José Celso Martinez Corrêa tinha uma maneira de falar e existir que refletia seus anos de luta
No dia 6 de julho, o ator, diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa morreu em São Paulo aos 86 anos de idade após ter 53% do corpo queimado durante um incêndio que ocorreu em seu apartamento na zona central da capital paulista. Quase dois meses depois, o evento ainda é uma passagem tão trágica quanto apoteótica. Zé Celso viveu, existiu e resistiu com a história do Teatro Oficina e (por que não?) do teatro brasileiro. Se ele viveu teatralmente, sua despedida da carne não poderia ser diferente, ou menos ritualística, do que ele fizera em vida.
A notícia do acidente veio como um fato seco e trágico anunciado pelos jornais. Enquanto isso, a própria companhia fazia anúncios públicos que emulavam ritos indígenas de cura e frases gregas acompanhadas da palavra “Atotô” - saudação de Obaluaê, orixá da cura, da vida e da passagem para o outro mundo nos candomblés que vieram d’África. A peregrinação com Zé internado foi acompanhada de ritos e falas que refletiam aquilo que ele próprio sempre semeou em sua vida e em sua forma de fazer teatro: a teatralidade e o ritual andando lado a lado, e se misturando, da mesma maneira como foi sua vida particular e nos palcos.
Com a sua morte, e assistindo a toda aquela encenação que o envolveu na última aparição de corpo presente, me lembrei dos poucos encontros que tive com ele. Desde a maneira como sua figura se apresentou para mim pela primeira vez no Teatro Oficina durante uma sessão de Roda Viva (1968), em 2019, na terceira montagem do texto de Chico Buarque realizada pela companhia, quando ele, ao final da peça, saía com o público para o lado de fora do teatro e fazia alguns discursos em nome da arte e com cunho político-social e, depois disso, vinha se apoiando de pessoa em pessoa para dentro do Oficina - foi quando uma das mãos que deu apoio para o velho diretor nesse dia foi a minha. Ao final das peças que dirigia, nas quais sempre era possível ver sua presença na plateia acompanhando seus atores no palco. E também da única vez que falei com Zé Celso, em uma entrevista ainda em 2021, durante o período de pandemia que vivíamos.
Quando a notícia chegou, era claro que me lembraria da entrevista e procuraria alguma forma de falar sobre aquilo. Passei o ano de 2022 mergulhado naquele teatro e na forma de encenar dele, por conta do meu TCC em jornalismo. Naquele ano, a existência da entrevista com ele sempre me veio à lembrança, mas até então, preferi mantê-la em sigilo - saberia que uma hora ou outra ela própria viria para me alertar que estava na hora de publicar algo sobre esse encontro, mesmo depois de tanto tempo e o projeto inicial da entrevista ter declinado.
Na metade de 2021, comecei um projeto, junto de um amigo da faculdade, para fazer um documentário sobre a situação do Teatro Oficina durante a pandemia, abordando temas como a forma com que eles estavam lidando com o fechamento do teatro, a impossibilidade de ter público, a falta da bilheteria e a situação do terreno que pertencia ao Grupo Silvio Santos. Com o desdobrar da ideia do roteiro, o projeto acabou se tornando sobre a história do Oficina, desde 1958 com a criação dele até os dias atuais, passando pela ditadura militar (1964-1985) e exílio. Mesmo sabendo da dificuldade de fazer algo assim, fui em busca de entrevistas como se de fato aquilo fosse ser um projeto bem-sucedido. Enquanto marcava e conseguia contatos, mirava um nome fundamental: José Celso Martinez Corrêa. E mesmo ouvindo que seria dificílimo conseguir, fui atrás. Consegui um horário por videoconferência com ele.
No dia em que havíamos marcado, ele entrou na conferência com a ajuda de Marcelo Drummond e no primeiro momento só via o Marcelo, mas escutava sua voz rouca do lado. Quando começou a entrevista, aquele velho diretor de teatro brincava, ria e lembrava de suas memórias, olhando para dois jovens estudantes de jornalismo interessados em contar sua história, perguntou: “e qual é o interesse de vocês pelo teatro?”.
Durante a entrevista, Zé era por completo a antropofagia, era como se a todo momento ele “vomitasse” aquele turbilhão de ideias que tinha na cabeça, misturado com todas as suas referências teóricas e experiências de vida. Ele ia de Antonin Artaud a maconha com a maior facilidade, falava sobre sexo, drogas e amor com a mesma seriedade com que falava de teatro e sem tabus sobre aquilo que ele mesmo chamava de “aberturas à percepção” ao contar sobre seu primeiro contato com as drogas no exílio em Portugal e Moçambique e como isso o auxiliou com novas linguagens teatrais. Ao mesmo tempo que nos perguntava se já tínhamos feito teatro.
“O teatro é como o jornal, como a internet, porque a presença traz o corpo para o aqui e agora, isso nenhuma outra arte tem”, disse ele ao falar sobre a presença teatral e da troca entre público e atores e considerava a arte “uma sacassão antimessiânica em que você não espera as coisas acontecerem”, emendando no assunto da antropofagia em O Rei da Vela (1937) , de Oswald de Andrade, que ele próprio o considerava um mentor sem ter conhecido o autor modernista.
Ao falar sobre o Teatro Oficina, e toda a luta com o Grupo Silvio Santos que envolveu o espaço, Zé tinha consciência que apesar de ter tido uma vida movimentada, havia se fixado ali, naquele terreno do Bixiga e tinha consciência de que o contato com diversas pessoas havia formado seu ensinamento: “Eu viajei muito, mas ali ficou o axé, são 62 anos e eu fui me renovando conforme chegava às novas gerações. A minha geração, do Renato Borghi, Célia Helena, Fauzi Arap, foi maravilhosa, mas depois a história anda e outras pessoas vieram”.
À época, Zé acabara de traduzir o texto de Esperando Godot (1953), de Samuel Beckett, que em 2022 entraria em cartaz no Sesc Pompéia com Marcelo Drummond e Alexandre Borges no elenco. Mesmo depois de décadas de luta, ainda falava do projeto Parque Rio Bixiga. José Celso Martinez Corrêa é mais uma das figuras que revolucionou o teatro brasileiro e está estampado em fotografias de livros, jornais e sites; seu legado segue de pé em paredes de concreto, na Rua Jaceguai, 520.
No fim da entrevista, quando já tinha desligado a gravação, num repente inesperado, como ele sempre pegava quem conversasse de surpresa, começou a cantar para falar sobre o teatro, essa arte que habitou aquele corpo nos 65 anos de Oficina e 86 de vida. A canção: Quatro Séculos de Paixão, samba-enredo da Unidos de Vila Isabel de 1975, que contava a história do teatro brasileiro.
Trecho da entrevista de Zé Celso para Giordano Pienegonda (2022)
Que linda a entrevista e o texto sobre esse encontro. Um tesouro para guardar no coração