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O Fogo Caminha Comigo

Foto do escritor: Luca ScupinoLuca Scupino

IN MEMORIAM | Luca Scupino presta homenagem ao cineasta David Lynch


Várias vezes ao longo de sua carreira, perguntaram a David Lynch (1946-2025) como era possível que seu cinema fosse tão sombrio, enquanto ele próprio era uma pessoa cheia de luz, de palavras espirituosas e defensor de práticas como a Meditação Transcendental e o Mindfulness. Sua resposta (que viria a repetir sempre): a vida é cheia de contradições e de contraste entre a luz e a escuridão; e a arte também deveria ser assim.


A morte de Lynch, assim como a do diretor teatral paulistano José Celso Martinez Corrêa (1937-2023), está ligada (mesmo que indiretamente) a um incêndio. No caso do cineasta americano, trata-se dos incêndios florestais em Los Angeles em janeiro de 2025, que agravaram seu quadro de enfisema, resultante de anos como fumante.


Não deixa de ser irônico que a morte de Lynch reflita também a realidade de sua obra, uma vez que tanto o fogo quanto a cidade de Los Angeles fazem parte de seus elementos constituintes. Desde o seriado Twin Peaks (1989-1991) ao longa-metragem Coração Selvagem (1990), o fogo esteve presente em cigarros, incêndios, referências à eletricidade e até na famosa frase da personagem Laura Palmer, “fire walk with me”. Já Los Angeles é a origem dos mitos e do glamour que Lynch buscou desconstruir em sua obra-prima Cidade dos Sonhos (2001), longa-metragem que lida com o peso de uma Hollywood decadente e moedora de sonhos. Espirituoso como era, tenho certeza que ele próprio não deixaria de ver significado nisso.


De fato, sua perda pode apenas ser comparada àquela de artistas como David Bowie (1947-2016), Jean-Luc Godard (1930-2022) ou a do próprio Zé Celso, pois se trata de um evento que representa a perda de uma possibilidade de sonhar realidades e de traçar caminhos para o futuro. Certamente, ela pode ser dimensionada observando sua repercussão nas redes sociais: fãs e admiradores, passando até pelos seus críticos e chegando a colaboradores, como Naomi Watts e Kyle MacLachlan, lhe renderam homenagens tocantes. Afinal, como dimensionar a morte de um grande artista?


Escrevo artista não por acaso. Lynch foi muito mais que um cineasta, tendo explorado meios tão distintos como a pintura, a música e a publicidade, cada qual com a inventividade e com o estilo “lynchiano” que lhe é próprio, sempre em busca de encontrar o meio ideal para a manifestação de suas ideias preciosas. Essa afirmação não deve ser entendida como uma crítica ao cinema, arte que se alimenta de todas as outras. É o mesmo que entender Manoel de Oliveira como um filósofo ou romancista que decidiu fazer cinema, ou Ingmar Bergman como um dramaturgo que agraciou as telas: que bom que a Sétima Arte não se estagnou nas mãos de adeptos da mentira do “cinema puro”.


Surrealista ou expressionista, pouco importa. O cinema de Lynch está acima de rótulos, é uma arte que sempre borrou os limites entre figuração e abstração, narrativa e experimentação, cinema e televisão. Lynch foi, acima de tudo, um grande criador de formas — no sentido que coloca Godard da forma como expressão do homem. Lynch devora tudo que lhe interessa e estabelece conexões inusitadas com a história do cinema: de O Mágico de Oz (como não lembrar da mãe da Lula, versão da Bruxa Má do Oeste em Coração Selvagem, com batom vermelho espalhado sobre o rosto?) a Nosferatu (1922), de F.W. Murnau (assim como o vilão BOB de Twin Peaks, uma força macabra que aparece quando menos se espera e lentamente se aproxima da tela em direção a nós, espectadores).


Cena de O Mágico de Oz (1939)
Cena de O Mágico de Oz (1939)
Cena de Coração Selvagem (1990)
Cena de Coração Selvagem (1990)
Cena deNosferatu (1922)
Cena deNosferatu (1922)
Cena do seriado televisivo Twin Peaks (1990-1991)
Cena do seriado televisivo Twin Peaks (1990-1991)

Quando sentiu a necessidade de fazer um filme mais narrativo e sem os elementos estranhos que caracterizaram suas outras obras, Lynch não pediu desculpas e lançou Uma História Real (1999), provando que uma obra pode ser “lynchiana” sem entregar o que é esperado. Da mesma forma, mostrou em O Homem Elefante (1980) sua habilidade em trabalhar com o melodrama, mantendo seu imaginário sombrio e sua habilidade única de compor imagens que tocam o inconsciente.


Fico pensando aqui na minha própria admiração por sua obra, que foi bem responsável por me fazer mergulhar no mundo do cinema, quando assisti Twin Peaks pela primeira vez aos treze anos, sem ter ideia do que me esperava. É curioso, pois, em teoria, o cinema de Lynch vinha na contramão de um outro tipo de cinema que me interessava, mais voltado ao realismo e ao cotidiano de pessoas comuns. Com suas imagens poderosas e bizarras, suas narrativas labirínticas e sua visão assombrada do mundo, seus filmes me sugaram para a própria realidade e se inscreveram no fundo de minha consciência. Quando lançou sua última grande obra, a série Twin Peaks: o Retorno (2016), eu acordava todas às segundas-feiras às 4h da manhã para assistir aos novos episódios assim que saiam no streaming.


Pois, afinal, o cinema de Lynch é um cinema sobre a realidade da alma, sobre o lado sombrio dos nossos desejos e medos, sobre ser tomado pela mais pura felicidade ou o mais intenso amor, diante de uma realidade aterrorizante. Sua câmera revela mundos secretos, escondidos nas entranhas da realidade superficial: se tivéssemos que definir sua obra em um plano, seria aquele do início de Veludo Azul (1986), em que após apresentar imagens idílicas dos clichês do “American Way of Life”, a câmera adentra na escuridão da grama verde para mostrar insetos devorando a terra, insaciavelmente.


Cena de Veludo Azul (1989)
Cena de Veludo Azul (1989)

Da menina do radiador em seu icônico filme de estreia Eraserhead (1977) à família de coelhos de Império dos Sonhos (2006), seu último longa, muito se falou sobre Lynch fazer um cinema onírico, como se produzisse imagens descoladas do mundo real. Se suas obras o são, é porque permitem enxergar além: ver a realidade do sonho e o sonho dentro da realidade, nos conectam com o que há de mais íntimo dentro dos nossos sentimentos e oferecem a possibilidade de contemplar o estranho sem que sintamos necessidade de justificá-lo ou entendê-lo. Assim como no cinema de Jacques Rivette (1928-2016), que após assistir Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer (1992) disse sair do cinema como se estivesse flutuando sobre o solo, trata-se de toda uma obra sobre campos de força, sobre a possibilidade de lidar com as forças polarizantes que influem no nosso cotidiano e nos suspendem entre a vida e a morte.


Cena de Eraserhead (1977)
Cena de Eraserhead (1977)
Cena de Império dos Sonhos (2006)
Cena de Império dos Sonhos (2006)

Não à toa Lynch é considerado um dos cineastas mais importantes de nosso tempo e consegue unir pessoas com gostos tão distintos: disfarçando-se de surrealista ou de artista excêntrico, seus filmes tocam naquilo que há de mais universal da experiência humana e se comunicam diretamente com os sentimentos, em um nível quase irracional. Como entender o que se vai junto com David Lynch? Talvez uma ideia de Hollywood, uma ideia de mundo, uma maneira de se enxergar a realidade e de expressar nossos estranhos desejos. Afinal, um grande artista é aquele capaz de apontar caminhos onde antes não podíamos enxergá-los. Jamais haverá outro Lynch, isto é certo, mas ficamos na esperança de que seus frutos ressoem mais alto que sua ausência.


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