Ensaio revisa o conceito de amadorismo no cinema, a partir de um artigo da cineasta Maya Deren e analisando trabalhos de Éric Rohmer e Hong Sang-soo.
Equipe de O Raio Verde (1986, Éric Rohmer)
Em meu texto anterior para a Revista Galérica, sobre a obra do cineasta Walter Hugo Khouri, finalizo a argumentação com a ideia de que o cinema de Khouri constitui um exemplo daquilo que chamo de “cinema amador”, e do melhor que este tem a oferecer. Geralmente associado a uma conotação pejorativa, ao inacabamento e à baixa qualidade daqueles que não entendem o que fazem, o amateur se revela, ao contrário, como uma enorme potência criativa em que o cinema de autor pode se apoiar.
Muitos dos grandes cineastas da história trabalharam de forma amadora e deixaram como resultado obras de profunda vivacidade – da mesma maneira que o melhor cinema realizado hoje, por diretores como Hong Sang-soo e Pedro Costa, também se aproxima dessa ideia. Proponho, portanto, uma dissociação entre o “amador” e aquilo que pode ser entendido como “neófito”, “inexperiente” ou mesmo “incompetente”. O amadorismo é, sobretudo, o que dá ao cinema a matéria em que este se realiza.
Um pouco antes de escrever sobre Khouri, também publiquei em meu blog A Tela do Fantasma uma espécie de manifesto daquilo que compreendo como o “amador” no cinema:
O cinema amador é o cinema daquele que ama. E quem ama se sujeita a sentir a dor que existe em todo amor.
O amador é aquele que pega com a mão, que transforma a ausência em matéria. A fragilidade é seu fundamento.
Para o amador, olhar é um convite para tocar, moldar, brincar.
É quem faz com o que tem e tem o que faz. A arte não está no resultado, mas no processo, nos seus erros e enganos.
Rohmer, Cézanne, Salinger, Dylan, todos esses foram grandes amadores porque acima de tudo não deixaram nada entrar no caminho, a não ser o essencial.
Ser amador é ser antropofágico: engolir tudo que nos fortalece.
É voltar para a infância da arte, onde não há diferença entre a vida e os rabiscos que se faz no caderno.
O amador é o único modo de se fazer política em cinema porque sua existência o é: política dos autores, dos atores, das minhas, das suas, das nossas dores.
Não se faz cinema sem ser em primeiro lugar amador. Pois fazer cinema é implicar-se como se não existisse mais nada.
Para o amador, não existe o medo de errar, apenas de não tentar. Porque falhar é também uma forma de acerto, é pensando bem desejado e planejado.
O amador é quem faz cinema apesar de tudo, pois sabe que ele é a arte de amar e a verdade aparece quando se paga o preço do amor.
Sejamos amadores!
Minha intenção aqui é descrever as origens do termo no audiovisual e entender, a partir de alguns exemplos, em que medida este modo representa uma alternativa corrente ao modelo hegemônico de fazer cinema – objetivo um tanto ambicioso, é certo, e com a consciência de que dificilmente dará conta de seu objeto. Esse texto se coloca, então, como uma introdução, que se abre ao convite de ser expandida para outras formas de entendimento. Ele nasce, também, como uma tentativa de entender um certo aspecto intangível que me fascina em um conjunto de filmes citados aqui, e que diz respeito a uma energia crua; a um equilíbrio instável entre controle e descontrole que existe por conta de uma própria abertura da ficção aos acontecimentos do mundo; uma compreensão de que mesmo aquilo que seria o defeito mais grave em um filme “profissional” pode se tornar uma virtude, se encarado com suficiente amor.
Embora o termo pareça ter aplicação mais fácil em outras artes, a própria estrutura de produção coletiva e dispendiosa do cinema atua historicamente como uma barreira para o que podemos entender como “cinema amador”. O termo aparece originalmente associado aos cineastas da vanguarda americana, em particular Maya Deren (1917-1961) e Stan Brakhage (1933-2003), além de ter sido empregado pelo cineasta mais associado ao termo, Jonas Mekas (1922-2019), como aponta o artigo do pesquisador Rafael Valles. Não coincidentemente, tratam-se de diretores que empregaram em seus filmes técnicas e conceitos distantes daquilo que era realizado no cinema narrativo industrial, cujas equipes de produção consistiam em pouquíssimas pessoas (no caso de Brakhage, apenas ele mesmo) e com uma abordagem artesanal que contribui diretamente para o resultado da imagem que se vê em tela.
Em um artigo intitulado Amateur versus Professional, publicado em 1959 no periódico Movie Maker’s Annual e posteriormente na Film Quarterly, em 1965, Deren busca a etimologia da palavra “amateur”, no latim, para mostrar que o termo designa “aquele que faz algo por amor”, antes que por necessidade ou motivos econômicos. Posicionando o cinema amador como uma alternativa ao cinema industrial (com seus sets elaborados, atores profissionais e equipe especializada), Deren afirma que o cineasta amador é aquele que usa sua câmera como forma de registrar o movimento do mundo a partir de sua própria liberdade para experimentar com ideias visuais - sem que o diretor esteja preocupado em “acertar o plano”, dar retorno comercial com seu filme ou não ser demitido pelo estúdio que o contratou. O cineasta opera, assim, com um grau de experimentação tal qual um poeta faria com suas palavras.
Deren, dessa forma, encara o amador como um formato que garante a superioridade do autor ou da autora frente à máquina (seja esta a própria câmera ou a estrutura de produção cinematográfica dominante) – colocando, inclusive, o seu próprio corpo em jogo no momento de filmar:
Não esqueça que nenhum tripé construído é tão milagrosamente versátil em movimento quanto o complexo sistema de apoios, articulações, músculos e terminações nervosas que é o corpo humano, que, com um pouco de prática, torna possível uma enorme variedade de ângulos de câmera e ação visual. Você tem tudo isso, e um cérebro também, em um pacote hábil e móvel. Câmeras não fazem filmes; cineastas fazem filmes. (Deren, tradução nossa)
Ritual in Transfigured Time (1946, Maya Deren)
Já Brakhage, em seu artigo In Defense of Amateur (1971), retoma a aproximação de Deren entre o cineasta amador e o amante, para afirmar que esse pode ser entendido como quem se sente “em casa” em qualquer lugar que trabalha - como um jovem apaixonado, é quem aprende seu ofício desastradamente enquanto o descobre, e com ele cresce em todos os aspectos de sua vida.
Em última instância, para Brakhage, todo ato de fazer um filme diz respeito a uma tentativa de derrotar a morte e o tempo, exteriorizar o processo da memória. Trata-se de uma ideia que o aproxima do crítico André Bazin, apesar do fato de Brakhage rejeitar a ideia de representação ou mesmo de uma “vocação realista” do cinema. E, assim como o cinema hollywoodiano - “fábrica de sonhos” - realiza seus dramas como uma forma ritual de memória coletiva, o amador imprime em seus filmes sua própria tentativa artesanal e solipsista de dar conta de um mundo que o atravessa. Com Brakhage, mesmo uma costura entre fragmentos de filmes vencidos, com colagens e fotogramas pintados à mão, pode se tornar a mais bela carta de amor, expressando aquilo que apenas o olho consegue compreender.
For Marylin (1992, Stan Brakhage)
No caso do cinema narrativo, talvez o francês Éric Rohmer (1930-2010) seja o maior expoente método amador, constituindo-o em uma verdadeira tradição. Uma anedota do filme Conto de Verão (1996) representa bem sua concepção de cinema: filmando com equipe reduzida em uma praia abarrotada no verão francês, a preocupação de Rohmer não era de que os possíveis figurantes “naturais” fossem atrapalhar seu filme, mas antes que seu filme atrapalhasse as férias dos banhistas. Desse modo, Rohmer criou todo um sistema de gestos de comunicação entre a equipe, e métodos para esconder a presença da câmera e dos microfones, a fim de não chamar atenção ao ato de filmagem. E o que se enxerga no filme, entre as conversas e caminhadas de Gaspard (Melvil Poupaud) e Margot (Amanda Langlet), é um retrato do verão na Riviera francesa tal qual o perceberíamos, estando lá – uma atitude, em última instância, de profundo respeito com o mundo em que o filme se coloca.
Conto de Verão (1996, Éric Rohmer)
Após vivenciar experiências péssimas trabalhando em sets de filmagem de média escala, durante suas primeiras tentativas na direção, Rohmer procurou reduzir ao máximo os aspectos que poderiam complicar seus filmes. O cineasta geralmente trabalhava com equipes de menos de 10 pessoas, com atores e técnicos de sua confiança e em locações que não precisariam ser alteradas para a filmagem, sem diretores de arte (ele próprio se encarregava da cenografia e figurino de seus atores, a partir do próprio guarda-roupa do elenco) ou sequer assistentes de direção – funções consideradas essenciais em sets de cinema profissionais.
Esse modelo de produção encontra seu ápice no ciclo de filmes “Comédias e Provérbios” (1981-1987), que Rohmer realizou durante os anos 1980 – em especial em sua obra-prima O Raio Verde (1986), que conta com experimentos radicais de improvisação com a atriz Marie Rivière. Não se deve entender essa abertura ao imprevisível como uma entrega preguiçosa do filme ao acaso, mas antes como uma estrutura dentro da qual se desenha uma ficção cuidadosamente engendrada, na qual o próprio cineasta manipula a narrativa e a imagem com o mínimo de mediação, alimentando seu filme com a matéria do mundo. Reconhecido como um “filme amador” pelo próprio Rohmer, este enfatiza em depoimento o aspecto de liberdade que foi filmar nessa época: “são filmes que me deixaram intactos psicologicamente. Eu descansei neles”, ele afirmou (de acordo com a biografia sobre o diretor, escrita por Antoine de Baecque e Noel Herpe).
Outra anedota significativa, que demonstra bem este equilíbrio entre técnicas não-profissionais e uma estrutura meticulosamente pensada pelo cineasta, se encontra no filme O Joelho de Claire (1970). De acordo com o produtor Barbet Schroeder, sabendo que filmaria uma cena na qual o protagonista, interpretado por Jean-Claude Brialy, abaixaria para pegar uma rosa na montanha, Rohmer decidiu plantar a rosa ele mesmo, um ano antes das filmagens, no lugar certo e calculando o tempo que demoraria para que ela florescesse. Tal como um demiurgo que cuida manualmente (e carinhosamente) de todos os mínimos aspectos de sua criação, o plano de Rohmer funcionou exatamente como planejado.
O que a lição de Rohmer tem a nos ensinar? Certamente suas técnicas não se aplicam a 99% do que é produzido no cinema hoje. Afinal, em plena era de dominação das salas de cinema por grandes franquias e das atuais greves por parte do Sindicatos dos Atores, em Hollywood, que também protestam contra a apropriação da indústria pela Inteligência Artificial, torna-se difícil enxergar o alcance que tal cinema pode ter.
Acredito ter sido Werner Herzog quem declarou, anos atrás, que a tendência do cinema contemporâneo é se bifurcar entre as superproduções, que visam a transformar a sala de cinema em um abrigo para o espetáculo e o entretenimento; e filmes pequenos, autorais, feitos com orçamentos cada vez menores e que não estarão preocupados em atingir todos os públicos, mas sobreviverão justamente pela ação humana evidente na sua própria feitura. Tudo que existe entre esses polos tende a desaparecer.
Olhemos, então, para um cineasta contemporâneo que soube trabalhar com o que há de essencial no cinema: o coreano Hong Sang-soo, cuja produtividade o levou a lançar, nos anos 2010, uma média de 2 a 3 filmes por ano em vários dos maiores festivais de cinema do mundo. Nos créditos de um de seus últimos filmes, Na Água (물안에서, 2023), consta o seguinte:
Direção: Hong Sang-soo
Roteiro: Hong Sang-soo
Elenco: Seok-ho Shin, Seong-guk Ha, Seung-yun Kim, Kim Min-hee
Produção: Hong Sang-soo
Música: Hong Sang-soo
Cinematografia: Hong Sang-soo
Edição: Hong Sang-soo
Som direto: Hyejeong Kim
Design sonoro: Hong Sang-soo
O método de Hong rapidamente se constituiu em uma pequena indústria. Trabalhando com um número reduzido de atores (incluindo sua esposa, Kim Min-hee, possivelmente uma das mais talentosas atrizes do cinema contemporâneo), Hong vem acumulando também funções que, tradicionalmente, seriam realizadas por profissionais especializados. O cineasta tem o costume de convidar seus estudantes de cinema, da faculdade de Seoul em que dá aula, para trabalhar como assistentes das áreas técnicas - mesmo essas funções vêm sido reduzidas em seus últimos filmes.
Hong passou a fazer seus filmes sem roteiros tradicionais e com uma decupagem cada vez mais econômica, que consiste em planos gerais, fixos, a partir dos quais o procedimento do zoom redecupa o campo dentro do que interessa olhar, nas conversas que constituem seus filmes. Desse modo, o intermédio da montagem não se faz necessário para mudar de enquadramento. O uso da câmera digital, mais prática e portátil, é mais um aliado no sentido de fazer filmes baratos, que rapidamente recuperam o valor do orçamento, mesmo que a bilheteria não seja tão alta (e certamente existe público para seus filmes, na Coreia e no mundo).
Os efeitos desse modo de construir um filme, que se radicalizam a cada novo lançamento de Hong Sang-soo, são facilmente evidentes e conferem à obra uma certa concisão que amplifica cada pequeno movimento. Penso, aqui, em uma cena de A Mulher que Correu (2020), na qual um homem bate à porta de sua vizinha para pedir que ela não alimente os gatos de rua que incomodam sua esposa – conversa desconfortável que dura minutos na porta da casa enquanto um gato, presente no canto da tela, observa estaticamente os personagens conversando. No momento em que eles se despedem e saem de quadro, a câmera dá um zoom no rosto do felino que, embora tenha permanecido parado durante a cena, toma conta do plano e emite um bocejo diabólico, encarando diretamente a objetiva.
O que poderia ser um ato banal, que passaria despercebido em um filme convencional é, então, ressignificado pelo modo de enunciação de Hong – de forma que se constitui como um pequeno milagre, um momento que se imprime na mente de quem o assiste devido ao fato de que, sabemos, não havia artifícios na cena e que o momento provavelmente ocorreu de forma espontânea. Parece que, no movimento amador do filme, o próprio espectador é capturado e se torna seu amante secreto – forçados a absorver cada detalhe, Hong nos leva a se apaixonar pelo movimento de seu teatro de luz.
A Mulher que Correu (2020, Hong Sang-soo)
Este texto mais ilustra uma série de filmes e ideias que sejam capazes de elucidar o conceito de “cinema amador”, do que necessariamente oferece uma sistematização ou definição última do que este seria. Entendendo que uma grande diversidade de cineastas se utiliza de uma grande diversidade de métodos para tal, meu objetivo não é esgotar o assunto, mas antes ampliar a compreensão do termo e lutar contra um preconceito que se instalou há mais de 50 anos, inclusive na crítica de cinema, e com o qual cineastas se queixam de lidar. Vendo por filmes contemporâneos que orgulhosamente se assumem como “amadores”, como La Parle (2022, de Fanny Boldini, Gabriela Boeri, Kevin Vanstaen e Simon Boulier), essa lição se mostra como um de muitos caminhos possíveis de trilhar, atualmente, em busca de um modo apaixonado e rico de se fazer cinema. Uma janela, em um meio tomado pela técnica, que dá luz para a presença do humano por trás da obra - dizia Maya Deren, acima de tudo são os cineastas quem fazem os filmes. Parece que o autor, afinal, não está tão morto quanto se pensava.
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