; Osmar Prado; Haroldo Oliveira; e Paulo Padilha.


Ao fundo, Osmar, Raul Cortez e Antonio Pitanga e, em primeiro plano ao telefone, John Herbert na montagem brasileira de 1970.
Ao fundo, Osmar, Raul Cortez e Antonio Pitanga e, em primeiro plano ao telefone, John Herbert na montagem brasileira de 1970.

A segunda montagem, em 1978, foi mais “underground”: ela era apresentada no Café-Teatro Odeon, no bairro do Bixiga (São Paulo) — depois da apresentação, o ambiente se transformava na boate Gay Club. Ainda valendo-se da tradução de Millôr Fernandes, o espetáculo foi dirigido por Carlos di Simoni e o elenco era composto por: Acácio Gonçalves (Michael); Carlos Capeletti (Harold); Denis Derkian (Donald); Eduardo Sampaio (Cowboy); Hilton Have (Emory); e Sergio Bright (Bernard). Também faziam parte do elenco (mas não consegui identificar quais papeis eles desempenharam): André Loureiro; Raimundo de Souza; e Valdir Fernandes.


O cenário foi idealizado pelo ator Acácio Gonçalves em consonância com a direção de Carlos di Simoni, trazendo uma visão mais surrealista – talvez como uma maneira de lidar com o espaço pequeno do palco. A direção também assumia o deboche, a naturalidade e a autoaceitação dos personagens.


ESQ.: Pôster da montagem brasileira de 1978. CENTRO: O elenco. À DIR.: O elenco na foto clássica
ESQ.: Pôster da montagem brasileira de 1978. CENTRO: O elenco. À DIR.: O elenco na foto clássica

Já a terceira montagem brasileira ocorreu décadas mais tarde, dessa vez com uma pequena alteração no título: Os Garotos da Banda. A montagem estreou em 31 de outubro de 2023 no Teatro Procópio Ferreira (São Paulo), onde permaneceu em cartaz até 20 de dezembro daquele ano – retornando em 10 de janeiro de 2024 e encerrando a temporada definitivamente em 03 de fevereiro de 2024. Antes da apresentação, um mini-doc era exibido, contando um pouco a História do Movimento LGBT estadunidense e traçando paralelos com o que estava ocorrendo no Brasil – ainda que a data de estreia da montagem original (e, por consequência, o ano em que a história da peça se passa) seja anterior a tais eventos.


Com produção de Zuza Ribeiro, o texto foi traduzido por Caio Evangelista e o espetáculo foi dirigido por Ricardo Grasson. No elenco: Bruno Narchi (interpretando Harold); Caio Evangelista (Larry); Caio Paduan (Alan); Heber Gutierrez (Emory); Julio Oliveira (Cowboy); Leonardo Miggiorin (Donald); Mateus Ribeiro (Michael); Otávio Martins (Hank); e Tiago Barbosa (Bernard) – o ator Gabriel Santana servia como stand-in. Esta montagem também sofreu alterações no elenco; com o passar do tempo, os seguintes atores tinham se juntado à banda: Edgar Cardoso (Harold); Fabrício Pietro (Hank); Robson Catalunha (Larry); Heitor Garcia (Donald) – enquanto Julio Oliveira assumiu o papel de Emory passando o personagem do Cowboy para Gabriel Santana.


ESQ.: Pôster da montagem brasileira de 2023. DIR.: Caio Evangelista (Larry), Matheus Ribeiro (Michael), Tiago Barbosa (Bernard), Julio Oliveira (Emory), Leonardo Miggiorin (Donald) em cena. Foto: Ronaldo Gutierrez
ESQ.: Pôster da montagem brasileira de 2023. DIR.: Caio Evangelista (Larry), Matheus Ribeiro (Michael), Tiago Barbosa (Bernard), Julio Oliveira (Emory), Leonardo Miggiorin (Donald) em cena. Foto: Ronaldo Gutierrez

A MONTAGEM DE 2018 NA BROADWAY E O FILME DE 2020

Em 31 de maio de 2018, a montagem comemorativa de 50 anos da peça The Boys in the Band estreou no Booth Theatre, sendo a primeira apresentação do espetáculo na Broadway. Produzida por Ryan Murphy e dirigida por Joe Mantello, o elenco era composto em sua integridade por homens assumidamente gays (e que também usam seu trabalho como uma maneira de trazer visibilidade à causa LGBT) — ao contrário da primeira montagem na qual, dos nove personagens, apenas cinco eram interpretados por atores homossexuais (nem todos fora do armário). No elenco, há nomes muito conhecidos pelo grande público como Jim Parsons (Michael), Zachary Quinto (Harold) e Matthew Bomer (Donald), assim como nomes em ascensão no teatro estadunidense, como é o caso de Andrew Rannells (Larry) e Robin de Jesús (Emory). Completando o elenco: Brian Hutchison (Alan); Charlie Carver (Cowboy); Michael Benjamin Washington (Bernard); e Tuc Watkins (Hank).


ESQ.: Pôster da montagem de 2018. À DIR.: Robin de Jesús (Emory), Michael Benjamin Washington (Bernard), Andrew Rannells (Larry) e Jim Parsons (Michael) em cena. Foto: Joan Marcus.
ESQ.: Pôster da montagem de 2018. À DIR.: Robin de Jesús (Emory), Michael Benjamin Washington (Bernard), Andrew Rannells (Larry) e Jim Parsons (Michael) em cena. Foto: Joan Marcus.

O fato de ter um elenco inteiramente composto por atores assumidamente gays serve como uma espécie de comentário externo ao discurso da peça. Se na ação de The Boys in the Band os personagens ainda estão todos dentro do armário (não para si mesmos ou para seu círculo de amigos, mas para a sociedade) e isto acarreta em uma angústia grave, ao colocar em cena atores que estão fora do armário temos uma noção dos avanços  do movimento LGBT ao longo deste meio século: há diversas obras narrativas (de romances literários a seriados televisivos, passando por peças de teatro e filmes) que retratam de maneira positiva e honesta a experiência LGBT; e uma parte significativa da comunidade já consegue, no mínimo, reunir coragem para viver sua vida sem esconder partes dela. Com um elenco que não tem medo de mostrar sua vivência homoafetiva para a sociedade, a visibilidade ultrapassa os limites do proscênio e continua após o espectador ter saído do teatro, quando ele decide pesquisar mais sobre o ator ou passa a segui-lo em redes sociais. Se há 50 anos era temerário para atores ou atrizes assumirem sua homo/biafetividade, agora isso já não é mais um fator capaz de acabar com sua carreira. Em Something Personal, o ator Tuc Watkins (intérprete de Hank) comenta: “quando se tem gays protagonizando e dizendo ‘este sou eu, eu ainda estou trabalhando’ ou ‘eu consigo emprego não apesar de ser assumido, mas porque eu sou assumido’ a situação muda. Isso muda o zeitgeist ”.


A peça ficou em cartaz por 84 noites e recebeu o Tony de Melhor Revival (ou seja, melhor remontagem); já o ator Robin de Jesús foi indicado a Melhor Ator Coadjuvante por sua interpretação como Emory. E, como não poderia deixar de ser, no aniversário de 50 anos do filme, o remake de The Boys in the Band estreou na Netflix preservando o elenco da remontagem, assim como seu diretor e equipe de produção.


ESQ.: Pôster do filme de 2020. DIR..: Jim Parsons (Michael), Robin de Jesús (Emory), Michael Benjamin Washington (Bernard) e Andrew Rannells (Larry) em cena do filme de 2020, dirigido por Joe Mantello. Foto: Scott Everett White / Netflix.
ESQ.: Pôster do filme de 2020. DIR..: Jim Parsons (Michael), Robin de Jesús (Emory), Michael Benjamin Washington (Bernard) e Andrew Rannells (Larry) em cena do filme de 2020, dirigido por Joe Mantello. Foto: Scott Everett White / Netflix.

Testemunhar esta história quase meio século depois é sem dúvidas uma experiência instigante. Se, por um lado, podemos ver como o mundo mudou de lá para cá e o modo como a vivência LGBT em uma sociedade cis-heteronomativa se tornou mais positiva, por outro lado é possível reparar, nas nuances da história, como certos temas ainda não foram resolvidos ou mesmo como sua discussão regrediu à estaca zero. Para os espectadores contemporâneos, The Boys in the Band serve como uma maneira de revisar todas as conquistas e de pensar o que ainda precisa ser feito para a comunidade LGBT poder viver de maneira plena.


Enquanto novas gerações têm cada vez menos dificuldades em sair do armário e se livrar de uma LGBTfobia internalizada, ainda há parcelas da comunidade LGBT que olham para o corpo negro (ou qualquer outro corpo racializado) por meio de uma ótica racista. Esta questão aparece na peça por meio da amizade de Emory (o rapaz mais afeminado da turma) e Bernard (o único homem negro presente no grupo): ao longo da noite vemos o amigo de Bernard interagindo com ele se valendo de piadas racistas; mas quando Michael acredita que pode entrar na brincadeira, Bernard o corta explicando que o único motivo para ele deixar Emory fazer estas piadas é porque ele sabe que esta é a única maneira conhecida por Emory para se tornar um igual junto a Bernard.


A própria maneira como a peça retrata a negritude se tornou ultrapassada com o passar dos anos. A composição dramaturgica de Bernard recai no estereórtipo do “Magical Negro” (ou “o negro mágico”), ou seja, um personagem negro que serve de “babá” e cuja função dramática serve para o desenvolvimento dos demais personagens brancos e também para educar a plateia (também composta majoritariamente por pessoas brancas). Em um ensaio para a BuzzFeed News, o jornalista Steven Thrasher, analisa a composição do personagem Belize em Angels in America (peça de Tony Kushner, que também retrata temas homossexuais e é considerada um marco da História do Teatro) demonstrando como o personagem cai nessa categoria de representação e, mais que isso, enquanto o único personagem negro da peça, ele está isolado de sua comunidade e “cercado por brancos”. O mesmo vale para Bernard: sabemos muito pouco sobre sua vida pessoal, ao passo que Michael e Donald têm direito a longos monólogos no início da peça sobre a relação que eles têm com os próprios pais.


Atualmente, ouvir o discurso de Bernard sobre como ele permite que seu próprio amigo faça piadas de teor racista com ele por entender que “isto é a forma de meu amigo tentar se igualar a mim” soa como uma desculpa fraca, que não justifica. É importante considerar que, do grupo, Emory é o gay afeminado e expansivo: enquanto os demais conseguem camuflar sua sexualidade agindo de forma mais ou menos heteronormativa, Emory não consegue ser assim, tornando-o mais vulnerável a sofrer homofobia.


A montagem estadunidense de 2018 e seu filme subsequente parecem não ter feito grandes modificações no texto de forma a lidar melhor com este aspecto da trama (ainda que tenham reduzido o espetáculo de dois para apenas um ato). No entanto, eles escolheram o ator Robin de Jesús, de ascendência porto-riquenha, para interpretar Emory. Ao escalar um ator latino para interpretar o papel, alguém pertencente a uma etnia minorizada nos Estados Unidos, as vivências de Bernard e Emory em uma sociedade racista e homofóbica se equalizam (embora não se equiparem). Já a montagem brasileira de 2023, teve o cuidado de reduzir as piadas racistas de Emory ao mínimo possível e utilizou o restante do elenco para “comentar” o quão inadequada a situação era – quando Michael chamava Bernard de “mucama”, o elenco inteiro reagia demonstrando choque e indignação. Em entrevista para o jornalista Ubiratan Brasil, do Canal MF, o ator Tiago Barbosa comentou sobre viver esse personagem:


Eu achei o texto muito violento. É muito difícil você [referência ao dramaturgo] falar sobre um ponto de vista daquilo que você não consegue enxergar. É muito difícil você falar sobre algo que você não tem a menor noção do que está dizendo. [...]. Então, a primeira vez quando eu li esse texto, ele me deixou muito triste. E eu lembro de terminar uma leitura e perguntar para os meus colegas: 'Nada atravessa vocês? A mim, me dá desespero ler isso com oito rapazes brancos, onde o único [personagem] que não se atravessa uma questão sobre sua homoafetividade, se trata sobre a cor da pele dele.’ Não fala sobre ele ser gay ou não, fala sobre o existir. E isso é muito mais profundo.

[...] Então, hoje, tivemos essa cumplicidade de reescrever essa história [...] com uma outra ideia de um contexto social. Porque em 1960, nós estávamos lutando por várias outras coisas, tinha o Movimento dos Panteras Negras, nós tínhamos Martin Luther King, nós tínhamos James Baldwin, [...] pessoas que estavam lutando por ser - não falo sobre ser gay, falo sobre o ser visto. Então, hoje, quando a gente consegue retratar isso no texto de uma outra maneira, de uma forma mais solar que se pode ser feito, eu acho que sim, é uma reconstrução - faz parte de uma reconstrução histórica. (TIAGO BARBOSA, 2023)


Ainda assim, é a partir do discurso de Bernard que Emory percebe o quanto seu comportamento é inadequado e promete jamais fazer piadas como aquelas novamente. Dessa forma, The Boys in the Band nos mostra como a mudança pode vir se nós realmente assumirmos nossos erros para, enfim, aprender com eles. E é isso que vemos ao longo da história: os personagens aprendendo a maneira de se desamarrar de seus preconceitos internos e quebrar o ciclo vicioso do ódio por si mesmos, refletido também em seus relacionamentos.


Outro tema debatido de maneira tímida na peça, por meio do relacionamento de Hank e Larry, é o da não-monogamia. Enquanto o primeiro está se divorciando de sua esposa para ficar com o namorado e idealiza o relacionamento dos dois pelos moldes da monogamia, o segundo personifica uma visão tida pela comunidade: se os heterossexuais não nos aceitam, por que vamos querer se encaixar no estilo de vida deles? Por que viver uma vida reprimindo nossos desejos ao prometer fidelidade apenas a um parceiro se pessoas homo/biafetivas nem podem se casar? Larry confessa seu amor por Hank e seu desejo de passar o resto da vida juntos; ao mesmo tempo em que entende que seria desonesto se ele não reconhecesse seus desejos ocasionais por outros homens e se não deixasse Hank livre para experimentar os desejos dele. Larry demonstra não haver problema algum em amar alguém e mesmo assim sentir desejo por outras pessoas. Esta discussão regrediu a estaca zero quando, em 1981, teve início a pandemia do HIV/AIDS, responsável por causar a morte de milhares de homens homo/biafetivos e pessoas trans ao redor do globo. Naquele período, a única coisa que se sabia sobre a doença era sobre sua transmissão através do ato sexual — sendo assim, recomendava-se aos grupos mais vulneráveis a manter relações monogâmicas (e até o celibato). Por consequência, tudo que a comunidade havia avançado durante a revolução sexual acabou regredindo consideravelmente. Quase 40 anos depois, bons tratamentos para o HIV foram desenvolvidos, e a discussão sobre não-monogamia voltou a florescer e não apenas na comunidade LGBT, desta vez fazendo uso de um arcabouço teórico muito maior e embasado.


Um personagem muito curioso é Alan: a maneira como o público o lê pode ter mudado completamente após estes 50 anos. Se, há meio século, o público estava mais inclinado a ver este personagem como um gay enrustido, incapaz de assumir sua sexualidade e afetividade, e tornando-se uma representação do peso que  a LGBTfobia pode ter na vida de uma pessoa; nos dias de hoje talvez seja mais interessante ler Alan como um homem heterossexual conservador. Dessa forma, ele representaria como a LGBTfobia e o machismo também afetam pessoas cisgêneras e heterossexuais. Com isso, os problemas do casamento de Alan e sua esposa se dariam por uma dificuldade tida por homens hetero-cis de demonstrar afeto e comunicar suas emoções para suas parceiras sob o risco de ter sua masculinidade questionada.


Por isso, ao meu ver, uma das coisas que mais se destacam nesse remake não é apenas o fato de ele trazer uma obra de arte fundamental para a história do movimento LGBT ao conhecimento de um público mais jovem, mas também por ser uma maneira de mostrar a este público como era a vivência de uma pessoa homoafetiva 50 anos atrás: como a comunidade LGBT era em sua totalidade invisibilizada e a incorporação dessa dinâmica no interior das vidas sociais de seus membros. Revisitar esta obra também nos permite avaliar por comparação os avanços da comunidade na conquista de seus direitos e perceber como certos assuntos não foram devidamente resolvidos.


A existência dessa obra e sua curiosa atualidade mostra a necessidade de aprender sobre nossa própria comunidade, estar a par dos temas debatidos no momento. Assim como aprender a amar quem nós somos e amar ao próximo, ser solidário: apesar de todas as piadas provocativas proferidas de forma a descontar uma homofobia internalizada, o que ainda os mantém unidos é o fato de que, no interior do grupo, cada um de seus membros entende exatamente o que o outro passou ou está passando — é saber que não se está só.


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REFERÊNCIAS

ALVES JR., Dirceu. “The Boys in the Band – Os Garotos da Banda” confia demais no original e dilui o diálogo contemporâneo. In: InfoTeatro (blog). São Paulo, 06 de novembro. 2023. Disponível em: <https://infoteatro.com.br/the-boys-in-the-band-os-garotos-da-banda-confia-demais-no-original-e-dilui-o-dialogo-contemporaneo/>


BARBOSA, Neusa. John Herbert: um gentleman no palco e na vida. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.


BOYS in the Band, The. Direção de William Friedkin. EUA: Cinema Center Films, 1970. (Colorido, 120min).


BOYS in the Band, The. Direção de Joe Mantello. EUA: Ryan Murphy Productions, 2020. (Colorido, 122min).


BRASIL, Ubiratan; BARBOSA, Tiago. 1 vídeo (9min16s). Publicado pelo CanalTeatroMF. The Boys in The Band continua atual 55 anos depois - parte 2. Youtube, 06 de novembro de 2023. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=oQLYdjRhW9A>.


CARVALHO, Tânia. Tony Ramos: no tempo da delicadeza.  São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.


CETRA, José. Os Rapazes da Banda. In: Palco Paulistano (blog). São Paulo, 01 de fevereiro. 2024. Disponível em: <https://palcopaulistano.blogspot.com/2024/02/os-rapazes-da-banda.html>

CROWLEY, Martin. The Boys in the Band. Nova York: Samuel French, 2018.


KAISER, Charles. The Gay Metropolis. 2ª ed. Nova York: Grove Atlantic, 2019. Pgs. 185 à 192.

KUSHNER, Tony. Introduction. In: CROWLEY, Martin. The Boys in the Band. Nova York: Samuel French, 2018. Pgs. 7 à 16.


MAGALDI, Sábato. Os Rapazes da Banda. In: STEEN, Edla van (org.). Amor ao Teatro: Sábato Magaldi. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014. p. 584 - 585.


A MESMA festa de aniversário. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 de setembro de 1978. Disponível em: <https://www.memorialage.com.br/wp-content/uploads/tainacan-items/26/12026/RG-0990-B.pdf>.


OS rapazes da banda. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obras/182452-os-rapazes-da-banda. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.


SOMETHING Personal. Direção de Joel Kazuo Knoernschild. EUA: More Media, 2020 (Colorido, 28min).


STEFFEN, Lufe. 1 vídeo (49min55s). Publicado pelo Canal Lufe Naftalufe. Naftalufe#31 The Boys in the Band: Compare as 2 versões do filme (Netflix 2020 x Original 1970). Youtube, 05 de outubro de 2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=YqzrPODlIqg>.


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NOTA

Esse texto foi publicado originalmente dia 17 de fevereiro de 2021 no perfil de Pedro A. Duarte no Medium. O texto foi revisado para esta publicação, além de ser atualizado para expandir as informações acerca das montagens brasileiras. Luca Scupino foi responsável pela edição.


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