Linklater em Eclipse
- Luca Scupino
- há 1 dia
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Com apenas uma semana separando seus lançamentos, os filmes Nouvelle Vague e Blue Moon retratam os períodos de ascensão e decadência de artistas renomados
Há cineastas, como Stanley Kubrick (1928-1999) e Victor Erice, que demoram anos — às vezes, quase décadas — de um filme ao próximo. Já outros desenvolvem vários projetos ao mesmo tempo e conseguem finalizar uma obra por ano, ou até mais. Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), conhecidamente, lançou 43 filmes em sua breve carreira entre 1969 e 1982, tendo chegado nos anos 1970 a uma média incrível de três a quatro filmes por ano. Mas poucos são os anos em que um cineasta consegue lançar dois grandes filmes. Pensemos em Francis Ford Coppola em 1974, com O poderoso chefão – parte II e A conversação — Coppola, inclusive, concorreu ao Oscar contra si mesmo (e ganhou!). Ou Ingmar Bergman (1918-2007), que no seu incrível furor criativo dos anos 1950 lançou duas de suas obras-primas O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, no mesmo ano de 1957.
Quando lançados simultaneamente, os filmes raramente se equilibram em padrão, sendo muito frequente que uma obra seja mais celebrada que sua irmã gêmea por motivos que vão da recepção crítica a arbitrariedades do mercado de exibição. A fraternidade tem suas traições, e os próprios pais às vezes selecionam seus filhos preferidos. No entanto, quando esse equilíbrio de fato acontece, temos diante de nós uma conjunção astrológica, expressão quiçá de um artista em seu auge criativo. Talvez possamos falar em termos de um eclipse: quando dois astros se encontram e se alinham, um em ascensão e um queda. Como sabemos, esse evento astronômico produz um efeito desnorteador, uma nova imagem que se olharmos fixamente ameaça cegar, tão forte sua radiância.
Estamos em 2025, e não se trata do primeiro ano em que Richard Linklater nos brinda com duas obras lançadas quase simultaneamente – há apenas uma semana de diferença entre o lançamento dos filmes no circuito comercial dos Estados Unidos. Ainda assim, a experiência de assistir a Nouvelle Vague seguido de Blue Moon pega o espectador de surpresa: é certo que os filmes parecem muito distintos entre si, tanto em termos estéticos quanto no tom e nos temas abordados. Como também fica evidente que eles não poderiam ter sido realizados por outro cineasta. Mais ainda: cada um parece nascer do mesmo tipo de investigação que guiou a criação de seu par. De Jean-Luc Godard a Lorenz Hart, entre o nascimento de um artista e a morte de outro, do sol branco parisiense de 1959 à lua azul na noite de Nova York dos anos 1940, entrevemos uma só imagem: a interrogação de um homem, frente ao mistério da criação. Como escreveu Godard (1930-2022) sobre Bergman, nas páginas dos Cahiers du Cinéma amarelos: o artista está sempre sozinho, diante de uma página em branco.
Nouvelle Vague
Como Linklater vem afirmando reiteradamente em entrevistas, Nouvelle Vague nasce de um desejo e de uma necessidade: todo cineasta deveria fazer um filme sobre o próprio cinema pelo menos uma vez. Não é por acaso que, quando vai realizar sua metanarrativa, é no mito da Nouvelle Vague onde encontra uma fonte de inspiração. Mais especificamente, no nascimento de Jean-Luc Godard (interpretado por Guillaume Marbeck) como cineasta, em 1959, quando finalmente consegue financiamento do produtor Georges de Beauregard para realizar seu primeiro longa-metragem, o icônico Acossado (1959) — após todos os seus colegas de redação dos Cahiers du Cinéma (Truffaut, Chabrol, Rohmer e Rivette) já terem passado por esta experiência. Pobre Godard, deixado para trás e relegado à ingrata posição do crítico.
Linklater é muito consciente do território arriscado em que adentra, e mesmo da desconfiança por parte dos espectadores ao abordar um momento tão particular da história do cinema: o contexto em que a consciência da história das formas já é dada, reconhecida e constantemente referenciada (como diria Rivette, “já não somos mais inocentes”). Era patente, antes de sua estreia, como na comunidade cinéfila o filme já era dado como um fracasso em potencial, meramente pelo assunto abordado. Mas, como Godard fala para o produtor Georges de Beauregard: “qualquer coisa é filmável”. Por que, afinal, não se pode fazer uma biopic sobre a Nouvelle Vague, o movimento cinematográfico, por excelência, da citação e da reverência cinéfila? É certo que tudo pode ser filmado. Entretanto, há uma questão oculta nesta afirmação: “como?”
O Godard de Nouvelle Vague já é um Godard mediado pelo mito: ele vem junto com as citações, com os traços complexos de personalidade que seriam descritos inúmeras vezes depois em biografias e relatos, com os óculos escuros colados em seu rosto e a tudo mais que se tem direito. Interpretado brilhantemente por Guillaume Marbeck, iniciante no audiovisual e seu duplo perfeito, Linklater recria o Godard de seus sonhos cinéfilos, bem como suas contrapartes (não só os demais “jovens turcos”, mas também Varda, Demy, Bresson, Rossellini e todos os outros grandes cineastas da época que vivem em nosso imaginário — quando escrevo todos, são realmente todos). Em muitos sentidos, trata-se de um filme heroico sobre tempos heroicos. Porém filmado em 2025, décadas após a desilusão cinéfila de 1968 e a falência dos projetos utópicos, a briga de Godard com Truffaut em 1973 no contexto de lançamento de A noite americana, a transformação do autor em commodity e a morte de toda essa geração.
Ainda assim, Linklater insiste em filmar da mesma maneira como um filme seria feito em 1959: preto e branco, janela 4:3, som ruidoso, câmera na mão, equipe pequena, atores amadores e assim por diante. Em certo sentido, mais do que uma biografia sobre a Nouvelle Vague, a obra parece um metaestudo de Linklater acerca de como fazer um filme da Nouvelle Vague. Assistindo-a, fica claro: a nova forma de se fazer cinema proposta por Acossado, as imagens livres, os raccords falsos e jump cuts, o roubo de imagens do imaginário hollywoodiano — Godard propõe um cinema novo porque ele mesmo aprendia conforme se filmava. Da briga com a script girl sobre um objeto em descontinuidade (a voz anasalada: “la réalité n’est pas en raccord”), ao ato de colocar o cinematógrafo Raoul Coutard dentro de um carrinho de transporte para filmar um travelling, trata-se de uma grande pedagogia do gênio, um retrato do artista quando jovem.
Afinal, o cinema de Linklater é sempre sobre o aprendizado, o amadurecimento, o coming of age. O que seria um filme dele sobre a Nouvelle Vague senão uma grande trama de maturação do jovem Godard que, dialogando com os conselhos de seus mestres e colegas, decide um dia ser cineasta e vai atrás de seu sonho sem pensar nas consequências? Todos jovens, loucos e rebeldes: a visão de Linklater da Nouvelle Vague é nada mais que o mesmo hangout movie que ele constantemente refilma, desde Slacker (1990) e Dazed and Confused (1993): Godard vai ao metrô e encontra por acaso Robert Bresson, que lhe dá lições sobre o cinematógrafo; dá uma carona para Rossellini que lhe ensina o que fazer ou não fazer num set de filmagem; encontra Rohmer, Chabrol e Truffaut na fila do cinema MacMahon; provoca e é provocado por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, atores que protagonizam o filme que está dirigindo. Aliás, a relação de amor e ódio de Godard com Seberg, no início relutante com os métodos não-ortodoxos do cineasta, dá a Nouvelle Vague todo o seu coração — culminando na cena que registra o gesto final de Seberg em Acossado, olhando para a câmera como quem joga a interrogação ao espectador, após a morte do personagem interpretado por Belmondo.
Se Godard, como todo grande artista, é um ladrão; então Linklater, um ladrão que rouba de ladrão, merece cem anos de perdão. É certo que Nouvelle Vague não é e sequer pretende ser uma obra-prima. É um pequeno filme, mais que um filme pequeno. Não ofende, mas tampouco provoca algo além do sorriso bobo. Quem imaginaria? Há de se admirar, no entanto, o compromisso de ir até o fim com o fetiche, de assumir a séria responsabilidade de ser o bobo da corte. De mostrar os jovens como jovens que são (e sempre serão). Godard, mais do que ninguém, entenderia.

Blue Moon
Se Nouvelle Vague é sobre a aurora de uma ideia de cinema (mais até que de um cineasta), em nosso esquema do eclipse Blue Moon já estabelece a que veio em seu título. Ethan Hawke interpreta Lorenz Hart (1895-1943), compositor talentoso e decadente que, ao longo de uma noite, se debate sobre o sucesso de seu ex-parceiro de trabalho, Richard Rodgers, que acaba de estrear o musical Oklahoma! (1943). Regredimos no tempo em duas décadas enquanto as ruas de Paris dão lugar ao imaginário privado dos bares nova-iorquinos, com seus personagens típicos (o cliente bêbado, o barman cansado, a jovem alpinista social e assim continua). Composições de Hart como “Bewitched, Bothered and Bewildered”; “My Funny Valentine” e a canção-título embalam um filme de clima taciturno, com ares de aristocracia decadente e de músicas melancólicas de piano tocadas em um salão sem audiência.
O filme é, essencialmente, um estudo de personagem de Hart, figura tão complexa quanto Godard, um homem que se diz “embriagado pela beleza”. Suas duas epígrafes já estabelecem um oxímoro: uma afirma ser um homem divertido; a outra diz que é o sujeito mais triste que já se conheceu. Gênio e vulgar; autor de musicais bem-comportados e alcoólatra inveterado; amante da beleza feminina e homossexual no armário: Ethan Hawke incorpora esses paradoxos com um penteado pavoroso e uma baixa estatura que, não fosse pela sua energia intelectual inconfundível que casa perfeitamente com o roteiro de Linklater, esconderiam-no por trás do personagem. Como o próprio Hart afirma no filme, trata-se de um homem que passou diretamente da infância ao “washed-up” (no dicionário: “acabado”), que já viveu seu auge e cujo futuro é sabidamente ladeira abaixo.
Assim como Nouvelle Vague, Blue Moon também é mediado por um imaginário cinéfilo. Particularmente, o filme me trouxe à lembrança o deleite de ver os filmes de Woody Allen pela primeira vez (em especial alguns dos anos 1980 no período da parceria com Mia Farrow, sua era de ouro com filmes como Broadway Danny Rose e até mesmo Hannah e suas Irmãs, com o qual Blue Moon compartilha muitas das trilhas musicais). Na caixa fechada do bar, em que personagens vêm e vão, o filme nos faz rememorar, em seu primeiro ato de longas antecipações, a peça Esperando Godot (1949) de Samuel Beckett. Também evoca o longa Meu Jantar com André (1981, Louis Malle), passado em apenas um ambiente no qual dois atores, Wallace Shawn e André Gregory, interpretam a si próprios e conversam sobre suas vidas — filme com o qual Linklater compartilha o gosto pelo diálogo, a crítica ao showbusiness e aos vícios da sociedade de consumo e a afeição pelos rostos das figuras do bar.
Não se trata do primeiro filme de Linklater passado quase inteiramente em um espaço fechado e sustentado pelo peso das atuações — ver Tape (2001) — e muito menos da primeira experiência do diretor trabalhando primordialmente a partir do diálogo, motivo pelo qual justamente apreciamos seus filmes. Mas é certo que, aqui, ele radicaliza ao extremo os pressupostos de seu cinema, e nos desafia a acompanhá-lo enquanto Hart engaja em longas conversas com Elizabeth (interesse platônico, muito mais jovem, interpretada por Margareth Qualley), Eddie (o barman vivido por Bobby Canavale) e o próprio Rodgers, em atuação centrada de Andrew Scott que lhe rendeu um prêmio no Festival de Berlim.
Há algo um tanto grotesco na caracterização do personagem, e Hawke trabalha no limite da representação verossimilhante. O próprio ritmo do filme, muito distinto da agitação de Nouvelle Vague, arrisca constantemente a cair e mudar de tom, estabelecendo uma dinâmica um tanto irregular e que perplexa mesmo os mais compreensivos admiradores de Linklater. Aspectos que são de certa maneira “perdoados” pela frontalidade com que o diretor reconhece seu dispositivo de “circuito fechado”, evocando na forma do filme a dinâmica da encenação teatral — personagens que constantemente se rearranjam em uma disposição cênica espacialmente limitada e temporalmente contínua, mediados por uma câmera interessada em mapear o agenciamento interno de seus intérpretes naquele grande teatro da vida.

Da luz à penumbra
Se Nouvelle Vague propõe a vida como cinema e o cinema como a vida, em Blue Moon temos a vida como um espetáculo: não a euforia burlesca de um Oklahoma!, mas quiçá um monólogo silencioso de fim de noite no off-Broadway. É curioso como Linklater, a dois passos, evoca dignamente os impasses do artista: em um dos filmes sua ascensão, no outro sua decadência. Neste encontro de astros que orbitam em sentidos opostos, ele evoca uma prática intertextual que vai do próprio cinema ao seu irmão mais velho, o teatro, formando uma imagem dupla: um alinhamento de opostos cuja força gravitacional e colisão de trajetórias nos deixa no escuro com nossos próprios pensamentos, sem saber separar o que antes sempre parecia tão claro.
Em dado momento de Blue Moon, em um de seus muitos monólogos, Hart menciona a habilidade do artista de “trair a morte”, ao deixar como legado um corpo artístico que transcende a própria dimensão do ser. Em ambos os filmes isso se faz presente: o drama de viver e morrer pela arte, de entregar o corpo e vender a alma em nome da própria obra, encaminhada então como força interventora na realidade. Nesse complexo de múmia baziniano, em que o artista atinge a imortalidade pela vivacidade de sua arte, talvez Hart se encontre com Godard e Linklater se encontre, enfim, com seus ofuscantes mitos de origem.


