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Da geometria à imaginação, Dona Carmen fez do Parque Lage o berço de suas obras

Pintora fluminense se inspira no espaço público em que se tornou artista, usa aprendizados da infância e concretiza sonho de muitos anos


O encontro entre a arte e a natureza nas obras de Carmen Lucia Veronica da Costa Souza, 59 anos, vem da própria gênese da realizadora. Sua paixão pela pintura surgiu muito antes de suas primeiras criações. Foi no coração de um local público do Rio de Janeiro (RJ) reconhecido por suas belezas naturais: o Parque Henrique Lage, localizado no Jardim Botânico, aos pés do morro do Corcovado. 


A artista cresceu na região da Baixada Fluminense. “Lembro que, na escola, eu era apaixonada pelas aulas de desenho”, ela comentou em entrevista para a Revista Galérica. “Eles eram muito espertos em deixá-las sempre às sextas-feiras. Quase ninguém faltava”. Sua criação não trouxe grandes oportunidades para trabalhar as habilidades artísticas. Na formação acadêmica, priorizou o talento em se relacionar com os outros e estudou administração, tendo adquirido um MBA em gestão de pessoas em 2011.


Dona Carmen posa com uma de suas pinturas em retrato para exposição Geometrias do Habitar, realizada em 2022. Foto: Renan Lima / Acervo da artista
Dona Carmen posa com uma de suas pinturas em retrato para exposição Geometrias do Habitar, realizada em 2022. Foto: Renan Lima / Acervo da artista

Foi neste mesmo ano que Dona Carmen, nome artístico adotado por ela, passou a conviver diariamente com os quadros, peças e outras das expressões espalhadas pelos corredores da Escola de Artes Visuais. Localizada em um antigo palácio que se tornou marca registrada do Parque Lage, a instituição foi criada em 1957, à época conhecida como Instituto de Belas Artes (IBA), e oferece cursos que abrigam desde crianças a nomes já consolidados.


Uma das poucas funcionárias negras daquele espaço, se dividiu entre papeis como recepcionista, secretária e assistente de ensino. Dona Carmen trabalha na instituição até os dias de hoje. Pôde assim se aproximar de uma diversidade de alunos e professores e se mantém, em mais de uma década de trabalho, como espécie de elo comum entre todos eles. A presença cotidiana na escola permitiu que Dona Carmen reacendesse seu contato com as artes. Ela explicou que o professor Alberto Saraiva, também diretor do espaço, foi fundamental para a inauguração de sua carreira nas artes visuais.


“Eu costumava brincar com ele e dizia ‘um dia eu vou fazer a sua aula’. Quando ele me convidou para um de seus cursos, não acreditei — eu estava lá, estudando desenho e pintura”, relembrou. Em 2022, ela enfim participou de um curso sobre arte contemporânea ministrado por Saraiva. “Tudo era maravilhoso e crescia uma vontade dentro de mim de criar cada vez mais”.


O aprendizado se traduziu em produções rápidas e no manejo natural sobre as telas. Ao final daquele ano, Dona Carmen já possuía mais de 10 obras e recebeu o primeiro convite para montar uma exposição individual, que aconteceria em uma das construções históricas do Parque Lage. “O professor me convidou para participar de uma mostra na capelinha. Minhas obras eram diferentes da maioria dos alunos, mas ele viu nelas algo especial”, Dona Carmen relembrou. “Mas eu precisava de 19 telas para organizar a exposição. Naqueles tempos, pintei uma tela enorme, de dois metros por um e dez, em apenas dois dias”.



À esquerda, prédio da Escola de Artes Visuais (EAV), no Parque Lage, no Rio de Janeiro. Foto: Divulgação / Site oficial da EAV. À dir., prédio das Cavalariças do Parque Lage, onde foi realizada a primeira individual de Dona Carmen. Foto: Divulgação / Parque Lage


Foi assim que, em fevereiro de 2023, veio à vida a primeira exposição individual da artista: Geometrias do Habitar. Seus dois meses em cartaz nas Cavalariças do parque trouxeram à tona outra das principais inspirações da artista. Dos estudos com o pai às primeiras experiências com crianças, a geometria sempre esteve presente em sua vida. Seja pela piscina retangular do Parque Lage, pelos exercícios infantis que aplicou nas escolas onde trabalhou — com direitos a bolas, panos retangulares e outros elementos lúdicos — ou padrões que se repetem pela superfície de árvores e plantas, a artista afirmou que a geometria está presente em todos os aspectos da existência humana. “Ela se apresenta no nosso conviver, no nosso comunicar e é a base para tudo que podemos imaginar”.


Seria injusto resumir a arte de Dona Carmen ao ímpeto de traduzir a natureza a partir das formas geométricas. Embora os quadros quase sempre apresentem formas claras, definidas por contornos fortes e evidentes, além do uso de cores primárias, existe um tipo de inconsciência por trás de suas pinturas.


Em determinada pintura, sem título e produzida em 2022, traços esverdeados se misturam a pinceladas de marrom terroso. As cores sugerem a anatomia de folhas. Lâminas são sobrepostas por lacunas da tela bege. Algumas imprimem cores quentes do outono. Outras, por outro lado, vão além da realidade e carregam tinta azul. Não é difícil associar esses elementos à paisagens naturais, mas nem tudo pode ser racionalizado.


Em outro quadro, também sem título (2022), a cor da terra se dispersa entre formas geométricas. Quadrados, triângulos e círculos se encontram numa espécie de mosaico. Os tons escuros formam estruturas que se assemelham a troncos, dividem a tela com o verde musgo da vegetação e são entrecortados por esferas brancas. A superfície, suas raízes e o céu parecem estar compactados em um mesmo plano. Novamente, temos a presença de um fazer que também se beneficia de certo grau instintivo.



Obras sem título de Dona Carmen (2022). À esquerda, acrílica sobre tela, 20x20 cm. À dir., acrílica sobre tela, 70x70 cm. Créditos: Acervo de Dona Carmen


Ainda na coleção de Geometrias do Habitar, um vibrante fio vermelho ameaça rasgar a tela em duas metades. Ele se destaca em meio aos tons pasteis e não existem evidências que relacionem o seu uso para indicar formações geográficas. A divisão do quadro em diferentes triângulos, entretanto, sugere uma montanha prestes a sucumbir e que se fragmenta perante as forças da natureza. É o tipo de interpretação que acontece além da moldura e dos formatos cartografados pela ciência humana.


 Há uma pintura, sem título (2022) na qual o casamento entre as diversas subdivisões geométricas determina fraturas sobre a totalidade da pintura. O conjunto lembra uma vidraça que acaba de se estilhaçar. É como se a artista questionasse os limites de sua própria matéria-prima, desafiada a descobrir até quantas unidades é possível reunir em um mesmo agrupamento artístico.


Um dos meus maiores desejos é produzir, com meu trabalho, geometrias que toquem as pessoas. Eu aprendi que devemos fazer o necessário para que a nossa arte possa interagir com os outros. Apenas assim ela pode se tornar eterna. (DONA CARMEN)


Pintura sem título feita por Dona Carmen em 2022. Acrílica sobre tela, 42x33 cm. Créditos: Acervo da artista
Pintura sem título feita por Dona Carmen em 2022. Acrílica sobre tela, 42x33 cm. Créditos: Acervo da artista

Hoje, Dona Carmen se prepara para uma nova exposição individual na Espanha e segue explorando as possíveis aplicações de sua assinatura geométrica. “Eu fui a primeira funcionária e a primeira mulher preta do EAV a se tornar artista”, ela afirma. “Consegui estimular diferentes senhoras negras a participarem de cursos da escola. É importante que todos se sintam estimulados a pegar os seus pincéis e pintar. Não existe idade ou cor para se aprender arte!”.


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