O olhar náufrago de Monet
- Esaú Brilhante
- há 7 dias
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Atualizado: há 6 dias
Ensaio analisa as obras produzidas pelo pintor francês durante seu período em Argenteuil como um sintoma de um mundo em transformação
Para inaugurar o novo tema anual do MASP, Histórias da Ecologia, o museu preparou a exposição A Ecologia de Monet, que abriu em 16 de maio de 2025 e permanece aberta para visitação até 24 de agosto. Valendo-se de um recorte das décadas de 1870 e 1920, a mostra traz 32 pinturas sobre a trajetória do pintor francês e sua relação com a natureza durante este período. Aproveitando esse evento importante no campo das artes plásticas, gostaria de trazer algumas reflexões sobre a obra de Claude Monet (1840-1926), principalmente com relação às pinturas produzidas durante as décadas de 1870 e 1880, período no qual o pintor e sua esposa viveram em Argenteuil, subúrbio de Paris.
É possível defender que a produção de Monet possui uma forma plástica ancorada em um olhar náufrago, tendo a “forma” como vestígio da subjetividade tolhida pelo avanço das contradições de subordinação do trabalho. Suas pinceladas se afiguram como uma reafirmação do produtor/autor, tornando evidente o trabalho feito na obra para contrapor a dicotomia “gesto” e “intelecto” e unindo os dois em uma existência na feitura. O gesto de Monet não é mecânico, subordinado, mas evidente e autônomo em uma coletividade. As mudanças da produção plástica, vinculadas ao mundo do trabalho (ritmo, cadência , tempo, velocidade, redução da operação) aparecem no corpo de sua obra como fratura à mostra; a técnica não como neutralidade mas como conteúdo autêntico.
A formação das primeiras metrópoles, a competição entre o grande número de artistas que já não conseguiam adentrar os espaços formais da academia, a mercantilização da arte e do tempo são fatores que adentram a prática artística. Em 1862, retornando a Paris depois de dois anos no serviço militar e buscando o ensino formal das artes, Monet conheceu pintores como Frédéric Bazille (1841-1879) e Auguste Renoir (1841-1919).
O métier (área de trabalho, de atuação) é modificado pelo meio social e aparece como reafirmação da liberdade na pincelada orgulhosa e aparente – que já estavam nas pinturas de Hals (1580-1666), Rembrandt (1606-1669), Goya (1746-1828) e no Ticiane (c.c. 1473/1490-1576) tardio; e foram generalizadas no plano por Delacroix (1798-1863), do qual Monet era um grande admirador. As cores como estrutura: em vez do esboço neoclássico, sustentam a visão no que elas têm de plástico, não de real. Monet como os outros Impressionistas faz o quadro no quadro. Esses fatores heterotópicos, não hegemônicos da atividade artística, condensam-se na produção e na razão plástica como resposta no campo do “fazer”. Não é um abandono completo das práticas tradicionais, mas sua reelaboração de acordo com as novas condições do artista.
Com seu levantamento documental vasto acerca da vida e obra de Monet, o historiador e marchand francês Daniel Wildenstein ressaltou o rigor técnico e a observação meticulosa pela luz, longe de uma captura espontânea. Sua pesquisa expõe como Monet montava vários cavaletes para pintar o mesmo ângulo com variações sutis de luz ao longo do dia, um ato quase científico de observação atmosférica, logo todas as produções eram suas obras, em vez de esboço ou ensaio para um projeto final.
Nosso olhar plana pelas pinturas, sem um ponto fixo, porque desliza sobre as pinceladas sincopadas de Monet; são gestos conscientes de um outro totalmente produzido pelo fazer laborioso do artista e que nos ancora pela cor e pela luz. O nosso olhar reafirma a existência da subjetividade no meio da produção subordinada do capital. A conquista é do indivíduo como ser coletivo que se reconhece no ato do fazer, na carga plástica que responde às limitações do meio como subjetividade à mostra, orgulhosa. O ensaísta Michel Butor abordou a carga simbólica por trás da fatura de Monet em Monet ou Le Monde Renversé (trad.: “Monet ou O Mundo Invertido”, 1963), analisando suas variações de cor e luz como outra forma de ver o mundo, No mundo tradicional, o espectador contempla uma cena. Segundo Butor, no “mundo invertido” de Monet, o espectador é absorvido pela cena: a pintura não está “lá fora”; ela envolve abordagem e o observador, criando uma experiência imersiva e desorientadora.
Carregada de cor e volume, a composição de Monet nesse período não abandona a espacialidade, mas a constrói a partir de uma carga cromática. Sua única âncora visual, sem a submissão das forma retilíneas, guia o olhar, da estrutura piramidal ou da perspectiva clássica. Na biografia Monet at Argenteuil (1982), o historiador Paul Hayes Tucker analisou o período do pintor na cidade de Argenteuil e aponta este momento como um “laboratório”, um ponto de reflexão, onde o estudo da cor se deu no intermédio entre a modernidade e a natureza. Longe da contemplação, a repetição da luz se pautava no estudo em movimento das abordagens. Não se tratava de um gesto mecânico que seguia o impulso, mas de um projeto plástico de um fluxo de atenção. Aqui temos novamente a noção do quadro como um registro do fazer, assim como vimos na pesquisa de Wildenstein.
Suas principais pinturas do período seguem essa lógica, Impressão, nascer do sol (1872), obra tida como gênese do movimento Impressionista, forma a profundidade a partir dos vestígios à mostra e das gradações sutis de cores, principalmente do sol alaranjado. Camille no Jardim com Jean (1873), pintura que retrata a esposa de Monet, Camille Doncieux, sentada, estabelece uma relação de volume por meio das pinceladas do lado aponto a figura da mulher, contrabandeando o olhar e criando uma angulação valendo-se das cores e não necessariamente do espaço teatral. Em Estação Saint-Lazare (1877), símbolo da modernidade, o trem é quase dissolvido por um azul que amassa a presença do suporte de aço, captando a ternura da manhã e a solidão da viagem. Já em Regatas em Argenteuil (1872), os barquinhos do rio Sena são apresentados como existências singulares, observadas em sua disposição frenética, o reflexo é tão forte que contrasta com a calmaria do dia.

Nesse sentido, o “olhar náufrago” de Monet se revela como um dispositivo subjetivo abalado pelas novas temporalidades do capital. Suas séries tardias como as Pilhas de Feno (década de 1890) ou as Ninfeias (início em 1895) continuam o registro de uma tentativa quase compulsiva de fixar a instabilidade. Só que, ao invés de fragmentos isolados, cada variação pictórica denuncia a perda da forma como estabilidade: o mundo visível se dissolve em manchas, em flutuações cromáticas, como se o artista estivesse à deriva diante de uma realidade que não pode mais ser capturada se não por fragmentos da experiência humana. Apenas a “forma” ancora o olhar.

Monet nasceu em 1840, na década que marca o fim da Revolução Industrial e oito anos antes das revoluções sociais que tomaram a Europa. Começou sua trajetória artística desenhando caricaturas, assim como Honoré-Victorien Daumier (1808-1879), e com isso conseguiu atenção relativa do círculo artístico parisiense. Dessa forma, existe um mundo em transformação que acompanha a trajetória do pintor e de toda uma geração de artistas que buscavam alternativas aos dilemas do real, cada vez mais fragmentado. Ao pintar nesse mundo, Monet capturou seu movimento.
Portanto, a forma plástica em Monet não seria uma celebração da natureza em sua pureza, mas o traço residual de uma subjetividade fraturada, um “olhar náufrago” que, em vez de dominar o mundo pela visão, atua e insere-se em sua instabilidade. As reafirmações da forma são simultaneamente efeito da experiência moderna, respondem à alienação do sujeito no ciclo incessante do trabalho e da mercadoria. As telas de Monet não escapam da História: são seus sintomas. Ao invés de nos oferecer a transcendência da forma, ele nos ancora a ela. A subjetividade em ruínas diante do mundo reaparece sob os vestígios da forma plástica.
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NOTA
Esaú Brilhante é formado em História, mestrando em História da Arte. Atua como pesquisador, com trabalhos para o Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Vai-Vai, e atualmente no acervo de Arte Moderna do Instituto Casa Roberto Marinho e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Também atuou na consultoria de direção de arte para o teatro João Caetano (Rio de Janeiro), e para o teatro Jorge Amado (Salvador). Esse texto foi publicado originalmente em seu blog pessoal em 18 de maio de 2025.
Parabéns muito sucesso está incrível