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Diante da obra: arte como outro sujeito

Atualizado: há 6 dias

Artigo reflete sobre a interpretação de obras de arte a partir da instalação Someone's Child, de Pol Taburet


Me sentia tão vulnerável, tão pequena ao me deparar com Someone's Child (2025), do francês Pol Taburet. Didi-Huberman diria que, ali, eu não era a única a olhar: a obra também estava me olhando de volta. Era um encontro assimétrico, já que eu não controlava o sentido da obra e nem controlava a minha vontade de compreendê-la. Talvez porque havia ali um certo silêncio que, mesmo depois de quatro visitas à Bienal, não fui capaz de decifrar. Ela parecia saber de algo que eu ainda não sei.


O artista vive e trabalha em Paris. Suas referências vão desde suas raízes caribenhas até a cultura contemporânea e a pintura clássica. Suas figuras são distorcidas, híbridas entre humano e animal, corpo e objeto, vida e morte. Representado pela Mendes Wood DM, a galeria coloca sua obra como “uma contraposição singular entre texturas e acabamentos, trazendo detalhes minuciosos e muito simbolismo.” A combinação do velho e do novo pode ser entendida como simbólica em toda a obra de Taburet, que transita entre a pintura, escultura e instalação – como é o caso do trabalho que me traz tanta curiosidade.


Someone's Child está no segundo pavimento da 36ª Bienal de São Paulo. Ao entrar na sala em que a obra se encontra, sou teletransportada para um lugar simultaneamente futuro e ancestral. As paredes são totalmente brancas, não se sabe onde começam e onde terminam; o teto me deixa nauseada com sua ilusão de infinitude. Em contrapartida, a instalação retoma elementos que remetem à origem, ao antigo, como a terra, as cornetas e o bronze. 


Esta não é uma obra que se oferece. Ao contrário do que Byung-Chul Han sugere ao analisar a produção contemporânea, esta instalação não se entrega de primeira. Segundo o autor, o gosto atual tende a preferir obras de arte impecáveis, polidas e lisas. A escultura Balloon Dog de Jeff Koons, exemplo trazido por Han em A salvação do belo, é banal e não apresenta “[...] qualquer desastre, vulneração, quebra ou brecha [...] Não dá a interpretar, a decodificar ou a pensar” (p. 12). Someone's Child, por outro lado, não é lisa, nem polida, ela demanda tempo, apuração, entendimento. Seus significados são compreendidos ao longo da sua observação, que não deve ser meramente contemplativa e sim interpretativa. A instalação provoca um tipo de negatividade, muito diferente do que é apresentado em Koons: algo alegre, positivo, simples. São obras totalmente acessíveis e superficiais, encarnando a atual sociedade positiva. 


Balloon Dog (Blue) (1994-2000), da série Celebration, de Jeff Koons. Imagem: Jeff Koons / Reprodução: Bernardaud
Balloon Dog (Blue) (1994-2000), da série Celebration, de Jeff Koons. Imagem: Jeff Koons / Reprodução: Bernardaud

Na esperança de compreender alguma coisa sobre a obra de Taburet, recorro ao audioguia disponibilizado pela Bienal. É possível encontrar algumas pistas, mesmo que nenhuma delas me traga de fato alguma resposta:


[...] Pol Taburet apresenta uma instalação composta por esculturas em bronze com trompetes acoplados à boca chamadas Lungs [Pulmões], uma escultura em bronze em formato de rosto chamada Guts [Entranhas] e por uma peça central em terra e poliestireno chamada Belly [Barriga]. 


Someone's Child (2025), de Pol Taburet, em exposição na 36ª Bienal de São Paulo. Foto: Levi Fanan/Bienal
Someone's Child (2025), de Pol Taburet, em exposição na 36ª Bienal de São Paulo. Foto: Levi Fanan/Bienal

A partir daí, entramos na grande questão da arte contemporânea: como entender uma obra de arte se muitas delas são compostas de simbolismos e significados próprios das vivências – sejam elas pessoais ou coletivas – do artista? Talvez não se trate de entender, mas de se aproximar. Algumas obras pedem que o observador aceite o estranhamento. Diante disso, compreender não é efetivamente desvendar e traduzir, mas escutar: escutar a imagem como quem escuta alguém contando uma história. Someone’s Child não se oferece ao espectador como algo pronto para ser compreendido; ela exige um encontro, uma presença, um corpo disposto a ser afetado. Nas aspas publicadas pela galeria Mendes Wood DM, o artista afirma:


“Quero que a obra seja legível pelos olhos da criança, que ela veja algo alegre e divertido dentro dela, e que os adultos tenham uma compreensão muito mais intensa do que está sendo apresentado” (TABURET)


O que também entendo desse desejo de Taburet é que independente do entendimento total da obra, independente dos significados, cada visitante terá sua interpretação. Ele não deseja que sua obra seja totalmente compreendida ou lida, mas sentida pela intensidade do que é apresentado. Em Someone's Child, o artista resgata o pensamento do filósofo francês Grégoire Chamayou para romper com as formas típicas de conexão e comunicação entre obra e indivíduo. Ainda me apoiando no audioguia,


Escrever uma história da caça aos homens é escrever um fragmento de uma longa história de violência por parte dos dominantes. É também escrever a história das tecnologias de predação indispensáveis para o estabelecimento e a reprodução das relações de dominação.


O texto de “explicação” da obra é em si uma forma dominante de conhecimento. Essa constatação nos leva a tópicos básicos de inclusão e acessibilidade, tendo em vista primeiramente que nossa sociedade é uma sociedade visocêntrica, ou seja, seu funcionamento é pautado e gerado ao redor do princípio de que enxergamos e lidamos com a visão como nosso principal sentido. Seríamos, então, uma sociedade completamente diferente se não tivéssemos essa capacidade.


Em segundo lugar, o texto de “explicação” não foi o foco da curadoria de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung e equipe, proposta que anda de mãos dadas com a obra de Taburet. No cenário da crítica brasileira, houve um grande debate acerca da contextualização das obras expostas nesta Bienal: enquanto alguns gostariam que as obras tivessem mais contextualização, com textos explicativos próximo às obras, outros estudiosos optam por deixar-se expor à experiência e encontrar novas maneiras de se contextualizar, ou ainda, utilizando as palavras de Filipe Campello, “novos regimes de atenção”. Essa edição da Bienal convida para o exercício inverso: no lugar das obras se oferecerem aos visitantes, somos nós quem devemos nos entregar à elas.


Os ‘textos’, as ‘palavras’, as ‘letras’ daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores [...] no corpo das árvores, na casca dos frutos. (PAULO FREIRE)


De volta a Didi-Huberman, a imagem não deve ser entendida como um aparato físico meramente estático, inanimado, imutável – ela é carregada também por camadas de significação. Uma relação de troca e reciprocidade, visto que assim como o indivíduo que se depara com a obra possui um contexto e um histórico, a obra também possui um. Basta eles se encontrarem. Aqui recorro novamente ao audioguia da exposição:


Mais do que representar mitologias ou narrativas específicas, Taburet constrói uma cena suspensa, na qual matéria e símbolo se entrelaçam. O visitante é convidado a atravessar esse espaço instável, onírico e indeterminado, entre sensações de familiaridade e estranhamento.


Pois essa Bienal foi justamente sobre isso. Resgatando a poesia de Conceição Evaristo e a analogia do livro, dividido em seis capítulos, a mostra propôs uma outra forma de vivenciar exposições. Sem depender especialmente de plaquinhas e textos, mas se deixar levar pelo corpo e pelo sentir próprio – sem certo ou errado, verdadeiro ou falso. “Nem todo viandante anda estradas”, ou seja, por vezes podemos optar por um caminho alternativo ou, até quem sabe, simplesmente não caminhar. O não-caminhar é também uma experiência em si.


Quando meus pés

abrandarem na marcha,

por favor,

não me forcem.

Caminhar para quê?

Deixem-me quedar,

deixem-me quieta,

na aparente inércia.

(Da calma e do silêncio – Conceição Evaristo)


A experiência humana, a depender dos sentidos que lhe são concedidos, é coletiva. Ainda assim, é primeiramente singular – uma vez que cada um carrega a subjetividade que tem, como a bolsa amarela da Lygia Bojunga. Continuo sem entender a instalação de Pol Taburet. Ela ainda me causa medo, desconforto; ainda me sinto pequena diante dela. São muitos os fatores que me forçam a entendê-la: talvez por sua aparente infinitude, talvez pelos efeitos sonoros da obra, como se as cornetas estivessem de fato soando. Talvez me sinto pequena justamente por não conseguir compreendê-la – aqui como em um sentido de capturá-la, controlá-la. Em um texto sobre Taburet para a Bienal, o curador e pesquisador Wes Chagas propõe que


[...] além de seu repertório pessoal, difícil de ser notado de primeira, Taburet trabalha respeitando seus instintos criativos. Talvez por isso consiga nos aproximar e nos repelir ao mesmo tempo desse universo [...] sem receio de nos proporcionar sensações que oscilam entre medo, estranheza e curiosidade.


Talvez esse enigma seja exatamente a intenção do artista e da obra. Meu único trabalho seria me contentar com essa irresolução porque, mesmo incomodada, não sou eu quem atribui sentido à instalação – ela já possui vida própria. 


SERVIÇO

36ª Bienal de São Paulo

Pavilhão Ciccillo Matarazzo (Av. Pedro Álvares Cabral, s.n. – Parque Ibirapuera, Portão 3, SP)

De terça a sexta das 10h às 17h30; sábado das 10h às 18h30; e domingo das 10h às 17h30

Até 11 de janeiro de 2026

Entrada gratuita


NOTA

Este artigo foi escrito originalmente para a disciplina Arte e filosofia na contemporaneidade da pós-graduação em Arte: Crítica e Curadoria da PUC-SP. Profª Sonia Campaner; coordenação Marcus Bastos.


REFERÊNCIAS

BIENAL DE SÃO PAULO. Audioguias: Pol Taburet. Bienal de São Paulo, 2025. Disponível em:  <https://36.bienal.org.br/audioguias/pol-taburet/>.


CAMPELLO, Filipe. Direito à opacidade. Revista Celeste, São Paulo, 20 de outubro de 2025. Disponível em: <https://celeste.art.br/direito-a-opacidade/>.


CHAGAS, Wes. Pol Taburet. Bienal de São Paulo, 2025. Disponível em: <https://36.bienal.org.br/artista/pol-taburet/>.


BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela (1973). Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2013. 

CYPRIANO, Fabio. Falta de contexto confunde 36a Bienal de São Paulo. Arte!Brasileiros, São Paulo, 17 de setembro de 2025. Disponível em: <https://artebrasileiros.com.br/arte/bienais/falta-de-contexto-confunde-36a-bienal-de-sao-paulo/>.


DE JESUS, Bruna. Texto não é Contexto: resposta a “Falta de contexto confunde 36a Bienal de São Paulo". GLAC Edições,  São Paulo, 25 de setembro de 2025. Disponível em: <https://www.glacedicoes.com/post/texto-nao-e-contexto-resposta-a-fabio-cypriano-em-falta-de-contexto-confunde-bruna-de-jesus>.


DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o quê nos olha (1998). São Paulo: Editora 34, 2010

EVARISTO, Conceição. Da calma e do silêncio. Disponível em: <tudoepoema.com.br/conceicao-evaristo-da-calma-e-do-silencio/> .


FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler (1981). São Paulo: Cortez, 1989. Disponível em: <https://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2014/10/importancia_ato_ler.pdf>.


GUIMARÃES, João Victor. 36a Bienal: Humano dentro e fora do corpo humano. Revista Celeste, São Paulo, 03 de outubro de 2025. Disponível em: <https://celeste.art.br/36a-bienal-humano-dentro-e-fora-do-corpo-humano/>.


HAN, Byung-Chul. A salvação do belo (2015). São Paulo: Editora Vozes, 2019.

MENDES WOOD DM. Pol Taburet. Disponível em: <https://mendeswooddm.com/pt/artists/293-pol-taburet/>.

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