Ensaio reflete o papel das rádios na formação do gosto musical do público
De vez em quando, eu chego em casa e parece que volto no tempo. Um dia desses, minha mãe ressuscitou o milenar rádio-relógio da Toshiba que temos aqui em casa; estava sintonizado na estação Nova Brasil. Enquanto ouvia Jorge Ben Jor, me lembrei de uma provocação feita pelo jornalista Ricardo Alexandre sobre a predominância de músicas antigas e a escassez de novidades nas grandes rádios. Rodei um pouco mais para achar a 89FM — rádio que sempre ouvi nas minhas andanças de carro — e logo me encontrei quando ouvi os gemidos de Eddie Vedder, vocalista do Pearl Jam.
Logo de cara, Black, single lançado pela banda de Seattle há 32 anos. Depois tomei coragem para pegar o computador anotar as músicas que vinham enquanto tocava Short Skirt / Long Jacket, canção do Cake lançada pouco antes do atentado às Torres Gêmeas; e Puro Êxtase, do Barão Vermelho, de 1990 — uma boa pedida para conseguir esquecer a seleção desastrosa do Lazaroni na copa daquele ano.
O centenário rádio sempre foi um dos pilares da comunicação no Brasil. Importante para a formação do futebol, da disseminação de notícias, novelas e música. Sempre foi e sempre será ouvido; “é difícil, o rádio morrer”, como diria minha professora de radiojornalismo. Segundo uma pesquisa do IBOPE veiculada pela ABERT (Associação Brasileira de Rádio e Televisão), 80% da população das 13 maiores regiões do país ouvem rádio por pelo menos 3 horas ao dia. Dos 80%, 94% ouvem música pelo rádio, apesar do grande uso de streamings. Além da grande massa de ouvintes, 37% deles afirmam que pesquisam sobre o que ouvem na rádio, como produtos anunciados e músicas transmitidas, derrubando o mito de que quem ouve rádio não presta atenção.
De volta ao Dois da Tarde da 89 FM, depois de ouvir os aniversariantes do dia anunciados pelo apresentador e rememorar o single Machinehead, do Bush, deram play na primeira canção lançada nos últimos 5 anos: Black Summer, do Red Hot Chili Peppers, que foi ao ar em em 2022 — um bom single daqueles dois álbuns mornos que lançaram quase juntos.
Após isso, tocaram mais quatro músicas, com apenas uma de 2019 para cá. As outras foram lançadas há pelo menos 21 anos. Nessa onda musical tão refrescante quanto a poeira, foi apresentado o top 10 da lista Active Rock. Mas nada além de um breve trecho delas foi exibido.
Então, aparentemente, foi dada a largada para músicas “novas”, enquanto Nando Reis reabria a sequência musical com Não Vou Me Adaptar — uma versão de 2021 daquela lançada pelos Titãs em 1985 no segundo LP Televisão. Green Day fez presença com a boa The American Dream Is Killing Me, lançada neste ano.
As emissoras de rádio sempre tiveram um papel importante na formação do ouvinte e no estabelecimento de novas cenas musicais, como retratado no livro Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos Anos 80, do jornalista Ricardo Alexandre (Arquipélago, 2002). Ter sua música tocada nas rádios significava, e ainda significa, alcançar novos públicos e furar a bolha. Disputar com Footloose — que fechou a sequência de “novidades” — foi fichinha para Sonífera Ilha, Óculos e outros hits de 1984. Sons novos surgiam e eram adotados pelo imaginário popular, assobiadas nas ruas e, assim, fortaleciam o mercado e o cenário nacional.
A rádio sempre foi a “mediadora” do consumo musical brasileiro, construindo a memória de quem a ouvia, fazendo o meio-campo entre as gravadoras e seu público, o que significou, por muito tempo, a base do mercado fonográfico brasileiro. Essa importância vem desde 1960, quando, com o auxílio da TV, a música brasileira se consolidou como a mais ouvida no país, na contramão de outros países latino-americanos na época. Músicos pop-românticos como Odair José e Waldick Soriano sempre prevaleceram entre as antenas, apesar da crescente onda de outros movimentos como o Rock Brasileiro da década de 80.
É venerável a importância do rádio e sua capacidade de sobreviver a diversas mudanças tecnológicas e mercadológicas. Entretanto, desde que vestiram de vez a carapuça do jabá e deixaram de lado a postura formadora, as emissoras ignoram as novas cenas que tentam se criar. Em prol de apenas manter-se financeiramente, receber press kits dos grandes festivais e chamar sempre as mesmas cinco bandas para seus shows de aniversário, entrevistas e puxações de saco.
Claro que, com a ascensão do streaming e das redes sociais, outros jeitos de alicerçar uma cena musical surgiram, possibilitando um crescimento fora das rádios. Mas é tosco o abandono das novas bandas pelas emissoras. Há um esforço medíocre da 89FM, por exemplo, de abrir espaço para novas bandas em festivais como o Lollapalooza e ter sua música tocada de vez em quando. O que não adianta nada, é preciso um acompanhamento. Há uma resistência para tocar o que é fresco. O problema não são os lançamentos de bandas já consagradas, como Strokes, Weezer, Linkin Park e Red Hot, que constaram na sessão ouvida pelo repórter; mas sim o esforço de não tocar nada de bandas surgidas de 2019 para cá — incluindo aqui Ana Frango Elétrico; Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo; Grilo (vencedor de um dos festivais da Rádio Rock, mas um pouco ignorado desde o lançamento de seu último álbum); Terno; e outras bandas que vêm por aí trazendo novas propostas musicais e estéticas.
Além disso, há um claro apagamento do rock nacional: apenas duas das 19 músicas são tupiniquins, ambas lançadas há mais de 30 anos — apesar da versão de Nando tocada na rádio ser de 2021. Há, claro, o argumento de que existem programas na 89FM e na Kiss apenas para tocar Rock Brasileiro, mas é necessário? O gosto é moldado por aquilo que consumimos; é estranho tratarmos o rock nacional da mesma forma que tratamos nosso cinema, como algo alienígena e estranho. Falo especificamente do rock, pois os gêneros massivos como funk e sertanejo continuam a todo vapor e, à primeira vista, não há problema nisso. O perigo mora naquele que diz que o rock morreu no Brasil. Aliado a isso, todas as bandas tocadas nessa sessão da rádio têm pelo menos 15 anos de estrada — Halestorm é a caçula da playlist. Como dizer para o ouvinte que apenas consome música pela rádio e streaming que há uma nova cena aí, que existem novidades e misturas novas no rock? Como apresentar algo novo se ele apenas consome as mesmas coisas que a rádio toca há 10 anos? É uma bola de neve.
Claro que os streamings ajudam na divulgação de novos artistas, apesar dos pagamentos esdrúxulos que impossibilitam a emancipação do jovem artista pela sua própria música. Porém, o streaming não tem a legitimação da rádio, pois o discurso do locutor é um dos grandes pontos de legitimação, que pode alavancar e abrir novas portas para jovens artistas. Esse trabalho de gatekeeping, ou seja, o porteiro do valor-notícia, nesse caso, valor-novidade. O tal do curador, em quem você acaba confiando depois de um tempo e que, sempre que recomenda algo, você acompanha.
Na contramão dessa postura frouxa das rádios em reassumir seu papel, temos, claro, quem faça por ele. Hominis Canidae é um exemplo, e Trabalho Sujo, do jornalista Alexandre Matias, também.
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Fizemos uma playlist no spotify com as músicas que Pedro escutou naquele dia. Para ouvir, é só clicar aqui
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