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Foto do escritorDavi Krasilchik

Anamorfismos digitais e analógicos: O cinema de Jane Schoenbrun

Resenha analisa a fusão entre o corpo físico e o digital nos filmes We’re All Going to the World’s Fair e I Saw the TV Glow


A ficção científica contemporânea está cheia de ciborgues – criaturas que são simultaneamente animal e máquina, que habitam mundos que são, de forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados. (DONNA HARAWAY)


Na condução de uma trilogia perpassada pelas telas do notebook à televisão de tubo, Jane Schoenbrun vem conquistando fãs com suas propostas acerca da relação entre o humano e as imagens. Denominada pela diretora estadunidense como Screen Trilogy, o projeto inclui os longas-metragens We’re All Going to the World’s Fair (2021), I Saw the TV Glow (2024) e o slasher Teenage Sex and Death at Camp Miasma (ainda sem data de lançamento). Ainda que já tenha trabalhado a conexão intrínseca entre a mente humana e suas criações no documentário A Self-Induced Hallucination (2018), além de já ter dirigido alguns curtas, foi com o primeiro longa-metragem da trilogia, um filme de terror independente, que sua assinatura despontou.


We’re All Going to the World’s Fair acompanha a jovem Casey (interpretada por Anna Cobb), uma adolescente dos subúrbios norte-americanos que decide se juntar à comunidade de um jogo online misterioso. Ela publica um vídeo anunciando sua filiação ao grupo, que alimenta a plataforma “The World’s Fair” a partir de uma série de postagens, nas quais descrevem aspectos da mitologia por detrás do game e compartilham os efeitos provocados ao jogá-lo. Com o tempo, a garota perde a noção do que diferencia a fantasia da realidade. O cenário se restringe especialmente ao quarto da garota, e a coloca em tela a partir de uma webcam amadora.


Cena de We’re All Going To The World's Fair (2021), dirigido por Jane Schoenbrun. Still: Utopia / Divulgação.


Por sua vez, o segundo integrante da Screen Trilogy possui uma escala de produção maior. Distribuído pela A24 e lançado em maionos Estados Unidos, I Saw the TV Glow parte desse mesmo encontro entre o real e as narrativas, dessa vez transmitidas pelos raios da televisão. Pressionado pela rigidez de seu pai e isolado de seus colegas de escola, o pequeno Owen (Justice Smith) lida com o desejo de assistir a um programa exibido poucos minutos após o seu horário de descanso: “The Pink Opaque”. Ele faz amizade com Maddy (Brigitte Lundy-Paine), uma menina mais velha e grande fã da série, com quem passa a assisti-la escondido. Conforme o gosto pelo seriado aumenta, os limites entre a vida das crianças os episódios se confundem.


 Cena de I Saw the TV Glow (2024), dirigido por Jane Schoenbrun.  Still: A24 / Divulgação.


Distantes em seus modos de produção - o que se reflete, conceitualmente, na própria natureza de suas imagens -, os dois filmes elucidam um mesmo projeto de cinema, operando no encontro entre a identidade primária de suas personagens e aquela emancipada pelo imaginário. É especialmente interessante observar como o choque se traduz no jogo entre corpo e espírito, ultrapassando uma série de registros mediados pela distorção de planos e camadas.


Em seu ensaio, Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista  no final do século XX (Autêntica, 2009), a filósofa estadunidense Donna Haraway desmistifica um conjunto de ideias comumente atribuídos à figura feminina, historicamente enjaulada em um papel social demarcado por ciclos de submissão e reducionismo. Ela invoca uma figura superior ao gênero, um suprassumo da gênese humana: o ciborgue. Moldado pelo contato entre o homem e a máquina, este estaria sob constante aprimoramento.


Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo. (HARAWAY, 1997, p.36.) 


Esse hibridismo nega as dimensões orgânicas, historicamente reforçadas para reproduzir padrões hierárquicos, e autorizam uma nova forma de ser, entrelaçando o biológico ao fabricado. Em uma entrevista feita pela Variety, a cineasta Jane Schoenbrun afirmou não compreender completamente a sua relação com o gênero: “É bem confortável abraçar as incoerências”. Estejam no calabouço pessoal de Casey ou nas aventuras de trinta minutos nas quais Owen se refugia, as pluralidades sintetizam as duas obras, traçando relações interessantes entre os seus protagonistas, os produtos de suas mentes, e a maneira como a câmera opta por intermediar esse diálogo.


As luzes que emanam do computador desenham o rosto da participante do jogo de horror. Os intervalos luminosos afundam a garota na escuridão, sugerindo incertezas, inúmeras maneiras de se compor o espaço negativo. Na relação virtual que estabelece com os membros da comunidade online, Casey se informa por sugestões. Impressões, simulacros, duplos e reproduções. São restos de humanóides pré-existentes, dissolvidos digitalmente enquanto se transformam em alguma outra coisa.


Cena de We’re All Going To The World's Fair (2021), dirigido por Jane Schoenbrun.  Foto: Utopia / Divulgação.


A textura da câmera de baixa resolução corrobora para esse estado intersticial. São reminiscências dos que se dispõem a viajar para a World's Fair, sujeitos a enfrentar pesadelos particulares que nunca se materializam em tela. Ao invés disso, vemos corpos deformados, por glitchs, erros de conexão, filtros de imagens. Seres que não se reconhecem, e talvez nunca tenham se reconhecido.


Ainda que esse senso desesperançoso também esteja presente em I Saw the TV Glow, é evidente a mudança na articulação de Jane Schoenbrun. Valendo-se de Owen, mais uma personagem dedicada a anular sua realidade imediata, encontra um leque para a exaltação mais direta desse potencial de libertação. O filme estabelece como seu fio condutor a fricção entre o cotidiano estático do protagonista e o universo dinâmico de “The Pink Opaque”, série paródica que se assemelha aos desafios de Buffy: A Caça Vampiros (Buffy, the Vampire Slayer; de Nerf Herder; 1997-2003). Conforme a incapacidade de Owen em exercer a sua verdadeira forma, “híbrida”, ele mergulha ainda mais fundo no mundo paralelo projetado pela televisão.


A identificação de Owen com a personagem principal do seriado temático, Isabel (Helena Howard), alimenta a sua vontade de escapar para o universo fictício enquanto alegoria trans. A vida que Owen testemunha, todos os domingos à noite, pela pequena tevê, passa a fazer muito mais sentido que a sua própria - traz muito mais gosto, desejos e emoções. Em confidência a melhor amiga, revela ter medo de seu interior, além de desacreditar da conexão entre suas características biológicas e espirituais. O jovem fantasia com as tatuagens, as aventuras e conexões de “The Pink Opaque”, ao lado do companheirismo de Maddy. 


Tudo muda quando Maddy desaparece por completo, retornando apenas anos mais tarde. Em seu regresso, revela partilhar de uma condição que até mesmo Owen admite estar desenvolvendo também. A dupla não é mais capaz de distinguir quais memórias são verdadeiras: as da atração televisiva ou as de sua própria vida. De forma análoga, Haraway propõe um estreitamento entre as esfera orgânica e maquínica de uma determinada identidade. Ela defende uma desconstrução dessas próprias formas, de cunho quase taxonômico, de determinação dos sujeitos, advogando novamente pelo intercâmbio entre as potências orgânicas - nossos instintos, vontades e impulsos de ser - e aquelas fabricadas ao longo de nossa formação social. 


É certamente verdadeiro que as estratégias pós-modernistas, tal como o meu mito do ciborgue, subvertem a uma quantidade imensa de totalidades orgânicas… Em suma, a certeza daquilo que conta como natureza…, é abalada, provavelmente de forma fatal. (HARAWAY, 1997, p.36.) 


Mesmo com sua ode aos escapismos fantásticos, defendendo a fabulação enquanto resistência de identidades oprimidas, I Saw The TV Glow encara essa junção como um processo doloroso, ainda atravessado por uma série de estigmas externos e interiorizados. A confusão entre memórias surge para perseguir a dupla de protagonistas, exigindo deles um duro processo de transformação. Apesar do cuidado, nem sempre essa condição deixa de ser superficial.


As duas realidades ali propostas sofrem de diversos vícios plásticos, não exclusivos, mas hoje associados aos “filmes indie da A24”. Os videografismos que explicitam datas, mensagens e outras informações tomam conta da tela, didatizando o processo em sua tentativa de se aproximar de uma parcela teen. Tons vibrantes desenham os rostos das personagens na tentativa de sustentar uma atmosfera alternativa, deslocada de um lugar social comum. Os ruídos artificiais sugerem um esgotamento muito calculado de certas imagens, minimizando o seu impacto enquanto representantes da realidade fabulada pela televisão.


Isso cria um obstáculo desafiador entre a subversão de signos e a criação de um novo código a partir deles, e enquanto o primeiro longa encontra a sua expressão na dissolução, aqui a direção se torna um pouco refém das próprias criações. É claro que o derreter de um “homem monstro sorvete”, ou a maneira como o corpo do protagonista sucumbe aos intercâmbios entre as fitas de vídeo com sua vida, aponta para a ideia de uma superação corpórea, desafiando seus limites. Mas a cristalização daqueles símbolos superficiais acabam amenizando os encontros possíveis entre a mente e suas fabricações. É como se a rigidez do filme - e mesmo em sua estrutura narrativa, talvez acamada por influência dos produtores - trouxessem alguma segurança, desnecessária, ao projeto.


Cena de I Saw the TV Glow (2024), dirigido por Jane Schoenbrun.  Still: A24 / Divulgação 


Nem por isso I Saw The TV Glow deixa de ser interessante em seu trafegar por túneis neons e por desmistificar o que se esgueira por debaixo dessa artificialidade aparente. E, muito menos, deixa de encantar com o lirismo do protagonista enquanto figura híbrida, desconfiada de não pertencer ao corpo que lhe foi dado ao nascimento, ser vagante desse entremeio psíquico fantástico.


A artificialidade, inclusive, reforça um estado dormente, talvez típico da Geração Z, igualmente investigado pelo cinema de Jane Schoenbrun. É construído o relato de uma geração desestimulada, que normalizou esse distanciamento entre as formas naturais e aquelas mediadas por suas criações.


Uma espécie de desenlace entre os produtos do hibridismo de Haraway e seus novos produtores. Diluídos em diferentes telas, determinam uma dupla relação com suas fabricações; estão conciliados nessa realidade fictícia, mas tardam em fazê-lo naquela que lhes é imediata.


É na emancipação da arte de cineastas como Jane, todavia, que a investigação desses anamorfismos se torna cada vez mais tangente, capaz de inspirar gerações e gerações de ciborgues impulsionados por sua natureza múltipla.


*


REFERÊNCIAS

HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: ciência, e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna.; KUNZRU, Hari.; TADEU, Tomaz (orgs). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 33-118.

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