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Kiko e Alejandra e Virgínia

Fundadores da Velha Companhia relembram as histórias de sua trilogia As Águas


A Velha Companhia está lançando nesta terça-feira, 16, um livro que reúne os textos das peças que compõem sua trilogia de espetáculos, nomeada As Águas. Escritas e dirigidas por Kiko Marques, as peças são sagas familiares que se valem dos corpos de água enquanto uma metáfora para expressar aspectos das vidas de seus personagens.


Já considerada um clássico do teatro paulistano, Cais ou Da Indiferença das Embarcações narra a história de três gerações de uma família moradora da Ilha Grande, entre as décadas de 1930 e 1990, sob o ponto de vista de um velho barco. Em Sínthia, acompanhamos as trajetórias de Maria Aparecida e de seu filho caçula, Vicente (esperado por ela como uma menina), desde seu nascimento em 1968, durante os chamados anos de chumbo da ditadura militar brasileira, até um reencontro no Natal de 2013. Por fim, Casa Submersa narra o encontro da bióloga marinha Maíra com uma figura marcante da história política do país, um evento que a leva em uma busca por sua própria origem.


A publicação da trilogia pela Editora Javali, faz parte de um fomento recebido pela companhia para um projeto denominado “Empatia”. Além da publicação do livro, o projeto prevê a pesquisa para uma futura adaptação de Crime e Castigo (1866), de Fiódor Dostoiévski. Uma temporada comemorativa de Cais… foi encenada entre 07 e 23 de fevereiro no Teatro da USP – Butantã como parte do projeto. No ano passado, também foram realizadas leituras dramáticas das peças da trilogia nas quais outras companhias interpretaram os textos: em 03 de novembro, o Grupo Pandora de Teatro leu Casa Submersa; em 14 de novembro, a companhia Mungunzá leu Sínthia; e, por fim, em 07 de dezembro, a Companhia de Teatro Heliópolis leu Cais.


A Revista Galérica realizou uma entrevista exclusiva com os fundadores da companhia Alejandra Sampaio, Kiko Marques e Virgínia Buckowski para entender o que une cada peça em uma tríade e recordar a trajetória de cada um dos espetáculos ao longo dos 13 anos desde a estreia de Cais… e 21 anos de existência da companhia.


Virgínia Buckowski, Alejandra Sampaio e Kiko Marques em frente ao mural da Zona Franca. Foto: Felipe Faim / Velha Companhia
Virgínia Buckowski, Alejandra Sampaio e Kiko Marques em frente ao mural da Zona Franca. Foto: Felipe Faim / Velha Companhia

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GALÉRICA: Eu queria entender a trilogia A Águas enquanto uma obra única. Então minha primeira pergunta é: o que levou vocês a considerarem essas três peças específicas como uma trilogia?


KIKO MARQUES: A ideia da trilogia surgiu lá no início quando a ideia de Cais… começou a surgir. Seria uma trilogia que falaria da influência das águas e, enfim, teria uma trajetória que acabou se cumprindo.

Em Cais… são as águas que levam, trazem as marés e as ilhas. E Sínthia se estabelece como a água parada de uma lagoa, que é um personagem central da peça e também fala da família, da água estagnada, daquela água parada e pútrida de uma família de classe média carioca e de alguma forma ligada ao movimento de repressão da ditadura militar. E [a trilogia] termina com um um mergulho nas profundezas de uma água turva e podre da política brasileira. Ela tem essa trajetória dessas três águas.

E ela foi se estabelecendo, Pedro, um pouco ao longo da história da companhia. A princípio, havia essa ideia de fazer a trilogia, mas quando Cais… ficou pronto, quando a gente fez Cais… nos pareceu que a trilogia não se cumpriria, que Cais… dava conta da questão inteira. Mas durante o processo de criação do texto de Sínthia, é que a gente entendeu que era uma continuidade.

Uma continuidade no sentido histórico: tem o período histórico que a peça aborda. Em Cais…, a gente pega de 1930 até 1990. Sínthia pega o período da ditadura militar – os 45 anos que vão dar de 1968 até 2013 no ano da Comissão da Verdade. E Casa Submersa lida com a questão contemporânea, com o nosso estado contemporâneo político social e ao mesmo tempo pessoal.


As três peças partem dessas relações entre personagens, as relações pessoais e íntimas, para depois irem para o contexto macro do Brasil, o momento sociopolítico. Como é lidar com esse movimento de sanfona nas peças?


KIKO: Na verdade, a gente sempre parte do cotidiano, do pessoal, do particular. E o particular e o público estão tão intrincados, estão sempre intrincados.


ALEJANDRA SAMPAIO: O que a gente vivencia nos espetáculos, Pedro, é mais ou menos assim: estamos vendo a vida de uma pequena empresa onde tem os funcionários que moram no M’Boi Mirim e vão chegar para trabalhar numa região como Moema ou Jardins. Na história dessas pessoas não vai dar para separar o tempo de transporte, a vida que eles levam no ônibus, se tem greve no meio…

Por exemplo, a greve de Sínthia, ela está totalmente enraizada na vida das pessoas porque, mesmo que não seja pano de frente, é a rede de vida, é a via que você está trafegando, que você vai caminhar. São os afluentes dessas águas. Você vai ter que passar pela manifestação, vai ter uma neta que vai estar na manifestação, vai ter uma avó que não vai poder descer porque a rua tá parada.

Então é de uma maneira mais sutil. Ela é menos... a política está revestida de vida cotidiana. É um disfarce. Não é um disfarce planejado que o Kiko faz, mas é poético é a poética dele. A política ela tá em tudo, em tudo, mas é de uma maneira como está na vida, como tá na sua, na minha…


Cais… e Sínthia se passam no século 20. Retratam O Estado Novo e depois a Ditadura Militar. Ambas foram encenadas na década de 2010. Como esses momentos políticos dialogavam? Como era fazer essas peças naquela época?


VIRGÍNIA BUCKOWSKI: A gente também estava falando disso sobre Cais.. esses dias em um bate-papo com o Felipe [Cordeiro], quem está fazendo a assessoria de imprensa do livro.

Eu senti, em cena mesmo, a diferença de fazer Cais.. antes da gente ter a polarização e depois. Naquele momento não se falava tanto de comunismo, direita e esquerda, uma coisa tão fragmentada, sabe? Naquele momento parecia que a gente estava um pouco adormecido, digamos. Enfim, pós-ditadura e tudo mais. E agora surtiu um efeito cômico tudo que era mencionado, tipo “Meu pai é comunista” e a plateia ria imediatamente. Sabe, eu não precisava fazer esforço nenhum, não precisava pensar matemática cômica, nada. O texto por si, a plateia teve essa relação de entender mais a fundo essas questões colocadas nas obras nesse momento. Vocês sentiram isso também, né?


KIKO: As peças tratam do ser humano. Então, de alguma forma, existe uma atemporalidade nessa relação com as obras.

E tem uma coisa também muito importante que é a entrada na obra, a forma de entrar na obra. A questão da contemporaneidade do mundo rápido, fragmentado, fugaz; enquanto as três obras trabalham com um tipo de relação bastante diferente desse modo contemporâneo, né? Então é uma vivência, é uma entrada, quase insuspeitada para quem chega perto disso. Porque é um mergulho no paradoxo humano, nas questões humanas que abordam política, que abordam fé, religião…

O teatro tem esse poder de tocar em algo que a política não consegue enxergar, que a aula não consegue chegar. O teatro tem uma capacidade de comunicação com público, com o leitor no caso [da publicação] das peças que abarca isso tudo, mas transcende de uma forma muito particular.

Acho que as três obras têm essa vocação de trazer o público para algo sobre o ser humano, para um olhar sobre o ser humano e sua aventura nesse planeta.


ALEJANDRA: E tem outra coisa que acontece também, Pedro: a configuração dos espetáculos. Se você observar Cais…, Sinthia e Casa Submersa, você vê que nós pensamos o público em um lugar diferenciado e ativo. Você não vai ter uma plateia separada do lado de lá e a gente do lado de cá. Existe uma relação com a plateia – seja espelhada, seja circular. Nos três espetáculos você vai observar isso: tem proximidade.

Quando você fala do público de 2000 dessa década de diferença, desses 5 anos, tem outro divisor de águas também. Além do divisor político, tem o divisor da peste [*ela se refere à pandemia de Covid-19 e o período de quarentena]. A gente chegou a achar que o teatro tinha morrido. Você entende a busca da plateia depois disso. Voltando com Cais… agora, vimos o quanto o encontro, a necessidade da presença e da relação é fundamental.

Então, você junta espetáculos com um número gigantesco de pessoas envolvidas; você junta a relação do espaço, que é uma relação em que a pessoa está dentro; e você junta essa necessidade, que vem tanto da polarização política quanto também do pós-peste, das pessoas estarem em encontro; que isso repercute nas salas de teatro.


Aproveitando que o Kiko falou desse mundo fragmentário: as três peças têm uma duração de quase 3 horas. Eu queria saber o que leva vocês a apostarem nessa duração que é um pouco mais exigente, que pede para o público ficar um tempo com vocês? E como é experimentar isso nos dias atuais depois que a internet deixou nossa atenção cada vez mais fraca?


VIRGÍNIA: E algumas instituições também já cobram, perguntam se não tem como cortar “porque nosso público já não aguenta, em uma hora e meia as pessoas já saem das peças". Mas eu acho que a gente banca isso, porque a gente acredita tanto no potencial do texto, quanto das atuações dos artistas que a gente convoca

Eu sinto… assim, por exemplo: Cais… Claro que todo mundo é substituível, qualquer um de nós pode ser substituído. Mas existe uma força naquelas pessoas que fizeram esses papéis ao longo dos anos, que continuam em seus papéis, que é tipo: é o Valcimar do Marcelo Laham. Então também tem essa força da atuação, que eu sinto ser uma coisa muito forte quando a gente entra em cartaz.

E eu acho que o público – a gente vê no sentido de lotação, de permanência – fica sem noção do tempo, sabe? A gente avisa antes para a pessoa se prepara, falamos: “olha só, são três horas, tem intervalo, se quiser vai embora no meio” e a pessoa não vai. Então é essa questão do tempo relativo.


KIKO: Enquanto companhia, nós pensamos que o teatro é uma vivência. É diferente de uma contemplação, o tempo de contemplação é um elo muito restrito. Mas quando você vai ao teatro é uma experiência profunda de relação. A coisa do tempo presente, da pessoa presente, da presença, da energia da pessoa, da vida pulsante ali na sua frente, ela entra bastante no campo da relação, do encontro.

Então, assim, essas peças elas têm o tempo delas não foi uma extensão “puxa vida, ficou grande, o que que a gente faz?” Não, os textos foram pensados para isso. Pensados para esse tempo de entrada, de conhecer algo, de se relacionar com esse algo, desse relacionamento amadurecer, o tempo da dissolução disso e o tempo da saudade no final.

Cais.. é um grande exemplo disso. Foi uma peça concebida para essa relação. No começo a gente falou: "Olha, é uma peça imontável.” A sorte e azar do espetáculo foi ser um espetáculo imontável. Quando eu concebi, escrevi, falei: “Gente tá aqui, ó. É imontável. São 14 pessoas em cena – dois músicos e doze atores. Três horas de peça. Enredo fragmentado. É imontável. Então, a gente vai levar muito tempo para poder montar essa peça”. E levou para conseguir produzir. Mas a princípio era essa a ideia de que ao final da trajetória, o resultado sempre fosse: “Meu Deus do céu, que vivência. Que coisa…!” Eu me lembro do [Antônio] Fagundes no final do Cais…, quando ele foi assistir, me recebeu com um sorriso e falou: “Eu ficaria mais três horas aqui com vocês!” (risos).


ALEJANDRA: Você lembra quando o José Possi [Neto] foi? O Zé Possi falou: "Vocês cumprem a função do artista". A gente tem que ser artista. Se a regra das instituições é: “Vocês têm que fazer peças com elenco de uma pessoa até três, porque senão o dinheiro não dá; vocês tem que fazer com duração de uma hora.” O artista, a função dele é questionar paradigmas. A gente utiliza das redes digitais, dos mecanismos de 60 segundos. Mas qual é a nossa função? É questionar, é provocar. Nós somos provocadores. Então, um artista nunca vai se adequar. Se a gente precisa de três horas, 10 horas, contra todas as regras exigentes, paradigmas, a gente vai se contrapôr.


VIRGÍNIA: Quer dizer, tem uma coisa que a gente não se contrapõe, que é a presença do público. Aí a gente é um termômetro, né? Se a gente percebe que eles estão – por enquanto, eles estão – então, vamos fazer. Se um dia as pessoas falarem assim “Nossa, não aguento mais peça de 10 horas ou de três horas”, se só tem um na plateia, a gente vai falar: “Opa. Infelizmente, vamos ter que repensar esse paradigma.”


KIKO: E aí, nesse ponto, Pedro, também é o que você perguntou das peças comporem uma trilogia. Essa estrutura dramatúrgica também faz com que elas sejam uma trilogia. São sagas. São três grandes sagas familiares. E que tem a estrutura de uma de uma vivência longa, de uma entrada longa na obra e com uma narrativa que vem de fragmentos.

Nesse ponto também, voltando um pouco a ideia do tempo da peça, acho que isso é absolutamente transgressor. Se torna transgressor e contemporâneo. Ao contrário de “Ai, meu Deus, eles fazem peças como antigamente”; não, a gente faz peças como agora. Trazendo o espectador desconectado, o espectador de segundos de atenção, para uma forma de atenção e uma entrada em algo que ele fica absolutamente chocado de estar vivendo aquilo por aquele tempo.

E, para terminar, uma sensação, um pensamento de que em teatro o tempo é absolutamente relativo: 50 minutos podem durar oito horas, oito horas podem durar 50 minutos.


VIRGÍNIA: É. As peças tem um apelo popular também, o que faz com que a gente perceba…

Porque é uma coisa que também ficou me perguntando, principalmente nessa temporada recente de Cais… eu tinha muita curiosidade de saber como vai ser não para o nosso público já iniciado, que já conhece a nossa obra. Eu falei: “eu quero pessoas que nunca tenham visto o nosso trabalho.”

E aí, por exemplo, eu comecei pelas costureiras que reformaram os figurinos do Cais… Eu perguntei para elas: “Vocês vão muito ao teatro?” Elas responderam “Não. Raramente. Eu fui em uma peça na vida.” Eu falei: “Você não quer assistir? Você fez a manutenção de todo esse figurino… Ela: "Ah, pode ser". Pensei: "Não vai aparecer, né"?. Elas foram. Além de ir, voltaram. Pediram uma segunda vez. Falaram assim: "Ai, eu sei que vocês só vão fazer oito sessões. Mas é que a gente ficou apaixonada, eu queria levar meu marido, eu queria levar não-sei-quem-lá".

Aí você fala: "Olha que poder tem isso". Porque não é gente da classe. Não é gente que tá acostumado… E assim, ficaram encantadas e pediram para voltar. Então, para mim isso foi o reflexo de que se o teatro, ele cuida desse público em geral, sem se preocupar com “a regra é essa, o teatro contemporâneo é assim, as métricas são assado, as instituições querem aquilo”, você ganha, né?


ALEJANDRA: Eu vou pegar carona na Vivi. Dentro desse projeto [*“Empatia”, que viabilizou a publicação do livro], Pedro, a gente descentralizou muito. Então, para estudar dramaturgia, a gente foi para Perus, Heliópolis, Luz, a gente se deslocou, levamos os espetáculos fora do nosso eixo. Levamos para a vida universitária, para a USP,  estamos fazendo uma parte da pesquisa na Belas Artes.

E dentro disso que a Vivi falou do público, o que importa, no final das contas, é, além da do nosso trabalho como artista. No lugar que eu faço consultoria, foram 10 pessoas que assistiram ao espetáculo pela primeira vez. Pela primeira vez. A gente teve volta, não tinha lugar, as pessoas esperavam para sentar na escadinha. Sendo que tinha três deles que diziam que não gostava de teatro. Eu falei: "Mas o que você já assistiu?" Nunca assistiu nada. É uma pessoa que mora em outro território, seja São Roque, São Mateus, M'Boi Mirim… ainda com tantas companhias de pesquisa descentralizadas, a gente vai dizer, assim, que 80% do nosso público não está formado. E aí quando a Vivi fala que uma vivência, que coloca o público sentado, a gente captura a atenção e o resultado é esse, então está fazendo sentido.


Enveredando pelas particularidades de cada peça, o que eu queria saber de Cais… é de que maneira esse espetáculo mudou a trajetória da companhia? Parece existir um antes e um depois de Cais...


VIRGÍNIA: É... Antes do Cais…, a gente já tinha produções que tinha um olhar da crítica e do público. Mas acho que Cais… veio coroar essa coisa meio grandiosa, não sei se pelo tamanho do elenco, pela dramaturgia, uma coisa tipo “Ai, um Shakespeare…” Ó tô sendo… como é que se diz, não sendo modesta. Mas eu acho que tinha esse caráter grandioso dentro do teatro de grupo. Acho que isso criou atenção. Começaram a se perguntar: "Quem são essas pessoas? Quem são essas figuras?".

Claro, no sentido de produção, somos nós três [Alejandra, Kiko e Virgínia]. Mas a companhia vai além de nós três, sabe? A companhia tem as figuras mitológicas que habitam em volta da gente e que construíram junto. Então, eu acho que o Cais… veio coroar isso, né. Esse grande encontro.


KIKO: Acho que Cais… enquanto enquanto fenómeno teatral, tem uma dessas conjunções assim mágicas de pessoas e de tempo histórico. A peça chega de uma forma que junta as pessoas certas na hora certa, com energia certa no lugar certo, com a potência de… A palavra sucesso é muito mal mal utilizada, mas é um pouco esse lugar mesmo de “Caramba, olha o que aconteceu!”. Essas coisas que são junções que você fala: "Não podia ter sido de outra forma".


VIRGÍNIA: Não é um fator só, né? É o cenário, é a concepção, é o espaço – naquele momento o centro [de São Paulo] estava no fervor.


KIKO: A peça que a gente não conseguia fazer. Por seis anos, a gente ficou tentando fazer e não conseguia. Por isso ficamos seis anos trabalhando ela. Durante esses seis anos eu fui reescrevendo o texto; nós fomos retrabalhando o texto: reuníamos os atores, líamos o texto; atores novos chegavam… A gente foi trabalhando isso durante seis anos, Pedro.

Então quando a gente partiu para montar, já tinha uma ponta de um iceberg com um histórico enorme. Tanto que aquela peça de três horas e meia, a gente montou em dois meses. Em 2 meses. Sendo que metade do tempo, nós improvisamos. Eu falei: "Vamos improvisar isso aqui, vamos brincar isso aqui". Aí o Cais… chegou, a gente ficou improvisando, improvisando, em um mês a gente levantou e a peça estava pronta.

De fato, o histórico da companhia tem um antes e depois do Cais... O Cais… é o que inaugura a nossa companhia enquanto conexão com o mundo, enquanto uma companhia reconhecida de São Paulo.


ALEJANDRA: E tem um momento também, de quem abre a porta, de acreditar. Eu acho que tem tudo isso: anos de trabalho de cada componente, de um histórico muito potente, o trabalho estava muito lapidado, mas a gente também teve quem acreditou. Nessa época, a gente tinha o Walter Portela, ele já estava bem debilitado – ele viajou muito [com a peça], mas ele já estava debilitado – e o Kiko queria que ele fosse o [barco] Sargento Evilázio.

E a gente precisava que alguém comprasse esse sonho. Eu já tinha tentado o Sesc, já tinha tentado várias instituições e todo mundo dizia: "Nossa, 20 pessoas trabalhando, 15 em cena. Tudo isso. Uma peça para um espaço alternativo, multiuso – porque não era palco italiano, eram plateias espelhadas. Todo mundo ia deixando para lá. E aí eu acho que vale a gente dizer o nome da Fernanda Capobianco, né. Quando ela olhou para aquele capital humano, o capital humano, o Kiko com uma trajetória que vinha do Rio de Janeiro. Eu com a Vivi arrancando. A gente tinha ali [Marcelo] Lahan, tinha os Marcelos, tinha Patrícia Gordo, tinha… é uma lista. Tinha uma criação já potente. E quando a gente apresentou Walter Portella e a perenidade da vida, dizendo “a gente queria que ele fosse o barco, quanto tempo a gente vai esperar?” Então, o Instituto Capobianco, em nome da Fernanda, comprou isso. Ela falou: "Vamos lá". Ela arriscou, mas ela viu o potencial. Ela não foi boba, ela viu que ali tinha potencial.


VIRGÍNIA: Eles foram a grande virada da companhia nesse sentido. Porque eles olharam para isso e deram esse valor, não é, Lê? Aí, depois, foi só uma coisa puxando o fiozinho da outra, porque começaram a aparecer [o crítico de teatro José] Cetra, Alexandre Mate [*também crítico], um pessoal da cena teatral que documenta o negócio...


ALEJANDRA: A gente deve muito isso aos críticos também, que eles passaram a visitar. E é uma é uma conjunção, como diz o Kiko, de criação, da dramaturgia, do trabalho ardo. Mas ali foi chegando desde [Antônio] Fagundes, Zé Possi… a gente foi chegando em um monte de gente que era conhecido do meio… e um monte de críticos, que a gente vai falar do Valmir Santos, o Wellington [Andrade], a gente vai falar do Mate, é uma lista ali que a gente pode puxar junto com essa porta que se abriu no Instituto. Então, é uma conjunção mesmo, eu acho que é um trabalho assim que a gente tem que se render aqui quando o coletivo de esforços profissionais, de talentos na cena e fora da cena, trabalhando junto e olhando para a obra. E a obra se sobrepôs a todos nós.


Em Sínthia vocês abordam a vivência de pessoas transgênero. Como foi lidar com isso naquela época, em 2016? Considerando que o debate avançou, que já temos, por exemplo, o musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas (2021/2022), de Fernanda Maia, e outras peças que já estão trazendo pessoas trans para o teatro com mais visibilidade, tem algo que vocês mudariam hoje?


VIRGÍNIA: Acho curioso que você falou da Brenda Lee porque a ONG Brenda Lee foi a primeira a nos visitar naquele momento. Ainda não se falava tão firmemente dessa questão da representatividade no teatro, estava naquele começo. Mas intuitivamente nós falamos assim: "Vamos trazer pessoas que possam compor esse debate". A ONG Brenda Lee esteve lá e receberam super bem. Não são pessoas da classe artística, mas olharam para aquilo e, naquele momento, falaram assim – começaram a elogiar o Kiko [quem interpretou Vicente/Sínthia na época] e falar: "Como você anda bem no salto!". Eu lembro de pontuações assim: "Nossa, você parece muito uma mulher!". Então, não tinha ainda essa questão para elas, pelo menos enquanto plateia, de ele não pode fazer porque é hetero e tal... Isso foi essa primeira fase.

Naquele momento algumas pessoas apontaram: "Ó, acho que vocês estão mexendo num lugar delicado”. Mas a gente tinha os argumentos. Isso posto naquela época. Hoje em dia, a gente teria questões, né? Porque a gente realmente acredita na força do movimento e de que isso é importante para… enfim, mudar a sociedade, aumentar o respeito, a diversidade.

Ocorre que nessa vivência que a gente teve agora na Mungunzá relendo o texto – e eles releram – acredito que eles trouxeram uma camada que foi um passo à frente desse momento que a gente está agora. A gente achou que a personagem Sínthia ia ser lida pela Fábia [Mirassos, atriz e visagista]. E a Fábia leu a Aparecida [mãe de Sínthia] e o Marcos [Felipe] leu a Sínthia. A gente achou isso muito interessante. Em que momento a gente vai chegar nesse teatro onde tenhamos todos no palco, mas não só fazendo os papéis que cabem a elas na sociedade? Qualquer um podendo fazer qualquer papel, sabe? Então eles trouxeram esse ponto a mais que eu acho que foi um grande... desafio até para a gente, de falar assim: "Que surpresa! A Fábia então leu a Maria Aparecida e não a Sínthia", sabe? Isso deu um… acho que um nó positivo na cabeça.


ALEJANDRA: Kiko, eu vou falar antes, porque daí eu vou entregar já que você é o autor de Sínthia e a história é sua. Eu só vou pôr uma observação. Eu acho que a conclusão que a gente chegou, Pedro, é que na verdade a gente não está entendendo que tem uma paleta de possibilidades. Porque a história sim pode ser da pessoa, e sem que isso tenha de ser exatamente dessa maneira. Eu acho que a gente foi leal à história, à biografia [do Kiko].

Mas de alguma maneira isso implicou questionamentos e esse é o papel da obra de arte. O que a Vivi disse que aconteceu na Mungunzá, foi muito interessante, porque o evento chamava-se "Reflexões Dramatúrgicas"  e lá, junto com outras parceiras trans, a gente entendeu que a nossa Sínthia, a Sínthia da Velha Companhia, ela não é uma Sínthia trans, ela é uma Sínthia que se veste de compaixão. Todas as parceiras trans que estavam lá, disseram "isso não tem a ver com a gente, com uma mudança… de como eu me vejo, de gênero; tem a ver com uma questão de alma e de compaixão.” Porque a gente levou a problemática em debate. No caso da nossa Sínthia, ela está em uma vertente de alma, de compaixão. Ela não tá pensando se ela vai por peito, se ela... sabe? É outro lugar, não é como ela se vê.


VIRGÍNIA: Mas com certeza se hoje em dia… me dá a sensação que se a gente fosse remontar, a gente teria esse olhar. Talvez não fazer o compromisso para que esse papel tenha uma atriz trans. Mas de olhar para esse elenco e falar: "Poxa, esse elenco..." Diferente do Cais… que a gente refez e falou: "Caraca, só temos brancos", mas a gente vai apostar nessa questão desses arquétipos, da atuação dessas pessoas, do elenco original. Sínthia já cai em outro lugar, sabe? Que a gente pensa como seria. Então, a gente teria que repensar esse elenco. Trazer pessoas trans para comporem, seja em qual papel for ou na equipe, sabe? Na época, a gente já tinha [na companhia], a Matilde, que estava em transição. Mas é isso, eu acho que é uma peça mais delicada mesmo.


KIKO: O texto de Sínthia, Pedro, é uma peça bastante complexa e bastante pessoal também. Ela parte de uma… ela é a minha família, né? A ideia surgiu de uma conversa entre nós e comigo falando que eu queria falar sobre a minha vivência.

Eu sou de família de militares, meu pai foi militar; uma família classe média tijucana. Eu fui esperado como menina, na ditadura militar, e nasci homem. E o tronco da família da minha mãe vem de um machismo muito forte. E a gente queria falar disso.

Um dia, eu tive uma… uma visão olhando minha mãe. Porque eu seria esperado como Sínthia. Sínthia seria o meu nome, eu teria esse nome. E um dia eu, vendo minha mãe numa infelicidade muito grande, sentada na mesa – uma mulher não cumprida – na noite de Natal, depois de ter cozinhado para milhões… Eu tive um… um insight, uma visão artística. Eu pensei: "E se um dia eu, que saí [de casa] para me tornar, viver a minha vida de artista fora, em São Paulo. E se eu retornasse em um Natal, não como… como eu, mas como essa filha que essa mulher não teve? E se esse ato fosse feito?” Se fosse realizado não por uma questão pessoal, mas por compaixão, por amor, por amor a essa pessoa. Desse mote nasceu Sínthia. Então Sínthia parte de uma transformação do personagem, de um personagem que se transforma na direção de uma compaixão profunda. Não só isso: ao mesmo tempo essa compaixão por si mesmo – ela se descobre também.

Por essa questão desse lugar familiar, na época a gente falou: "então sou eu quem tem de fazer [o papel de Vicente/Sínthia]". Por quê? Porque é performático, eu tô falando de mim. Então sou eu. E a gente se cercou de tudo o que já foi falado pela Vivi e pela Alejandra, né? Também tivemos o Thamy Ayouch, que é um um um um pensador da questão trans. E tudo estava muito no início. Muito embrionário para a gente. Provavelmente hoje, a Vivi falou muito bem, a gente não faria da maneira como fez, né? Não por não acreditar artisticamente nisso [a montagem original de Sínthia], mas de fato por uma questão política, social, de inclusão, de representatividade, de trazer esses corpos para a cena, para reconhecê-los.


VIRGÍNIA: É. Porque se a peça aborda diretamente essa questão… diferente do Cais… que não tem uma questão específica sobre isso. Mas eu acho que não seria nem injusto, né? Eu provavelmente doaria meu personagem e falaria assim: “Por favor, uma atriz trans para fazer a Ana ou a Nôra”, para ter um mínimo de coerência, né?


Com exceção do segundo ato, que volta ao passado para falar das origens da protagonista, Casa Submersa é a peça que mais se fixa no tempo presente. Ao mesmo tempo, a peça estreou em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. Como era lidar com esse tempo presente?


VIRGÍNIA: Um tempo presente e um tempo também premonitório. Porque quando veio a peste, a gente falou assim: "Ai, meu Deus". Eu fiquei com medo, falei assim: "Eu não quero mais tocar nessa peça.”


KIKO: Eu não sei se você conhece essa história sobre Casa Submersa. Mas a peça parte de uma improvisação que ocorreu no processo do texto de Sínthia. O processo de Sínthia foi aberto. A partir de Sínthia, a companhia começou a fazer processos visitados por pessoas, então desde o primeiro encontro, quando a gente começou a improvisar esse tema, a gente tinha espectadores na plateia que chamamos de observadores, pessoas que estavam ali observando e participando não nativamente, não cenicamente, mas intelectualmente do processo junto com a gente.

E em um determinado momento desse processo do Sínthia, uma menina se revelou. Foi em uma improvisação, um momento catártico, assim. Um dia  nós falamos: "Venham para cena vocês, vocês podem vir para cena com a gente". E aí ela entrou numa improvisação em que eu fazia justamente um senador corrupto e ela entrou gritando, bufando. Todo mundo achou a cena muito boa. Quando acabou tudo, ela virou para mim e falou: "Olha, eu não estava representando. Tive um surto". E me contou a história dela, que é a história raiz, é o tronco de Casa Submersa. Ela teve seu pai assassinado num estado brasileiro por um notório, uma pessoa conhecida, da política sua família vivia desde então no silêncio. E naquele momento aquilo estava explodindo dentro dela.

Então Casa Submersa parte dessa pessoa, dessa dessa que é absolutamente contemporânea. É um Brasil da bandidagem. A imagem que nos surgiu na época não era de um país corrupto, com uma corrupção endêmica; mas um país bandido, alicerçado em uma forma de usurpação do outro. E a partir desse mote é que surgiu toda peça.

A pessoa esteve com a gente o tempo inteiro, foi a minha assistente de dramaturgia. Ela ficou comigo o tempo inteiro, a gente foi debatendo. Os quadros que aparecem no espetáculo, são os quadros dessa pessoa. Ela se tornou uma artista plástica incrível – a partir dessa catarse, ela falou: "Caramba, eu tenho que fazer alguma coisa com isso". Ela foi pintar, se tornou uma mega artista plástica e na peça estavam as imagens dela. Então, essa contemporaneidade dialoga com o nosso momento atual, com o nosso pasmo diante do nosso sistema político.


VIRGÍNIA: Nesse momento a representatividade ganhou uma força total para a gente. O elenco tem todos os representantes que possam trazer esse Brasil em suas raízes.


ALEJANDRA: E não uma coisa como completar, não é, Vivi? É porque era fundamental.


VIRGÍNIA: Fundamental, a gente falou assim: “não dá para ser alguém que conheça a questão nativa, indígena. Tem que ser uma indígena.” Só ela vai ter, nesse papel, um lugar de fala, sabe? Então, Casa Submersa é o momento que a gente está muito amadurecido nesse debate e ai… foi uma experiência muito rica.

Eu acho que vale falar um pouco do Ruy. Assim como a gente falou da Fernanda. Em um segundo momento... quando o [Instituto] Capobianco fechou, nesse segundo momento que trouxe para a gente para esse local de encontro e de continuidade do trabalho.


ALEJANDRA: A gente tem esse parceiro que também olhou para nós que é o Ruy Tone. É onde temos sede compartilhada [a Zona Franca]. Ela não é doada, mas ela é muito... a gente consegue estar lá. E esse olhar também foi mais um alicerce para a gente num ponto da história e tem sido ao longo da nossa trajetória.


VIRGÍNIA: Porque foi ele quem, falando de Casa Submersa, propiciou toda a pesquisa. No sentido, por exemplo, de o Kiko ter ido para a Amazônia, ficou um mês lá. Porque o Ruy tem vários trabalhos lá na Amazônia.


ALEJANDRA: É. O Ruy tem um trabalho com a Fundação Almerinda [Malaquias] e teve isso. O Kiko foi para lá, eu acho que ele pode falar mais sobre a viagem, já que foi ele quem experienciou isso. E o Ruy tem um olhar muito ligado à educação. Ele entende que a educação está ligada à cultura. Ele tem esse olhar muito aguçado. Acho que o Kiko daí pode falar sobre a experiência que Casa Submersa teve na Amazônia.


VIRGÍNIA: Por que a gente está falando do Ruy e da Fernanda? Porque claro, temos parceiros incríveis, como o Sesi e o Sesc, não tem como negar. Só que esses dois, especificamente, propiciam a continuidade de um trabalho de grupo. Não é aquela coisa “Ó, vocês têm 16 sessões, tá aqui o financiamento e façam”, que é uma coisa um pouco mais direta. Esses dois lugares, o Instituto Capobianco e a Zona Franca, tem esse lugar em que a gente pode  dilatar o pensamento, ampliar, fazer conexões. Então essa importância também. Já que estamos falando de companhia, no sentido de existência de uma companhia, só é possível por isso. Se não tem esses olhares e esses espaços, fica muito difícil, né? É por isso que muitas companhias acabam, não conseguem resistir, porque aí fica nessa dependência de vender espetáculo.


KIKO: É isso gente, perfeito. Não tem muito o que falar da Amazônia, né? O Ruy me propiciou, que eu pudesse escrever o texto lá na Amazônia. E, assim, foi muito forte, muito potente.

Eu me lembro que eu tomei um choque… porque o texto parte dessa história dessa pessoa e parte também de um sonho que eu tive. A gente trabalha muito com sonhos, os sonhos conversam muito com a gente. Tive um sonho no qual eu precisava descer em uma água… tinha um um rio e eu precisava ir ao fundo, visitar uma casa submersa. Eu pegava ar e ia até o fundo e de fato encontrava a casa submersa lá. Eu acordei e falei: "Esse sonho tem que ir junto com essa história". E quando eu cheguei na Amazônia, peguei uma canoa onde eu fiquei hospedado e aí eu fui remando. De repente eu encontrei o lugar: “Meu Deus, o lugar do sonho". Eu tinha sonhado com esse lugar. E escrever lá foi foi, assim, uma vivência inacreditável.


Como vocês se sentem com o lançamento dos textos da trilogia em um livro?


ALEJANDRA: Quando nós lemos dramaturgia, fazemos um exercício de nos colocar no lugar do outro. É um exercício inteligente, potente e poético de termos outros pontos de vista. É quase o advogado de defesa estudando acusação. É a gente entender o mundo com outro olhar. Então, a gente tem que fazer uma campanha “Leia dramaturgia”. E não é porque a gente tá lançando não.


VIRGÍNIA: Desde cedo. Tem que promover isso para a infância, ler dramaturgia. Porque é esse exercício de empatia que vem de cedo. Eu lembro, com 12 anos, de ir na biblioteca e ler Dorotéia, de Nelson Rodrigues. Aquilo foi uma virada para mim, entendeu? Eu falei assim: "Gente, isso é teatro!”. Aqueles personagens ficaram habitando em mim. Eu acho que as pessoas estão lendo pouca dramaturgia.


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As Águas (2025), de Kiko Marques

Capa e diagramação: Vitor Carvalho

Gênero: Dramaturgia / Sagas

Páginas: 384

Onde comprar: Editora Javali - R$ 60,00

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