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Canela e Neurose

Foto do escritor: José Anderson PaixãoJosé Anderson Paixão

Caio acaricia minha mão e entramos no bar. Inicialmente sou tomado por uma sensação fúnebre que vai se esvaindo a partir das palpitações de luzes amarelas que invadem o meu campo de visão, o movimento da viscose que adorna os transeuntes. Meu maior desafio durante as horas que irão se seguir é como me imbuir da melhor desenvoltura na frente de estranhos, pessoas da arte. Meu sorriso é calculado, cada palavra é pensada para transmitir perspicácia de modo a impressioná-lo, ele, o Caio.


Eu queria que ele conseguisse adentrar a penumbra que me cerca, premeditar minhas ações e minhas mentiras. Eu também queria ser a pessoa que ele admira pela inalcançabilidade. Eu queria ser possuído e continuar intocável.


A noite é preenchida pelo tilintar de copos, pelas palavras depredadas em meio ao barulho e por uma discussão moral sobre canudos de plástico. Mariana indaga sobre o assunto e é subitamente invadida por um ar atônito; seus argumentos são expostos com acurácia, mas eu a interpreto com exaustão: seu pai explora mão de obra barata enquanto sua filha se alastra em mesas de bar performando uma falsa efervescência. No geral, concordo com ela; afinal, também sou hipócrita e tenho meus desvios morais. A prova viva se materializa nos olhos do Matheus. Eu sabia a profundidade que aqueles olhos adquiriam ao chorar e como o músculo dilatador da pupila abria um túnel preto pelo qual eu não conseguiria mais voltar uma vez que olhasse lá dentro.


Sua mão pendia na borda da cama antes que ele se levantasse para me pedir um último beijo, o último toque de nossas línguas, a última troca de calor por condução. O único dia que ele não me chamou de “meu homem”. Aquele quarto exalava uma mistura de lavanda, canela e neurose. Minhas frases eram interpoladas para ganhar um teor mais bruto; sempre tive a mania de aveludar coisas difíceis de verbalizar. Eu tive que jogar fora tudo o que construímos pois aquele terreno era irregular e por vezes lamacento. Então eu fui ao encontro de um lugar mais sólido e menos suscetível às intempéries das emoções. Matheus quis me levar até em casa, isso não aconteceu pois eu não ia voltar pra casa naquele fim de tarde: eu ia encontrar o Caio. Encontrar o Caio e me perder. Me perder numa nova língua, estudar uma nova etimologia e sentir o pulso de um outro pau, que vertia um líquido transparente assim como os olhos de quem eu deixei pra trás.


Com frequência, faço um jogo de experimentação mental no intuito de garantir maior precisão às minhas memórias. Como arquitetar uma memória se ela pende na imprecisão da linguagem? As palavras estão lá; minhas memórias estão aqui. Entre elas há uma rachadura que não pode se dissolver e, mesmo que a linguagem se molde, se rompa e extravase, o caráter fiel dos acontecimentos jamais poderá ser transplantado. Se perdeu.


Volto ao mundo real quando Caio pergunta se estou bem, se não me sinto desconfortável com a situação. Digo que não. O céu é de um azul forte e impenetrável, o fluxo de carros esmorece com o fim da noite, as folhas caem no rio e seguem o fluxo de suas águas, o piche das paredes se apresenta de maneira tão irregular quanto o meu destino. Olho para o Matheus pela última vez, antes que a fumaça de cigarro deixe o ambiente turvo e eu desvie o olhar para pedir mais um drink.

Sem título, 2023. Izabel Karime

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