A marca coletiva de Ana Amorim
- Esaú Brilhante

- 27 de ago.
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Aberta para visitação no MAC-USP, a exposição "Mapas Mentais" aprofunda a investigação da artista sobre o tempo, a memória e a institucionalidade.
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Ana Amorim está atualmente em exibição no Museu de Arte Contemporânea da USP com a exposição Mapas Mentais. A artista já integrava o acervo da instituição como parte da mostra de longa duração Tempos Fraturados. No primeiro semestre deste ano, apresentou também a exposição 27032025-6.720-280-68 24052025-5.328-222-68 na Galeria Superfície. Além disso, desde o ano passado, participa da exposição Fullgás, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Para uma artista que esteve fora do circuito de arte durante tanto tempo, essa presença em exposições nos últimos anos reforça a relevância do momento, que se materializa na presente exposição no MAC-USP.
Suas obras funcionam como vestígios da vida comum, propondo uma crítica à institucionalidade, ao mesmo tempo em que provocam no público uma reflexão involuntária sobre memória, trajetória e pertencimento. Transformando ações cotidianas em experiências coletivas por meio de gestos artesanais que evidenciam a passagem do tempo. Este processo, constrói-se uma marca coletiva, resultado do cruzamento entre o tempo vivido individualmente e a memória compartilhada, tornando a experiência artística um espaço de reconhecimento comum.
Projeto dos 10 anos (1986–1996)
Ana Amorim iniciou seu projeto no final da década de 1980. Inicialmente, com mapas de suas atividades escritos e desenhados em livros, como forma de registro que “estava viva”. Estes objetos contém a gênese de uma simbologia: linhas para caminhos, formas geométricas para lugares e demais signos para a passagem do tempo são alinhados com números do ano, data, dia, contagem regressiva e progressiva para o final do ano. Aliado a esse “fazer”, vêm as “decisões conceituais”: regras autoimpostas que nortearam sua produção, buscando, ao final de cada dia, no decorrer dos 10 anos seguintes, a criação de seus mapas. Tais regras fazem a artista dialogar com as produções do artista visual estadunidense Sol LeWitt (1929–2007) e do pintor polonês Roman Opalka (1931–2011) no âmbito de decisões de produção autorreguladoras.
A artista iniciou sua busca pela forma dos mapas em Formato Final do Mapa (1987), uma obra originalmente pintada em uma única tela e, posteriormente, cortada em 12 partes. Assim como sua Primeira Grande Tela (1988), seguindo o mesmo minimalismo formal da obra anterior, tem o intuito de abarcar o registro de um ano, apresentando linhas simples e números que marcam as horas e os dias até o fim do ano, além de horas específicas do dia. Duas técnicas de acrílica sobre tela possíveis, em diálogo com sua atividade anterior na gravura, agora guiadas por suas “decisões conceituais”.
As sequências numéricas alteram-se levemente ao longo de outras obras até alcançarem uma estabilização. À primeira vista, e relacionando com os signos do caminhar, os números remetem a latitudes e longitudes. Posteriormente, fica mais claro que se referem a grandezas de tempo. Com as medidas mais elementares de tempo e espaço, Ana Amorim incrementa símbolos para longos períodos e grandes espaços, ao mesmo tempo em que representa sua casa com um quadrado simples.

Ana comenta: “evidências de que eu estava viva”, como se suas marcas no mundo fossem testemunhos de sua vida, mais do que a própria existência. Ao condicioná-las à sua vida, rompe com a lógica da produção por demanda, criando um ciclo que tem a própria prática cotidiana como epicentro. Não pode deixar de fazer, assim como não pode deixar de viver. Em dado momento, é difícil dizer se acorda para fazer arte ou faz arte porque acordou. Apesar de haver ali um “fazer”, um trabalho sobre um material — inicialmente em telas —, este está completamente atrelado à vida.
O paradigma do produtor isolado dos meios norteou todo o modernismo do começo do século 20. Com isso, os artistas buscaram fazer de sua produção uma ferramenta de retorno à subjetividade perdida. Os circuitos não oficiais — feiras, cartazes, agitações, intervenções públicas — tornaram-se meios de alcançar a recepção, o “público” cada vez mais distante. Já no começo do século 20, as obras de arte moderna transformaram sua raridade em valor de troca, tornando os objetos (quadros, esculturas, plásticas das mais diversas) em mais uma mercadoria comerciável na circulação geral. Diversas rupturas e estratégias foram tentadas.
Dois caminhos apareceram de forma hegemônica. Por um lado, a pop art, o minimalismo e novas perspectivas materialistas surgiram como aceitação desavergonhada e irônica do material como parte da reprodução do capital. Por outro, a reaproximação da arte como relação social, com caráter interventor, como na gênese das experiências do Dadá e do Construtivismo. A segunda foi vista como forma de lidar com a institucionalidade já em um contexto de monopolização dos meios de recepção de arte pós-68. Nos anos 1970, a financeirização e a especulação chegaram aos museus e às instituições de cultura. “O espetáculo é o capital acumulado até que se torna imagem”, aponta Guy Debord (1931-1994) em A Sociedade do Espetáculo (Contracampo, 1997), o representante máximo dos situacionistas. Em certo aspecto, a obra de Ana Amorim mantém relações com ambas as estratégias. Seu fazer apresenta uma proposta com diferentes materiais, ao passo que os motivos de origem e de fim escapam ao círculo fechado da representação ou da contemplação.

Hiato (1997–2001)
Ao fim do projeto dos 10 anos em 1997, houve uma espécie de "hiato". Este período, na verdade, pode ser compreendido como um momento de pesquisa, de imersão e estudo na própria prática. Na exposição do MAC-USP, é possível ver cadernos da artista, os Livros 1999-2001, onde há recortes de revistas referentes à neoliberalização das instituições de arte. Essa relação também será importante para as produções futuras, à medida em que os mapas, até então, apresentavam uma relação subjetiva com o tempo, como experiências individuais. Um novo momento na produção da artista teve início com as notícias de jornal — tão saturadas e cada vez mais presentes no cotidiano do início do século 21. Nesse contexto, torna-se cada vez mais inevitável compreender o corpo como parte de uma coletividade e a arte como uma forma de se relacionar com a experiência social.
Como aponta o antropólogo argentino Néstor García Canclini em seu estudo Culturas Híbridas (1990), também escrito em um momento de virada de século, a internacionalização do mercado artístico está cada vez mais ligada à transnacionalização e à concentração de capital. Por isso, a atenção à Guerra do Golfo, aos conflitos na Europa e ao genocídio do povo palestino passa a ter grande importância no registro diário de uma artista brasileira. Sem abrir mão de seu material minimalista e de sua rígida apreensão do tempo, esse período foi fundamental para um desdobramento ainda mais radical de sua obra: a relação com a institucionalidade.
Esse é um debate recorrente entre críticos e historiadores da arte pós-anos 1960: a eficácia do efeito de choque das vanguardas. Peter Bürger (1936–2017), em Teoria da Vanguarda (Ubu Editora, 2017), coloca em xeque a eficiência do choque promovido pelas neovanguardas dos anos 1960, movimentos artísticos que surgiram após a Segunda Guerra Mundial, questionando e expandindo as vanguardas históricas do início do século 20. Essas neovanguardas, uma vez incorporadas pelas instituições, perderam o caráter subversivo que a recusa em se inserir no circuito burguês de arte conferia às vanguardas dadaístas, surrealistas e construtivistas. Hal Foster, em O Retorno do Real (Ubu Editora, 2017), aponta como alternativa a crítica institucional, agora realizada de dentro das próprias instituições. Em perspectiva crítica, a produção contemporânea seria capaz de chamar a atenção para as dinâmicas cristalizadas no ambiente institucional. Assim, esse debate apresenta como ponto central a questão da inserção — ou não — da arte nas instituições, que, ao mesmo tempo em que geram legitimidade para a arte, também a transformam em mercadoria. É nesse caminho que segue a produção de Ana Amorim.

Retorno dos mapas (2001-2016)
Não é de se surpreender que, no decorrer do seu hiato de três anos, Ana Amorim tenha percebido não ser capaz de deixar seu “projeto” para trás. Assim, um novo momento de sua produção começou, apontando para um momento mais “autoconsciente” de seu fazer no mundo e das experiências que a cercam. Sua prática mais radical no esforço contra a mercantilização da sua arte surge em 2001 com o documento Contrato da Arte , apresentado na exposição do MAC-USP como uma de suas obras.
Nesta fase, Ana Amorim regulava todas as interações com o sistema de arte , ao impedir a exibição de suas obras em lugares associados a grandes marcas ou empresas. Essa atitude, com ecos dadaístas, parece a princípio fora de lugar no começo do século 21. O fim da Guerra Fria e a nova ordem mundial fizeram as utopias sumirem do horizonte. A estratégia de disputa dentro do real existente, como aponta o crítico francês Nicolas Bourriaud, virou a tônica na arte contemporânea. Na América Latina, corresponde ao período de redemocratização de vários países depois de ditaduras, momento que sustentou a crença nas instituições liberais, entre elas o mercado de arte. Muito afetado pela crise econômica no Brasil nos anos 1990, o mercado de arte voltou a existir com força no começo do século 21. Parece um momento de otimismo a ordem, o que rapidamente se mostra irrisório, em um desvelamento muito presente na obra de Ana Amorim.
Em 2001, a artista produziu Projeto 183, feito a partir de desenhos em lápis de aquarela sobre placas de EVA cortadas. E, em 2002, Mapa psicogeográfico, talvez entre toda a obra a mais diretamente ligada às tradições da Internacional Situacionista (1957-1972). Conceitos caros a Internacional Situacionista, como Psicogeografia e Dérive, buscam reelaborar um olhar atento à presença urbana através de sensações e respostas subjetivas dos pedestres. O clássico mapa The Naked City (1957), de Guy Debord, uma mapa que utiliza colagens para repensar a Paris através de uma “cartografia da deriva” e não da geografia tradicional, ou do Coletivo Italiano Stalker (1990), são exemplos dessa tradição, e assim como os Mapas psicogeográficos de Ana Amorim, oferecem um reordenamento menos cartesiano da locomoção.
Ainda em diálogo com os mapas, seu trabalho possui uma experimentação material mais evidente, chamando o fato para a importância que o suporte possui em sua obra. Algo que pode ser percebido em sua prática com o bordado, iniciada em 2013 com o Primeiro Bordado, produzido com uma linha de algodão branca sobre um tecido preto, onde o caráter efêmero é contrastado com uma prática artesanal que lida com o tempo em um outro ritmo. Influenciado pela arte de mulheres da Nova Zelândia, o uso do bordado parece colocar um desafio à sua prática, mas ao mesmo tempo a ressalta como artesanalidade do tempo comum.
Benjamin Buchloh dedica atenção especial à arte conceitual no livro Neo-Avantgarde and Culture Industry (Mit.Press, 2003): "A arte conceitual foi uma tentativa de desmaterializar o objeto artístico para escapar de sua fetichização pelo mercado”. Mais uma vez, o impulso conceitual de Ana Amorim tenciona o debate da arte: sua produção importa-se com o material ao passo que está fora da instituição que o transformaram em mercadoria, assim como possui um guia muito claro não tornar o material ser um fim em si mesmo. O diálogo com o material apresenta a transcendência do tempo através de um confronto com a materialidade de registrado: as obras apresentam “marcas” ou “vestígios” de vida corrente que fazem desses materiais testemunhas do fenômeno da passagem do tempo. Se entendermos a arte como uma esfera social, sintetizada da dialética entre a produção e a recepção, o confronto dessas “marcas” com o público torna reconhecível e reflexiva nossa experiência do mundo.

Da mesma forma A vida das pessoas (2003), uma colagem de revistas sobre cartolina plastificada, apresenta uma série de notícias de caráter geopolítico, evidenciando a efervescência do começo do século. A colagem remonta a prática modernista, ao mesmo tempo em que possui um prosseguimento do projeto conceitual da artistas. Essa obra pode ser interpretada como fruto do período de estudos, e uma predisposição a pensar cada vez menos na experiência pessoal no tempo fora de recortes globais.
Seus Mapas Minúsculos (2011), traços de caneta sobre etiquetas de papel, também permitem variações de escalas que possibilitam volatilidade a sua obra, de seus grandes temas a seus pequenos cartões, seus mapas expressam o quanto a passagem do tempo é uma unidade em condições, circunstâncias e pessoas diferentes. Ao reduzir seus elementos aos materiais do cotidiano, uma escolha que perpassa a ecologia também, toma o tempo como fator elementar da experiência humana.

Performance dos fatos
Apesar de o projeto dos Mapas continuar no período posterior a 2016, o diálogo com eventos específicos e como sua prática se inserem neles ganham contornos maiores. Como na obra Tempos Sombrios (2021), um mapa utilizando um bordado de algodão sobre linha, do dia após a eleição de Jair Bolsonaro; ou mesmo a obra Assange (2019), uma linha de algodão bordada a mão sobre tecido.
O período pode ser marcado também por práticas de performance, como Lutar pela Vida (2021), Contar segundos em Brumadinho (2022), Cinemateca (2021) e Contar Segundos MAC-USP (2021), obras onde o ato do efêmero se colide com acontecimentos da ordem públicas presentes no tecido social. Ao filmar seu corpo no acampamento “Terra Livre”, Ana Amorim proporciona a visibilidade e atenção à pauta sem perder seu ofício como horizonte, adentrando a distribuição no ecossistema do acampamento como parte orgânica. Da mesma forma, em Brumadinho, ela se posiciona diante do crime gerado pela empresa Vale – uma forma de estar no fato orbitou a memória de uma coletividade. A arte da performance possui diferenças significativas da arte conceitual, ao passo que ela se aporta mais em uma técnica do que em elementos norteadores por trás das obras. Ao recorrer a performance, uma forma de pautar a efemeridade, Ana Amorim traz um senso de urgência que dialoga com seu projeto e ao mesmo tempo mostra sua constante atualização.
![Performance Counting Seconds (2021), de Ana Amorim. Realizada no movimento indígena Luta pela Vida durante sete horas em diferentes locais, Brasília, Brasil. Arquivo digital [16:9],3h25m18s.. Foto: Wagner Khouri / Galeria Superfície.](https://static.wixstatic.com/media/34d49e_9984aa0577f449769f6640d295278b96~mv2.jpeg/v1/fill/w_608,h_608,al_c,q_85,enc_avif,quality_auto/34d49e_9984aa0577f449769f6640d295278b96~mv2.jpeg)
A produção artística de Ana Amorim, marcada pela disciplina, pelo rigor formal e por uma atenção radical à vida cotidiana, pode ser lida como uma manifestação singular daquilo que Sven Lütticken denomina de “revolução cultural estética”. Em seu livro Cultural Revolution: Aesthetic Practice after Autonomy (2017), o teórico holandês propõe que, diante do esgotamento da ideia moderna de autonomia da arte — entendida como separação entre arte e vida —, torna-se necessário reconfigurar essa autonomia em chave crítica. Para ele, o desafio contemporâneo está em desenvolver práticas artísticas que escapem tanto da arte institucionalizada quanto da simples assimilação pela lógica do mercado, criando zonas de fricção entre estética e política, entre forma e vida.
A obra de Ana Amorim parece estabelecer uma relação com o público que desmascara o particular da ação cotidiana e a recoloca como experiência coletiva. Sua gestualidade artesanal, subsume o que existe de mais corriqueiro a todos: a passagem do tempo. Essa prática reflexiva não apenas tenciona questões caras à arte moderna, como a autonomia artística ou o lugar do produtor, mas também com a situação da arte contemporânea, sua relação com o mercado e a possibilidade de uma “crítica institucional”. Como Marcel Proust (1871-1922), aponta em sua obra Em Busca do Tempo Perdido (À la recherche du temps perdu, 1913), as reminiscências são de duplo caráter: Voluntária, quando vamos até ela em busca de algo; e Involuntária, quando ela nos atinge como uma nostalgia súbita. A obra de Ana Amorim nos atinge no segundo caráter, nos faz repensar nossas datas e refazer nossos trajetos como maneira de localizar nossa experiência no mundo.
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