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Entre o filme-enquete e o cinema de atrações: imagens da juventude em "Masculino, Feminino" e "A Chinesa"

Ensaio analisa os longas de Godard como um díptico cinematográfico que compreende as mudanças culturais e políticas vividas pela juventude moderna


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Acompanhar a obra de Jean-Luc Godard (1930-2022) nos anos 1960 significa estar diante de um artista em constante reinvenção, cuja forma cinematográfica responde às transformações no mundo e às próprias mudanças do cineasta em relação à política e às formas de representação estética. Para o biógrafo Antoine De Baecque (Éditions Grasset & Fasquelle, 2010), Godard operava como um radar, que captura o ar de seu momento e as agitações da juventude, sempre respondendo às crises com novas formas e ideias, além de questionar as próprias certezas em um gesto contínuo de autorreflexão.


Tal como seus colegas cineastas da Nouvelle Vague, a obra de Godard foi informada por um conhecimento profundo acerca da história do cinema e da cultura cinematográfica francesa, conforme aponta o pesquisador Michel Marie. Estes interesses estão expressos na crítica de cinema realizada por Godard ao longo dos anos 1950 e com a qual seus filmes possuíam uma relação direta de continuidade.


Em certa medida, pode-se dizer que este período inicial de sua obra, que compreende seus primeiros longas-metragens até 1968, consiste em um grande “passeio” pela história do cinema. Nele, Godard atualizava os gêneros clássicos americanos que formaram sua cinefilia, do noir (reimaginado no longa-metragem Acossado) ao melodrama (Viver a Vida), do musical (Uma mulher é uma mulher) à ficção científica (Alphaville), sem esquecer o road movie (O demônio das onze horas). Este passeio lidou com essa herança até um ponto de esgotamento, que já parece se anunciar em 1966.


Neste ano, Godard lançou Masculino, Feminino (Masculin, Féminin), filme que marca um período de transição na sua obra para uma abordagem mais direta da realidade social da França e da nova juventude, vivendo entre o consumo massificado e as mudanças políticas fundamentais ocorridas na França e no mundo, que ditaram o resto do século 20. Pouco tempo depois, em 1967, o filme A Chinesa (La Chinoise) radicaliza alguns dos procedimentos presentes na obra de 1966, ainda tratando da juventude e política, porém indo de uma abordagem sociológica quase documental, presente em Masculino, Feminino, a modos de enunciação que remontam aos primórdios da história do cinema – em especial ao que o teórico Tom Gunning denomina como “cinema de atrações”. Trata-se de dois filmes que compartilham similaridades marcantes e diferenças estruturais; além de revelarem, cada qual ao seu modo, uma estética da juventude francesa contemporânea ao momento de rodagem. Assim, podem ser compreendidos como um verdadeiro díptico cinematográfico: duas obras que, se analisadas em conjunto, se complementam e nos oferecem novas chaves de interpretação.


Jean-Pierre Léaud, Jean-Luc Godard e Chantal Goya em Masculino, Feminino (1966)
Jean-Pierre Léaud, Jean-Luc Godard e Chantal Goya em Masculino, Feminino (1966)

Os filhos de Marx e da Coca-Cola

O ano de 1965 marca acontecimentos relevantes na história política da França. Em particular, foi quando ocorreu a primeira eleição presidencial com voto direto no país desde 1848 (até então, o sistema de votação era indireto e utilizava um Colégio Eleitoral composto por várias alas do governo), na qual o então presidente Charles De Gaulle venceu no segundo turno, com uma margem estreita. Enquanto greves operárias se erguiam no país, o mundo via a ascensão de regimes totalitários, como as ditaduras na América Latina e em alguns países da Europa, além do advento da guerra no Vietnã, empreendida pelos Estados Unidos. Enquanto isso, a cultura de massa (especialmente na música) proliferava a influência do estilo de vida norte-americano na juventude francesa.


Essa é a tônica que dita Masculino, Feminino, que segundo o próprio Godard é seu primeiro filme diretamente político – embora possa-se argumentar que O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1961) e Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963), já apresentassem elementos nesta direção. De formação anarquista e vindo de um ambiente burguês e de direita, Godard converteu-se gradualmente ao marxismo devido ao contato com o pensamento de intelectuais como Louis Althusser, e passou a engajar na causa. Esse processo também ficou registrado e refletido em seus filmes: “aqui estamos no terreno da crônica dos fatos comuns e dos grandes acontecimentos políticos sob seu aspecto de fatos comuns”, conforme o cineasta afirmou em Introdução a uma verdadeira história do cinema (Martins Fontes, 1989).


Em Masculino, Feminino, o ator Jean-Pierre Léaud interpreta Paul, um jovem que acaba de sair do serviço militar e se apaixona pela cantora pop Madeleine (interpretada por Chantal Goya), com quem vive um romance. O jovem também acaba se envolvendo com as colegas de quarto de Madeleine, de modo que a intriga amorosa e as discussões contemporâneas sobre sexualidade e controle de natalidade acompanham o filme, do início ao fim.


Léaud, que já trabalhara com Truffaut ao interpretar o personagem Antoine Doinel em uma série de filmes a partir de Os Incompreendidos (1959), e participara de outros filmes de Godard como assistente, aqui protagoniza pela primeira vez uma obra do diretor franco-suíço. Seu modo de adolescente desajeitado e melancólico, explorado antes por Truffaut, é levado a outra direção com Godard, dessa vez mais brechtiana, transformando-o em uma espécie de alter-ego do diretor, um escritor atormentado. Michael Marie analisa o filme apontando como Léaud encarna sozinho o mal-estar de uma juventude anterior a 1968. Trata-se de uma juventude ao mesmo passo perdida e revoltada contra a tirania das instituições, em busca da utopia e do amor, sempre incapaz de efetivamente compreender suas contrapartes femininas.


Paul trabalha em um instituto de pesquisas de cunho social e a dinâmica de Masculino, Feminino com os atores se espelha no trabalho do protagonista ao operar por meio da pergunta-resposta, ao modo de um inquérito sociológico sobre a juventude (como o próprio Godard afirmou). É inegável a influência do documentarista e etnógrafo Jean Rouch (1917-2004), que com seus longas etnográficos Crônicas de um Verão (1963) e A Pirâmide Humana (1961) aborda, no modo cinema-verdade, as relações sociais entre gênero, classe e raça na juventude francófona. Mas talvez a influência mais direta no filme de Godard seja de um curta de Rouch chamado As Viúvas de Quinze Anos (1964) – este sim um filme de ficção, lançado pouco antes e que também explora questões geracionais a partir do retrato de duas jovens mulheres.


Assim como em Masculino, Feminino, existe na obra de Rouch uma dimensão científica, uma dinâmica de jogo ensaiada – a presença de perguntas-motrizes, impostas no começo das obras, que serão verificadas ao longo de seu desenrolar: “você é feliz?” (no caso de Crônicas de um Verão); “é possível a amizade entre jovens brancos e negros fora das barreiras raciais?” (em A Pirâmide Humana). Para Rouch, o papel do documentário não seria o de capturar uma ideia de verdade já presente na realidade social, mas utilizar o cinema como mecanismo de fabricar uma realidade própria, com uma verdade imanente a ela. Rouch afirmou sobre A Pirâmide Humana: “ao invés de refletir a realidade, nosso filme criava uma realidade diferente. Não se trata de uma história verdadeira – ela foi escrita enquanto a filmávamos”. Isso dialoga diretamente com os objetivos de Godard, neste momento: 


Sempre tentei fazer com que se tome por verdadeiro não tanto o que se diz, mas o momento... o momento em que se diz; poderia ter sido verdade, poderia ter sido realmente assim. Tento utilizar as coisas mais clássicas, pois são as mais conhecidas, se quiserem (GODARD em Introdução a uma verdadeira história do cinema).


Se pensarmos em Masculino, Feminino, o cineasta parece a todo momento se perguntar sobre o estado em que se encontra a juventude francesa de uma geração posterior à sua, e, assim como Rouch, elabora esquemas e dispositivos que permitem o estudo de possíveis respostas. Porém, ao modo contrário: enquanto Rouch elaborava métodos ficcionalizantes para questionar o mito de objetividade ontológica do documentário, Godard procurava maneiras de inserir a realidade documental dentro da estrutura de um roteiro de ficção, com personagens e acontecimentos definidos – como afirma seu subtítulo: um filme de “quinze fatos precisos”.


Segundo Richard Brody, na biografia Everything Is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard (Holt Paperbacks, 2009), uma preocupação fundamental de Godard era que os aspectos ficcionais de seu filme não eliminassem uma relação aberta com o acaso e as circunstâncias da filmagem – o autor menciona, por exemplo, que nas cenas filmadas em restaurantes, Godard insistia em deixar os telefones ligados para que os funcionários atendessem, caso o local recebesse uma ligação durante a filmagem. É evidente a presença de figuração natural e de ações não planejadas, ocorridas durante a rodagem, e a trilha sonora do filme em som direto incorpora ruídos externos ao campo de filmagem, que normalmente seriam eliminados no filme de ficção.


A estética de Godard não é mais a do Cinemascope, de seus filmes anteriores, mas a de um preto e branco contrastado próprio do documentário moderno, que filma Jean-Pierre Léaud e Chantal Goya no apartamento do mesmo modo com que “rouba” cenas documentais da vida nas ruas parisienses. O filme bem parece um retrato sociológico de Paris nos anos 1960, enfatizando a ubiquidade da violência (a obra já inicia com barulhos de tiro e apresenta diferentes momentos nos quais cenas cotidianas escalam para assassinatos e situações violentas), bem como as novas dinâmicas de relação sociais, especialmente no que diz respeito às relações de gênero. Brody afirma que, ao filmar a juventude, Godard procura também filmar representantes de uma geração, de modo que encontra como definição sociológica a frase que se tornaria célebre, presente em uma das cartelas do filme: "ce film pourrait s'appeler 'Les enfants de Marx et de Coca-Cola' – comprenne qui voudra" (“este filme poderia ser chamado ‘Os filhos de Marx e da Coca-Cola’ – entendam como quiserem”).


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Ao modo de um documentário sociológico, Godard dá importância central à entrevista. Em diversos momentos do filme, seus personagens são “colocados contra a parede” e forçados a responderem perguntas formuladas por seus parceiros de cena. É especialmente marcante um dos primeiros diálogos entre Jean-Pierre Léaud e Chantal Goya, em que ela procura conhecê-lo fazendo indagações profundas como “qual é o centro do mundo, para você?”. A dinâmica da pergunta e as hesitações da resposta deixam incerto se quem responde é o próprio Léaud ou seu personagem Paul, uma negociação intensa entre o imaginário do filme e a realidade sociológica que ele retrata, da qual Léaud faz parte. Deste modo, para o pesquisador Pedro Maciel Guimarães, o filme pode ser visto como um estudo “sobre as fraquezas da profissão de ator” – o crítico continua em seu ensaio:


Diante do diálogo com seu colega de cena, os atores-personagens hesitam, intimidam-se, gaguejam, recusam-se a responder, mostram-se vulneráveis. E Godard se entusiasma, tanto que repete o dispositivo da entrevista do ator em outros filmes. Nada melhor para um entomologista sádico do que ver a fraqueza e o desespero do seu inseto (GUIMARÃES)


A ambiguidade da relação personagem-ator no filme foi expressa, inclusive, pelo próprio Godard: 


De fato, não eram diálogos escritos, eram entrevistas reais com os atores – eu mesmo lhes fazia uma entrevista real –, em parte fictícias, pois, quando eu falava do personagem do filme, ele tinha ordem de responder de uma certa maneira em relação ao personagem (GODARD) 


O cineasta inclusive afirma ter, durante a montagem, mesclado momentos diferentes das entrevistas que realizou individualmente com Léaud e Goya para parecer que o casal estaria travando um diálogo. Em seu texto lançado pela Criterion Collection, Adrian Martin afirma ser este o caso quando Léaud supostamente entrevista uma personagem identificada como “Miss 19”, questionando-a sobre assuntos políticos da atualidade e obtendo respostas que mais afirmam a relação de passividade da garota em relação ao capitalismo e às influências dos Estados Unidos no modo de vida da juventude – perguntas e respostas, segundo alguns, que teriam sido “sopradas” por Godard através de um ponto de escuta. 


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Deste modo, Brody escreve, a visão de Godard é menos a suma sociológica de uma geração que o retrato de um gênero (feminino, evidentemente), que Godard consideraria mais “suscetível” à influência dos novos tempos, aceitando facilmente os valores da cultura de massa americana que Godard tanto questionava. Há uma ambiguidade estabelecida entre a possibilidade de descoberta através do documentário da realidade sociológica e a imposição de juízos por parte do próprio pesquisador/cineasta. Como afirma o personagem de Léaud, no monólogo final:


As pesquisas de opinião logo desviam do seu objetivo, que é a observação do comportamento, e partem em direção a juízos de valor. Descobri que as perguntas que eu fazia aos cidadãos franceses expressavam uma ideologia que não refletia os costumes de hoje, mas sim os do passado.


Valendo-se do modo do filme-enquete, Godard questionou a própria aptidão do cinema enquanto ferramenta de conhecimento do mundo, reconhecendo na narrativa seus próprios impasses e dificuldades enquanto cineasta, tematizando o dispositivo cinematográfico como um mecanismo capaz de tecer a realidade em toda sua complexidade. Em outro momento, Léaud e Goya vão ao cinema, e o jovem afirma:


Mas Madeleine e eu tínhamos nos decepcionado. As imagens eram datadas e agitadas. Marilyn Monroe tinha envelhecido. Não era o filme dos nossos sonhos. Não era o filme total que tínhamos dentro de nós. Aquele filme que queríamos ter feito ou, mais secretamente, sem dúvida, o filme que queríamos viver.


Evidentemente, tem-se aqui uma referência ao “mito do cinema total”, de André Bazin, mentor dos jovens críticos da revista Cahiers du Cinéma – segundo o qual o cinema seria acompanhado, historicamente, do fantasma do realismo integral, “de uma recriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipoteca da liberdade de interpretação do artista, e nem a irreversibilidade do tempo”. Cineasta moderno, Godard tinha consciência plena desse mito pelo qual é assombrado. 


Este estado de incerteza marca Masculino, Feminino, que dialoga com a própria situação de Godard enquanto realizava o filme: “escolho os jovens porque eu não sei mais onde estou do ponto de vista do cinema. Eu estou na procura do cinema. Eu tenho a impressão de tê-lo perdido”, Godard afirmou, segundo a biografia de Brody. Como é dito no filme, “não existe francesa média”, e Godard também há de reconhecer suas limitações e sua constante procura por novas formas capazes de refletir sobre as mudanças que se observam no mundo, transformando a realidade de sua obra em uma reflexão do tormento e das incertezas da História.


Cena do filme Masculino, Feminino, de Godard, no qual o personagem Paul (Jean-Pierre Léaud) é entrevistado
Cena do filme Masculino, Feminino, de Godard, no qual o personagem Paul (Jean-Pierre Léaud) é entrevistado

Combater ideias vagas com imagens precisas

Se, em Masculino, Feminino, segundo Martin, ainda é possível enxergar algum grau de adensamento psicológico em seus personagens, de modo que o filme pode ser entendido na chave de um melodrama sobre relacionamentos, A Chinesa transforma a estrutura de esquetes presente no filme de 1966 em um modo ainda mais frontal de análise conjuntural, compreendendo cada personagem como um tipo social esvaziado de subjetividade. Desta forma, em A Chinesa a dinâmica do grupo, unificado pelo dogmatismo da militância política, se torna muito mais presente. Vemos uma radicalização do método empreendido no filme anterior, no que diz respeito a estudar a realidade social a partir de uma fragmentação cada vez maior entre discursos, formas e pontos de vista, observando-se a aproximação de Godard em relação ao filme-ensaio – modo de enunciação que ele já havia trabalhado diretamente em Duas ou três coisas que sei sobre ela (Deux ou trois choses que je sais d'elle, 1967). De acordo com Mateus Araújo no texto A mise en scène do pensamento em Godard:


Ele [Godard] instaura uma dialética sui generis entre a desconstrução da representação do mundo promovida pelo cinema narrativo clássico (com seu sistema de gêneros, suas convenções e seus horizontes de expectativa) e a construção de uma nova modalidade de representação, em que a narração vai sendo cada vez mais atravessada pelo pensamento (MATEUS ARAÚJO)


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A Chinesa, assim como Masculino, Feminino, é um filme que responde à realidade política da França no momento – em particular, à influência do maoísmo nos jovens grupos comunistas. Tendo a Revolução Cultural iniciado em 1966 na China, as ideias do Exército Vermelho de Mao Tsé-Tung rapidamente chegaram à França e foram assimiladas por jovens intelectuais como uma expressão do marxismo em sua forma mais direta. Não demorou para que a ideologia maoísta se disseminasse na esquerda francesa e batesse de frente com grupos do Partido Comunista Francês que continuariam a apoiar as práticas da União Soviética. Este cenário contribuiu, posteriormente, para a radicalização que levou às revoltas estudantis de maio de 1968 na França, de modo que A Chinesa é constantemente referido como um filme de tom profético.


Segundo Antoine de Baecque, o brilhantismo de Godard não estaria na antecipação dos eventos de 1968, mas antes no reconhecimento de uma crise da esquerda e de suas ilusões utópicas, um filme assombrado por intervenções políticas ineficazes e mortes inúteis, como o suicídio do personagem Kirilov e sequência de erros no assassinato de um diplomata russo. A narrativa, se podemos chamar assim, aborda a vida de um grupo de cinco jovens maoístas (os “chineses”) que, no apartamento dos pais de um deles, se engajam em intensas discussões sobre a práxis e teoria da militância comunista na França pré-68. Godard mantém Jean-Pierre Léaud como protagonista, substituindo Chantal Goya pela sua então companheira, Anne Wiazemsky (interpretando Veronique), que juntos representam uma juventude intelectualizada e engajada politicamente nas universidades.


Brody afirma que, em A Chinesa, Godard adotou uma maneira ainda mais radical de filmagem: ele havia preparado cenas para filmar, mas com ideias ainda vagas de como estas seriam organizadas na estrutura do filme. Isto se nota de maneira evidente pela cartela inicial, onde lê-se: “un film en train de se faire” (“um filme no processo de se fazer”). Mais que em qualquer de suas obras anteriores, aqui rompe-se totalmente com a ideia de transparência do cinema clássico: não demora dez minutos até que apareça, em um contraplano do personagem de Jean-Pierre Léaud, o cinematógrafo Raoul Coutard com sua câmera. Dessa forma, reconhece-se dentro da própria narrativa que aquilo se trata de um filme, pensado em meio à sua rodagem.


Cena do filme A Chinesa (1967), na qual o personagem é entrevistado enquanto lê O Livro Vermelho de Mao
Cena do filme A Chinesa (1967), na qual o personagem é entrevistado enquanto lê O Livro Vermelho de Mao

A Chinesa foi concebido ao modo de Masculino, Feminino: como um documentário etnográfico – neste caso, sobre “filhos e filhas de famílias” que utilizavam suas férias para “brincar de marxismo-leninismo”. Não à toa, o filme foi muito mal recebido pelos militantes políticos da época, recebendo ataques de todos os espectros. O cineasta recordou:


Na época, [o filme] foi considerado ridículo: a política não é isso, não são esses personagens, esses estudantes; esses estudantes são burgueses, para que servem essas frases, é ridículo... e por aí afora. Para mim, eu estava fazendo... digamos que mais etnologia, um documentário: estudava um certo tipo de pessoas, que não conhecia muito bem. Eram pequenos grupos em Paris que se autodenominavam marxistas-lenininistas (GODARD)


A lógica dos discursos presentes no filme é a mesma da propaganda política: a da repetição. Repetição de slogans, de trechos do Livro Vermelho de Mao, de músicas e imagens que aparecem de maneira recorrente, em uma montagem irônica e frenética, que comenta sobre as situações encenadas por meio da da associação de imagens. Há, também, a presença de entrevistas, aqui muito menos espontâneas que as de Masculino, Feminino – os personagens estão sempre enquadrados de forma centralizada em paredes com cores e decorações gritantes, como em fotos de identidade ou de identificação criminal; e essas entrevistas são fragmentadas ao longo do filme, repetidas ao modo de Godard, entrecortadas por letreiros e intervenções musicais (como pela presença de uma música pop, cuja resposta para todos os problemas é a repetição do nome “Mao Mao”).


Para o crítico Serge Daney, o filme marcou um novo período na concepção de cinema político de Godard, no qual a lógica da pedagogia entrou em cena: o cinema como escola, para o qual a sequência é uma recitação de frases tomadas “ao pé da letra” e o cineasta é o “monitor” que irá afastar os discursos da lógica obscurantista do ilusionismo cinematográfico, encaminhar seus personagens a um “real-a-ser-transformado”. “Por isso”, escreve Daney, “a pedagogia godardiana consiste em não cessar de retomar às imagens e aos sons, nomeá-las, ultrapassá-las, comentá-las, coloca-las em perspectiva, criticá-las como incontáveis enigmas insondáveis; não perde-las de vista, ficar de olho nelas, guarda-las”.


Essa lógica tem, como consequência, a multiplicação dos discursos presentes no filme, no lugar de um discurso único do cineasta que produziria uma tese sobre aqueles jovens. Assim como para o dramaturgo e diretor teatral alemão Bertolt Brecht, o que interessa para Godard é entender como a política opera na mente dos outros, tornando todas as questões que poderiam parecer fáceis em enigmas complexos, sem solução. Para o pesquisador Vinicius Dantas, a estética de Godard se apropria de uma série de referências externas (a propaganda política, elementos da cultura de massa, como histórias em quadrinhos) para operar de forma oposta ao dogmatismo da política partidária. Tudo é feito para chamar atenção do espectador: sua mise-en-scène traduz “de modo burlesco (uma constante godardiana) a seriedade dos temas contemporâneos: arte, revolução, comportamento”.


Anne Wiazemsky e Jean-Pierre Léaud em A Chinesa (1967)
Anne Wiazemsky e Jean-Pierre Léaud em A Chinesa (1967)

Podemos relacionar a dinâmica “pop” de A Chinesa, deste modo, com o que o teórico Tom Gunning identifica como “cinema de atrações”, que prevaleceu na indústria cinematográfica de seu início até 1906 – termo tomado dos escritos do jovem cineasta russo Sergei Eisenstein, que procurava um modelo de análise para o teatro que fugia da representação realista. Para Gunning, neste período inicial, a função principal do cinema seria não a de constituir uma narrativa, ao modo de D. W. Griffith, mas a de “fazer imagens ser vistas”, um ato de mostrar e exibir. 


Deste modo, ao contrário do aspecto voyeurista que o teórico e semiólogo Christian Metz identifica no cinema narrativo, o “cinema de atrações” é exibicionista: propõe ao espectador “vistas” que querem chamar sua atenção, agarrar sua curiosidade visual e oferecer prazer a partir do espetáculo. Este cinema estabelece um tipo diferente de relação com o espectador, em que, por exemplo, é comum que os atores encarem a câmera, rompendo com as ilusões de um mundo ficcional, encerrado em si próprio. Para Thomas Elsaesser, esta tradição de cinema foi retomada a partir dos anos 1960 em um ataque ao ilusionismo do cinema clássico, de modo que seu retorno colocou um “ponto de interrogação” aos modelos teleológicos da história do cinema.


Em dado momento do filme, Guillaume (personagem de Jean-Pierre Léaud) inicia um colóquio tratando de um antigo mito na história do cinema, que identifica os irmãos Lumière enquanto criadores de uma tradição do documentário e Georges Méliès como o pai do cinema de ficção. Guillaume inverte esta concepção, ao compreender que Méliès também filmava atualidades, como a viagem do homem à Lua, evento que pouco tempo após o lançamento de A Chinesa se tornaria realidade. Deste modo, ao usar a ficção para comentar a realidade, Guillaume considera Méliès como um cineasta brechtiano – o que vai de acordo com o pensamento de Tom Gunning de que os filmes de Lumière e Méliès não representam a diferença entre cinema não-narrativo e narrativo, mas antes estão unidos na sua maneira de apresentar às audiências uma série de vistas que fascinam por seu auto-reconhecido poder de ilusão.


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A Chinesa não deixa de ser uma obra brechtiana – Brecht, aliás, o único nome que sobra quando Léaud apaga uma longa lista de artistas e pensadores de uma lousa a giz. Afinal, trata-se de um filme que fala da atualidade a partir de seus dispositivos ficcionais, que usa a forma da atração como reflexão sobre seus discursos, não escondendo as contradições da lógica revolucionária dentro do grupo – como o papel subalterno reservado às mulheres, as dissidências internas e os conflitos ideológicos com uma política mais pragmática que se observa na realidade extra-fílmica, vistos pela presença de sujeitos reais como o militante Omar Diop e Francis Jeanson, professor da Universidade de Nanterre. Para Baecque, A Chinesa é mais um filme-sintoma que um filme-enquete. Godard revelou o romantismo presente nas ilusões da juventude militante francesa, transformando os discursos políticos de sua época em uma poética que compreende as várias nuances presentes na realidade social.


Um díptico da juventude moderna

As distâncias entre Masculino, Feminino e A Chinesa são as mesmas do tempo histórico compreendido entre as duas obras, no qual se observa também um processo de amadurecimento do próprio cinema político de Godard, que jamais cessou de dialogar com a realidade documental. Em ambos, o ponto de vista fragmentário que se recusa a adotar um único discurso sobre o mundo, resgatando na história do cinema elementos estéticos para responder a uma realidade que se transforma progressivamente. 


Há um certo pessimismo em relação à juventude e às influências culturais dos novos tempos, que se vê presente em ambas as obras, e aponta para um processo de combate radical que Godard empreende em seus filmes. Como afirma em seu curta-metragem Je vous salue, Sarajevo (1993), “a cultura é a regra e a arte é a exceção” – e há de se reconhecer que, seja em seus filmes dos anos 1960 ou em sua obra posterior, Godard manteve-se sempre alerta aos impasses do mundo e encontrou no próprio cinema uma arma crítica.


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REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Mateus. A mise en scène do pensamento em Godard. La Furia Umana (n. 33, 2018).


BAECQUE, Antoine de. Godard – biographie. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2010.


BAZIN, André. O que é cinema? São Paulo: Ubu Editora, 2018.


BRENEZ, Nicole et al. Jean-Luc Godard - Documents. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2006.


BRODY, Richard. Everything Is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard. Nova Iorque: Holt Paperbacks, 2009.


DANEY, Serge. A rampa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.


DANTAS, Vinicius. La chinoise (A chinesa). In: ARAÚJO, Mateus; PUPPO, Eugênio (orgs.) Godard inteiro ou o mundo em pedaços. São Paulo: CCBB, 2015.


ELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: SESC, 2018.


GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1989.


GUIMARÃES, Pedro Maciel. Masculin Feminin (Masculino, Feminino). In: ARAÚJO, Mateus; PUPPO, Eugênio (orgs.) Godard inteiro ou o mundo em pedaços. São Paulo: CCBB, 2015.


GUNNING, Tom. The Cinema of Attractions. Wide Angle (8. 3-4, 1986).


MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Campinas: Editora Papirus, 2011.


MARTIN, Adrian. Masculin Féminin – The Young Man for All Times. Criterion Collection, 2005.

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