Casa de Bonecas
- Luca Scupino
- 3 de mai.
- 5 min de leitura
Atualizado: 7 de mai.
Luca Scupino analisa a maneira como Fassbinder trabalha o espaço no filme As Lágrimas Amargas de Petra von Kant
Ela acorda com Marlene abrindo as cortinas, deixando entrar a luz. Ela lhe pede que prepare um suco. Ela pega o telefone, liga para a mãe, acende um cigarro. Depois dita uma carta ao lendário cineasta Joseph L. Mankiewicz, que Marlene redige. Petra von Kant ainda não saiu da cama, lugar que será testemunha da maior parte das cenas do filme de Fassbinder. O longa-metragem As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1972) é inteiramente circunscrito ao ambiente doméstico, este dominado por uma reprodução da pintura Midas e Baco (do pintor do barroco francês Nicolas Poussin, 1594-1665) e cercado por desenhos e manequins ligados ao trabalho de Petra (interpretada por Margit Carstensen) e Marlene (Irm Hermann).

Há pouquíssimas personagens, todas femininas, a maioria do mesmo núcleo familiar. Os homens parecem existir apenas como lembrança, como os dois ex-maridos de Petra: um falecido em acidente de carro e o outro de quem recentemente se separou. O sofrimento toma conta até que ela se depara com a jovem modelo Karin (Hannah Schygulla), por quem se apaixona perdidamente. Junto com a paixão voraz, nascem o ciúme, o desprezo e a dependência. Como entender esse obscuro objeto do desejo: onde ele termina e começa a vontade de possuir o outro? Que realidade escondem as lágrimas derramadas entre quatro paredes?
São sobre essas questões que Petra von Kant se desenvolve, sempre tendo como palco a mesma casa, que mais parece um cenário inacabado: com indícios de uma casa de verdade, mas com algo faltando. Não conseguimos identificar exatamente o que é, mas parece que Fassbinder não tem vergonha do seu cenário de estúdio, antes chama atenção para a beleza vulgar de sua superficialidade. Escrevo “palco” porque o fato de se tratar de uma adaptação teatral é algo evidente desde sua gênese. Essencialmente, Petra von Kant busca fazer do cinema um dispositivo para exploração do espaço cênico como arena onde circulam ações e sentimentos, transformando a tela em representação da psicologia corrompida de suas personagens. O chamber drama (kammerspiel) clássico é apenas uma desculpa para testar as distâncias que podem ser percorridas pela câmera cinematográfica em sua habilidade de desnudar a alma da atriz. Nesse sentido, apesar de sua aparente simplicidade, o filme é exemplar como demonstração da habilidade de Fassbinder de levar sua arte ao absoluto limite. Tão alta quanto a escalada de Petra é a sua queda vertiginosa, e o mal-estar sempre dá a tônica.
Há quem acharia difícil um filme se sustentar com tão poucos elementos ao longo de suas duas horas. Mas o que impressiona sempre é sua habilidade de se renovar: os movimentos de câmera são expansivos e agressivos, sempre explorando uma parede ou um ângulo desconhecido; as atrizes se movimentam a todo momento em diferentes direções e posições relativas; a montagem não tem medo de chocar em seus raccords precisos e suas elipses profundas entre uma cena e outra (são apenas alguns segundos entre o início de um flerte e a exibição de um casal feito, por exemplo). Fassbinder sempre encontra maneiras de virar o jogo, seja valendo-se de sua encenação sofisticada, com a herança teatral evidente, ou de seu uso lascivo da câmera, verdadeiramente libidinoso.
É nesse sentido que o cinema de Fassbinder se assemelha a uma lógica da casa de bonecas: este espaço representativo onde ele pode à vontade posicionar seus manequins; mudar seus móveis de lugar; olhar de cima, de baixo ou de qualquer outro ângulo possível; trocar vestidos e perucas; recuando no final para observar como ficou sua brincadeira. E há, evidentemente, uma dimensão lúdica em seu cinema, que parece brincar também com a iconografia de uma infância do pós-guerra (homens sempre distantes, o cinema no auge do star system com suas belas e tristes atrizes de melodrama), aqui com uma sensibilidade queer e moderna, consciente da decadência do classicismo e nostálgico pela beleza de sua superfície. A pintura de Poussin na parede é um lembrete de que o que se põe em cena aqui são os mitos antigos de personagens que estão sempre representando, cercadas de manequins, perucas, vestidos e espelhos. Mas as bonecas resistem, em um jogo de disputas entre a vontade de um criador e o desespero da criação. Como Marlene que, com seu olhar ambíguo a Petra, parece estar sempre prestes a botar a casa para baixo.

Dizia o cineasta Éric Rohmer (1920-2010): no cinema, a prática de criação é de ordem mais demiúrgica que divina, pois os elementos com que o cineasta trabalha já são dados por antecedência. E a maneira como Fassbinder trabalha o espaço em seu filme é perfeitamente a que Rohmer propõe ao analisar o cinema de F.W. Murnau (1888-1931): uma união harmônica entre o espaço pictórico, o arquitetônico e o fílmico, que constituem a tríade da exploração da realidade como aptidão última do cinema. Ao mesmo passo em que há um trabalho primoroso de construção entre cenografia e cinematografia; entre estas e as atrizes surge uma mise en scène em que sempre se montam e desmontam as dinâmicas de poder entre as mulheres, de modo que a forma como as personagens e a câmera se movimentam diz mais respeito à realidade emocional do texto que a uma motivação cênica, propriamente dita. Fassbinder transforma, então, as paredes e janelas da casa em dispositivos ópticos, através dos quais se entrevê não uma realidade evidente, mas a realidade torturada da alma destas mulheres.
A atualidade do texto de Fassbinder se faz evidente nas inúmeras obras inspiradas em Petra von Kant, se mostrando um modelo a partir do qual são permitidas diferentes variações. Além da peça Petra, realizada pela Cia.BR116 e com Bete Coelho no papel principal, tivemos o lançamento recente de Peter von Kant (2022), de François Ozon. Neste, a referência é mais que reconhecida, é escancarada: o filme começa com um recorte de uma imagem de Fassbinder focalizando seu olhar, e termina com os olhos do protagonista, interpretado por Denis Méchonet, uma espécie de mistura entre Petra von Kant e o próprio diretor alemão — as referências biográficas são evidentes: da própria aparência ao vício em cocaína, o amor platônico por suas atrizes e o romance com um homem africano mais jovem, que lembra o que Fassbinder teve com El Hedi ben Salem (1935-1977), ator de Ali: o medo consome a alma (1974).
Se o filme de Ozon se mostra derivativo, partilhando além de seus enquadramentos a atriz Hanna Schygulla (Karin no original e, aqui, a mãe do protagonista), ele trabalha de modo instigante com a ideia de fascinação pelo próprio cinema, nos levando sempre de volta ao original de Fassbinder e forçando a admirar seu legado. Aqui, já em um universo masculino e absolutamente destrutivo (afinal, como afirmam em dado momento, “todo homem mata aquilo que ama”). O momento chave é quando Peter escuta o depoimento de Amir (Khalil Ben Gharbia) sobre a morte violenta de seus pais e, em dado instante, pega a câmera na mão e aponta para ele como se estivessem fazendo sexo, em uma tentativa de penetrar a alma de seu amante com a lente. Mais que no filme de Fassbinder, a mediação aqui é o próprio cinema, ao qual não cessamos de voltar: o amor é, sempre, uma imagem em combustão.

NOTA
Este texto faz parte de um especial sobre As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Os outros textos incluem: As Personificações de Petra von Kant, de Pedro A. Duarte e Entrelinhas, de Harllan Tavares.
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