Frestas da Humanidade
- Esaú Brilhante

- 17 de out.
- 10 min de leitura
36ª Bienal de São Paulo apresenta tensionamentos entre espaço expositivo, curadoria e as práticas coletivas na arte contemporânea
Desde sua primeira edição em 1951, cada Bienal de São Paulo configura-se como um espaço de tensão entre a proposta curatorial, as obras apresentadas e a recepção do público. Essa trajetória atravessa diferentes momentos históricos, como apontam Francisco Alambert e Polyana Canhête em seu livro As Bienais de São Paulo (Boitempo, 2004), a “Era dos Museus” (1951-1960), a “Era da Crítica de Arte” (1960-1980) e a “Era do Curador” (a partir de 1980). A partir desse quadro, não pretendo percorrer o discurso da 36ª Bienal de São Paulo, intitulada Nem todo viandante anda estradas, mas tensionar seus limites e refletir sobre a forma como suas propostas reverberaram no meu próprio percurso.
O confronto entre as propostas curatoriais da Bienal e a arquitetura que as abriga já se tornou recorrente. O edifício projetado por Oscar Niemeyer não funciona apenas como suporte físico das obras, mas permanece como um vestígio de um projeto de arte (e de nação) que, de certo modo, assombra cada edição e seus curadores. A expografia desta Bienal adota a metáfora do “estuário”, zona costeira onde um rio de água doce encontra a água salgada do mar, portando escolhas, como a inscrição de legendas nas pilastras ou o uso de cortinas para cobrir os vãos das estruturas curvilíneas, que evidenciam como essa tensão segue viva. Na abertura, a instalação da artista conceitual nigeriana Precious Okoyomo parece tentar fugir do sonho arquitetônico do caminho planejado ao recriar um ecossistema dentro da Bienal, fazendo um vai e volta do diálogo que o Parque Ibirapuera tem com a cidade de São Paulo.
Essa parece ser a tônica não só do primeiro capítulo (Frequências de Chegadas e Pertencimentos) mas de parte do segundo (Gramáticas da Insurgências), que se entendem pelo primeiro andar do pavilhão. Digo isso porque as obras, na busca de um "primeiro contato”, fogem visualmente ao máximo do próprio espaço da Bienal, de suas estruturas e da imponência do material liso e multiforme. E para isso, recorrem à tendência que relaciona arte e natureza. Da materialidade como forma expressiva na instalação Muitos Nomes (2025), da artista goiana Sallisa Rosa, feita a partir de galhos de árvores, como alternativas a suas tradicionais cerâmicas; do "chão" da instalação idealizado pelo coletivo goiano Sertão Negro, formado por artistas que buscam construir uma plataforma de produção a partir da ideia de territoriedade e na cosmovisão de matriz africana. Na exposição há peças de cerâmica, argila, madeira, fotografias, diversos elementos relacionados com o quilombo Kalunga; seguindo até o final do andar com as tecelagens Unearthed-Abyss (2021) da nigeriana Otobong Nkanga, que parecem unir essa presença natural em uma obra "plana" em sintonia com a percepção de um ecossistema. É como uma gênese da humanidade, como forma de introduzir uma perspectiva biológica unida com a social, fosse bem percebida se lembrarmos a formação do curador camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung como biotecnólogo.

O terceiro capítulo me parece um ponto de virada interessante, e pessoalmente o que mais gostei de toda Bienal. Dialoga com tendências fortes da arte contemporânea, como a reutilização de materiais na arte como horizonte de alternativas da cadeia produtiva. Em uma economia global cada vez mais financeirizada, os materiais sem mais "valor" de uso são reinseridos em debate por meio de construtos artísticos. É o que se propõe a instalação Transclandestina 3020 (2025), de Manauara Clandestina, no uso do têxtil, do plástico e do audiovisual, para sintetizar uma força criadora através da alteridade. Próximo estão pinturas da estadunidense Cynthia Hawkins, a qual busca estabelecer diálogos com a abstração diferentes das premissas do Expressionismo-Abstrato, com cores diluídas em uma pintura mais vertical, aquareladas e que remete muito às insurgências coloristas de grandes centros urbanos.
Assim, esse terceiro capítulo, intitulado Sobre Ritmos Espaciais e Narrações, parece introduzir a cidade na "gênese humana", mas a cidade como vestígios da atividade humana: das marcas da desigualdade, das expressões de classe e da poliformia dos tempos. É o que se propõem, por exemplo, as fotografias do britânico Akimbode Akinbiyi no bairro paulistano do Bom Retiro; ou o coletivo paulista Vilanismo ao desenvolver um trabalho de ‘recontar’ a História do Brasil por meio de símbolos negros, interpretados como vestígios criadores de relações em comunidade.
Foram justamente as obras desse coletivo que me proporcionaram os melhores momentos da Bienal, sobretudo pela forma harmoniosa com que dialogam com a proposta curatorial. Tratam-se de peças como pinturas que dialogam com o grafite urbano, fotografias de família e instalações em neon, que ocupam o espaço como forma de elaboração de ideais de arte (produção artística), fugindo das armadilhas da canonização da autoria, tão constante tanto na tradição moderna quanto em sua presença no mercado de arte. Ao mesmo tempo que se apresentam assim, oferecem alternativas a canonização, apresentando ao público uma ideia de produção artística que reivindica formas compartilhadas de vivência e sobrevivência em meio às contradições materiais, econômicas e geográficas. Este conjunto me deixa com a impressão de ser impossível pensar o conceito de Humanidade sem repensar o lugar da arte no cotidiano. Seu lugar no centro no pavilhão e ao final do terceiro capítulo parece a escolha expográfica mais interessante, por pensar essa potencialidade das emergências artísticas como urgências também sociais.

Seguindo para o capítulo quatro, Fluxos de Cuidado e Cosmologias plurais, parece uma espaço dedicado a juntar o que a tradição cartesiana separou: corpo e mente; sensação e razão; frontalidade de epistemologias não hegemônicas. E, como isso afeta o "fazer" das obras de arte. Neste momento, comecei a perceber os limites que a divisão em capítulos impunha à exposição. Trata-se de uma forma expositiva mais fechada, cuja uniformidade destoava do percurso desenvolvido até então. O terceiro capítulo, em particular, coloca em confronto diferentes linguagens artísticas como a pintura, a instalação e a fotografia, para tensionar seus limites e direcioná-las a um “topos” comum: a polifonia da cidade no capitalismo contemporâneo. Esse tensionamento era proporcionado tanto pela sua aproximação espacial quanto pela narrativa em comum, mesmo de técnicas artísticas tão distintas.
O capítulo quatro talvez seja o mais "imersivo"; suas amplas instalações sensoriais se espraiam ao longo do andar, como em A Laboratory for Traditional Hybridity (trad.: Um Laboratório para o Hibridismo Tradicional, 2025) do artista do povo Sami, Joan Nango, com a equipe Girjegumpi. Trata-se de uma instalação composta de taipa, madeira , galhos, fotos, tecidos, livros e apresenta um laboratório de formas. Nesse laboratório, podemos caminhar e vislumbrar novos meios para fazer arte e mobilizar símbolos obstruídos pelo colonialismo. Ao fundo do andar, as instalações do Senegales Hamedine Kene funcionam como os instrumentos que potencializam esse "laboratório", em mesas e paredes com uma constelação de objetos como livros teóricos, ferramentas e pinturas. Essas “ferramentas” são apresentadas em estruturas de madeiras, como barcos, que oferecem uma transição teórica e anticolonial desse conhecimento e jeito de fazer. Essas propostas, de ambas as instalações, possuem muito diálogo com a atuação do coletivo Sertão Negro, presente no primeiro capítulo, buscando pensar alternativas de produção não coloniais. Imagino que o diálogo com essas obras seria muito mais potente na exposição de instalações tão ricas do capítulo quatro. Porém, nesse momento do pavilhão essas instalações parecem funcionar por si, ou, através de uma ideia de diáspora africana, focados mais no “Além mar” e menos em como essa complexidade foi retrabalhada na formação social latino-americana de diáspora africana. Logo, partem de uma concepção curatorial que deixa o diálogo em segundo plano para imaginar que a relação da arte e diáspora vai se dar pelo contato direto com as instalações específicas.
No quinto capítulo, Cadências e Transformações, somos apresentados, a partir do texto curatorial, a "transformações tecnológicas", com as pinturas da japonesa Leiko Ikemura de um lado, e quase uma ocupação sobre o cineasta carioca Zózimo Bulbul (1937-2013). Fiquei com a impressão de uma investigação sobre tradição e modernidade nas artes. Em suas pinturas, Ikemura mergulha em uma reflexão sobre forma e corpos feminino em meio ao modernismo japonês, tal como Zozimo atuante no movimento negro carioca nos anos 1980, usa da câmera para reatualizar uma linguagem que não reconhece seu "corpo" como sujeito. Ambos de certa forma, à margem de um processo de modernização ligados a disputas de seus respectivos modernismos. Fiquei levemente incomodado pela ocupação de Zózimo, como fotos, jornais e documentos, ficar "isolado" em um canto do percurso, ainda porque, mais a frente, as fotografias de Mao Ishikawa trazem mais uma vez o peso da tradição, tema caro tanto ao modernismo latinoamericano quanto a cultura japonesa, presente em suas fotos intimistas de ambientes tradicionais (como o teatro, os templos e gueixas de Kyoto, e os Jardins Japoneses) – além de abordar de maneira crítica a presença americana em território Japonês.
Neste ponto, começo a pensar cada vez mais nessas obras como "ilhas" que perdem um potencial de tencionar o limiar que existe entre elas. Há uma decisão evidente de repensar o espaço como mediador das obras, tendo como exemplo das legendas colocadas nas pilastras e não perto das obras. Porém, o que fica evidente é a incapacidade do espaço curatorial em lidar com esse objetivo. Menos do que um problema de “logística”, acredito que há um problema de expografia, ao passo que essa não consegue proporcionar a potencialidade política que a linha curatorial propõe. Entre muitos focos, como investigar o conceito de “humanidade”, repensar a produção diaspórica mundial a partir das margens, a metáfora dos caminhos das águas como percurso de vivências, algo se perde em sua execução. Porém, a melhor experiência com as obras se dá pelas frestas deixadas pelos problemas nessas decisões expográficas.
Na instalação de tecidos Macuto (2025), da cubana Maria Magdalena Campos Pons, é possível sentir o frescor de seus tecidos estampados, os quais perto da janela podem ser solares mesmo no dia mais nublado de São Paulo. Essa instalação faz uma transição suave entre os capítulos como lembranças do passado ocupando os corredores, o que reforça a ideia que esse capítulo, o quarto, busca pensar o passado da modernidade de forma não-linear, como essa lembrança recalcada. Esse tipo de transição, utilizando as próprias obras, funciona muito melhor do que as cortinas artificialmente colocadas entre os “vazios” dos pavilhões.

Seguindo em direção ao último capítulo, há uma sala com pinturas em um ambiente climatizado. Pintoras "modernas", todas atuantes no século 20 em um certo modernismo do sul global, reaparecendo aqui lado a lado – são elas: Betina Lopes (1924-2012), moçambicana ligada ao modernismo português que buscou pensar o fundo do quadro por meio do contraste de cor em vez da luz, entendendo, assim, formas não-coloniais de produção plástica; a pintora marroquina Chaïbia Talal (1929-2004) e seus símbolos autoconscientes de memória plásticas (marcas abstratas) como maneira de traduzir traumas de violências de gênero; a artista mineira Maria Auxiliadora (1935-1974) em seus universos que repensam o real com vigor gestual e material. Fiquei refletindo sobre o caso de Auxiliadora, artista frequentemente classificada como ‘popular’: quando sua obra é apresentada em uma sala dedicada à pintura, isso a recoloca em um espaço de prestígio, ao mesmo tempo pode também restringi-la a uma linguagem que, em seu próprio tempo, não a reconheceu para além do rótulo de ‘popular’. Talvez porque, e essa sala mostra isso, pinturas modernas fora do cânone moderno possuem outras urgências que os desafios formais da tradição que a incorporam tardiamente.

O sexto e último capítulo intitula-se A Intratável Beleza do Mundo. Encerrar uma Bienal que se constrói a partir da reivindicação de tantos conflitos e crises globais com um tom agridoce me causa certo incômodo, como se a dureza das questões levantadas fosse suavizada por uma nota conciliatória. Em entrevista ao Canal Arte 1, o curador-chefe Bonaventure afirmou que um dos grandes problemas do mundo é o fato de "as pessoas não se encontrarem mais" e que a metáfora do estuário da Bienal ajuda a “pensar a humanidade como uma prática de negociação”. A partir dessa ideia, o capítulo final da Bienal recebe seu título com justeza. No entanto, continuo convencido de que o verdadeiro problema do mundo é a apropriação privada da riqueza socialmente produzida. Por isso, não acredito que a beleza seja capaz, por si só, de redimir essa contradição estrutural. Ou que a “negociação” seja a saída para nossas crises, já que a negociação se dá apenas entre partes iguais. Ainda assim, reconheço a força da lúcida e sofisticada instalação em vídeo de Adama Delphine, artista nascida em Nova York, ancestral dos Lenni-Lanape, que nos instiga a repensar a nós mesmos como indivíduos belos e complexos, tão vastos quanto o mar. O mesmo vale para as vibrantes produções do carnavalesco baiano Alberto Pitta, que resgatam uma ideia de brasilidade enraizada nas artes têxteis e que, em sua obra, aparecem em diálogo fértil com as insurgências lúdicas de festas populares, como o Carnaval.

Além do que já foi dito, o que mais me marcou nesta Bienal foi a força dos coletivos artísticos, que propõem uma noção de arte menos centrada na autoria individual e mais voltada à experiência partilhada. Em uma edição que se debruça sobre o conceito de humanidade, são justamente essas práticas coletivas que oferecem uma alternativa potente e subversiva: ao lidar com temas como memória, direito à cidade, desigualdade, imigração e mercado de arte, os coletivos revelam a dimensão social da criação artística como espaço de disputa e reinvenção. No entanto, essa potência aparece de forma lateral, quase como uma fissura dentro da narrativa curatorial. Mais do que reafirmar a Bienal como terreno fértil de contradições, o que essa edição evidencia é a dificuldade de sustentar tais tensões sem diluí-las em metáforas conciliatórias. Nesse ponto, talvez a força crítica da arte dos coletivos tenha apontado para caminhos que a própria estrutura da Bienal não foi capaz de acompanhar plenamente.






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