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Reflexão sobre o método

Foto do escritor: José Anderson PaixãoJosé Anderson Paixão

Valendo-se do pensamento de escritoras como Leïla Slimani e Susan Sontag, José Anderson Paixão reflete sobre a escrita enquanto um fazer artístico


A escritora franco-marroquina Leïla Slimani discorre sobre seus padrões de escrita em O Perfume das Flores à Noite (2022), uma espécie de mescla entre ensaio e livro de memórias. Nele, ela argumenta ser necessário se isolar e negar jantares ou eventos. Os objetos precisam estar em seus devidos lugares e nenhuma sordidez deve aproximar-se dos perímetros de seu escritório. Para Slimani, escrever é jogar com o silêncio e, através da letargia verbal, as palavras interiores brotam de modo a revelar um pensamento mais profundo, uma verdade calada ou uma nuance não descrita.


Na mesma época em que anseia pelo isolamento e por uma saída do limbo criativo, a autora recebe uma proposta inusitada de uma amiga editora: passar uma noite sozinha no museu Punta della Dogana, em Veneza. A partir daí, Slimani inicia um percurso por memórias passadas ao se conectar com as obras de arte presentes ali.


Ao observar as fotografias de Berenice Abbott (1898-1991), que retratam Nova York há um século, lembra-se da sensação que sentia no retorno ao seu país de origem: as coisas mudam por mais que exista a ambição de captura e retenção do agora. Também lembra-se da ausência do pai enquanto analisa as esculturas de Tatiana Trouvé: peças que assumem um retrato metafórico do processo de ausência através de marcas deixadas por seres inanimados.


Fiquei interessado na maneira em que a arte vai se refletindo num processo espectral e, após a leitura, alguma característica do texto de Slimani se fincou em minha memória por dias. Percebo que nossa conexão se estabeleceu pelo modo no qual a autora é levada a escrever durante aquela noite no museu. Pela forma diligente e sensível com que fala sobre seu processo criativo, pois, quando entro em contato com obras de arte também me sinto inspirado a realizar o que faço melhor: escrever.  


A luz do seu relato acabou pairando sobre mim e por meio da junção de objetos díspares que constituem a minha experiência, quero estabelecer uma espécie de fio condutor para falar sobre o meu processo de escrita, pensar sobre os porquês e refletir sobre o método.


Corpus Delicti: Cartões de embarque, talheres, cinzeiros e corrente (1992-2006), de Jac Leirner. Foto: Eduardo Ortega
Corpus Delicti: Cartões de embarque, talheres, cinzeiros e corrente (1992-2006), de Jac Leirner. Foto: Eduardo Ortega

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Assim como Natalia Ginzburg (1916-1991) em O meu ofício (1949), a primeira coisa séria que escrevi foi um conto. O dela tinha cerca de cinco ou seis páginas, o meu tinha menos. Fui tomado por uma breve ansiedade enquanto escrevia, queria terminar logo, queria que fosse uma história amarrada e, sobretudo: queria observar minha criação, meu produto final. O conto descrevia uma mulher angustiada com dificuldades em adentrar no reino dos sonhos, lembro de escrever sobre uma luminária que projetava luz em uma parede antagônica e sobre um aparelho celular que caía ao chão quando, enfim, conseguia dormir. Ao fim do ensaio de Ginzburg, argumenta-se que o processo de escrita, para além do belo, também pode assumir a forma dos nossos sentimentos ruins. E assim, aquela personagem assumia a minha forma, eu também me encontrava angustiado na noite em que a criei. Não posso me considerar felizardo por isso, mas quando a inquietação se apossa do peito e torna o coração pesado e latente, é aí que sinto aquela faísca de inclinação. Nesses momentos me sinto só e tenho as palavras como as únicas companheiras que me restam. 


Ainda não enxergo com clareza o que me leva a rabiscar ideias no papel, ou a abrir um documento em branco no meu computador. A necessidade interna se manifesta de forma rápida e pungente, não tenho tempo para desperdiçar: preciso agarrar todas aquelas frases antes que tudo se esmoreça gradualmente. Diferente de Slimani, o isolamento me torna ocioso, preciso de um ponto de contato com algo ou alguém para que o texto tome forma.


A conversa assume um ponto central em minha escrita, me identifico quando Susan Sontag (1933-2004) relata em sua entrevista para a revista Rolling Stone que o diálogo é uma chance de se entender a partir do que se fala ao próximo. Escrever pode parecer árduo porque somos levados a lidar com nossos emaranhados e complexidades de maneira solitária e, por vezes, não conseguimos entender a amplitude das nossas ideias. Por isso, categorização é uma palavra que se adere à minha experiência, escrever me confere a capacidade de esboçar minhas abstrações. Escrever torna possível rejeitar as manifestações habituais da estética, com a possibilidade de instituir uma nova, capaz de abarcar as variações do meu ser.


Recentemente tenho lido muitos livros no qual as autoras relatam seus processos de escrita. Assim como toda forma de arte, a literatura é criada por seres humanos dentro de um contexto, por isso observo como crucial a discussão sobre o fazer literário, que consequentemente respalda toda a história da intelectualidade e pensamento humano. Escrever engloba não apenas a obra pronta, mas também o processo criativo, os percalços, o espaço-tempo e a interioridade. Escrever é um atestado de deterioração do corpo, das coisas e dos costumes. Escrever é revelar uma fotografia para que, após muitos anos, seja retirada do fundo de uma gaveta e aponte-se com ternura, repulsa e curiosidade a vulgaridade dos tempos passados. 


Frequentemente esquecemos da cotidianidade das nossas vidas: o que comemos no dia de nossa formatura; o material da cama que dormíamos quando criança; a forma e a imagem que costumávamos possuir. Como afirma Joan Didion (1934-2021) em Sobre ter um caderno (1968), escrever e anotar é um ponto de alteridade com nossas personas passadas e talvez com as que iremos assumir num futuro próximo. Por isso, a escrita é um modo de atrito e evocação.


Escrever também é um ato de esperança. Me vejo caminhando em um campo verdejante, num lugar desconhecido abastado por frutos exóticos. Há tanto o que explorar e observar; o campo de visão é infinito e o solo é rico em minerais. Permanece a esperança de sempre encontrar algo novo, de descrever novas cores e sabores, de brincar com a forma de um texto, de viver outras vidas e de verter palavras sem o compromisso de explicá-las pois, a literatura é o que é. Há o conto, o ensaio, a poesia. Há a vontade de ler mais, pois o escrever é dependente do ler. Ler Clarice, Balzac e Ernaux.


Me mover: para mim a escrita também é movimento. Iniciei esse texto enquanto estava deitado sobre minha cama. Agora me encontro sentado numa pequena mesa de cozinha. Não sei em qual estado me encontrarei quando esse texto for lido por alguém. Eu escrevo e me movo: movimento o corpo, o pensamento e as ideias que extraio sobre o mundo ao meu redor. Movimento as ideias de outro alguém com o que escrevo, pois se escrevemos algo substancial também temos a capacidade de tocar os outros.


Se tocamos os outros é porque alguém nos lê. Parte da esperança que move a escrita se faz presente na possibilidade de sermos contemplados com o olhar atento de nossos parentes, amigos e estranhos. A possibilidade de um olhar atento também pode vir de nós, admito que releio as coisas que escrevi, observo meus entraves, meus vícios de linguagem e a performance que assumi ali, naquele salpicado de palavras. Busco melhorar, aprender, deixar para trás tudo o que não me serve mais e carregar comigo tudo o que escrevi e gostei.


Ao escrever quero me provocar, preciso da falta de saciedade que me acompanha ao longo dos parágrafos indefinidos. Quero revisitar a incongruência dos meus dias e confabular sobre o suposto dito em tentativas de remediação. Quero tocar no machucado para enfim abandoná-lo ao processo de cura. Assim como Clarice Lispector (1920-1977), quero enxergar na falta de sentido a veia que pulsa.


Frequentemente penso no que vem após a escrita, mas percebo que não importa o depois. É no obstáculo intransponível entre o que se escreve e o que se quer dizer que as coisas acontecem e, assim como a personagem de Alba de Céspedes em seu Caderno proibido (1952), atingimos o estado de catarse. O único anseio que se pode ancorar no depois é a vontade: de tomar novos rumos; de realizar o ofício demasiadamente bem; de romper com conceitos premeditados; de escrever sem medo, sem pudor e sem piedade.


Nada do que digo aqui será suficiente para embarcar os processos fenomenológicos da escrita, sejam os meus ou os de outro alguém. Sinto que esse é um daqueles temas difíceis de pôr um fim. A escrita é um trabalho que sempre aponta para a continuidade e, por mais que os livros tenham um desfecho (ou não, vide O processo, 1925, de Franz Kafka), eles continuam ganhando vida e gerando debates em cadeia cíclica.

Por isso, a escrita nunca terá fim. As angústias e as alegrias só desembocam no desejo de escrever ainda mais e, através da escrita, administro minhas emoções e mantenho-me vivo. Vivo e pensante.


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REFERÊNCIAS

CÉSPEDES, Alba de. Caderno Proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 288 p.

COTT, Jonathan. Susan Sontag: A entrevista completa para a revista Rolling Stone. Belo Horizonte: Autêntica, 2024. 198 p. 

DIDION, Joan. Rastejando até Belém. São Paulo: Todavia, 2021. 240 p.

FERRANTE, Elena. Frantumaglia: Os caminhos de uma escritora. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017. 416 p.

GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 128 p.

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 336 p.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: 2019. 224 p.

SLIMANI, Leïla. O perfume das flores à noite. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil. 128 p.

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