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O que o meu olhar encontra

Hannah La Follette Ryan. Reprodução Instagram: @subwayhands
Hannah La Follette Ryan. Reprodução Instagram: @subwayhands

Existe algo mágico na observação das coisas. Por meio delas, é possível transbordar o limite das imagens: o panorama se expande e somos aguçados com o som, o cheiro e o tato.


Não observar significa deixar escapar algum detalhe. A contemporaneidade nos tem levado à não observação ou à observação segmentária: um olhar voltado para imagens e recortes, capturando essências amorfas e superficiais empilhadas em veículos digitais. Deixamos de  percorrer as ruas, de frequentar espaços públicos, de nos importarmos com estranhos. E, com isso, normalizamos as obscenidades do tempo ao não notar.


Cheguei a essa conclusão sentado em um vagão de trem em uma jornada que percorreu a linha 11 da CPTM de ponta a ponta. No início da viagem, a pessoa ao meu lado era um jovem, também na faixa dos 25 anos, que funcionava como uma antítese minha: ele usava boné, roupas demasiadamente largas e acessórios prateados nos entornos do pescoço; eu carregava uma mochila simples e usava camiseta e bermuda em tons cáqui.


Meu foco era a leitura de O uso da foto (2005), livro de memórias escrito por Annie Ernaux e Marc Marie. Concentrava-me nas fotografias que registravam o caráter fantasmagórico dos objetos após um momento íntimo, até que fui interceptado por um ruído que vazava dos fones de ouvido do rapaz: a batida pesada de um funk 130 bpm. Aquele som sobrepunha-se a toda polifonia produzida ali. Ainda que eu não sentisse prazer enquanto ouvia, achava curioso observar os leves movimentos que o jovem esboçava com a cabeça e com as mãos, estes gestos sinalizavam uma espécie de comedimento; decerto aquela música o fazia entrar em um êxtase que só atingiria o ápice por meio da expressividade total do corpo.


Na parte final do vagão, uma moça carregava um bebê no colo; ao seu lado, um jovem de ascendência asiática projetava caretas para levar a criança ao riso. Por  alguns minutos, voltei a ler o livro que mantinha em mãos e, quando voltei a observá-los, o jovem continuava com as expressões, ainda mais ávido que antes. Nem ele nem o bebê se cansavam da alegria, não conseguia identificar se eram parentes ou completos desconhecidos, mas nutria-se uma simpatia e uma comunhão entre os dois que aumentava ao decorrer de cada estação. 


O jovem dos fones de ouvido desceu do trem e o novo ocupante daquele assento passou a ser um homem ornado em roupas sociais e perfume amadeirado. O cheiro do âmbar era quente e inseria-me em uma atmosfera de enjoo; um aplicativo do seu telefone celular disparava mensagens de negócios. Ao seu lado, havia outro homem do qual eu não conseguia obter relances físicos, só fui capaz de ver uma tela em layout dourado e escarlate, com tipografia brilhante em caixa alta: um jogo de apostas. À minha esquerda, uma mulher em pé fincava o olhar em um livro de capa preta, não consegui ler  os dizeres da capa. Não muito distante, outra mulher lia um livro de capa azul que continha a palavra mindset no título.


O trem aumentava a velocidade serpenteando por um túnel de luzes amarelas. Um senhor cedeu lugar para uma mulher de meia idade que usava muletas; os dois estranhos engataram uma conversa sobre o acessório: como são as vivências, como são arrogantes as pessoas, como é difícil trabalhar em hospitais, como é difícil perder tudo, como as coisas estão caras. Ela era uma enfermeira e ele, um motorista. O diálogo era interessante, íntimo: dois amigos por acaso, dois amigos do destino. O trem parou, eles se despediram afetuosamente e ela desceu na penúltima estação. 


As descrições surgem a partir dos sentidos e, assim como a arte, observar também é uma forma de exercitar a humanidade. Nenhuma literatura acontece sem um olhar delicado e disciplinado; nenhum personagem se constrói sem a sensibilidade fluida de um escritor para deixar-se levar nas ondulações dos detalhes. Theodore Decker, protagonista de Donna Tartt em O Pintassilgo (2013), observa estranhos nas ruas e nos metrôs: as mangas dos paletós, os cachorrinhos nos colos, os seus cabelos escuros e, a partir disso, reconstitui as lacunas com a imaginação: o que comiam? Onde moravam? Eram músicos ou acadêmicos?


Nesse sentido, nos colocamos para fora do eu e espiamos o espaço do outro, debruçamo-nos sobre suas manias e seus gostos na tentativa de compreendê-los. Ao chegar na Barra Funda, a estação de destino, fui ao encontro de um amigo. Enquanto caminhávamos, notei o gesto que seus braços produziam: movimentos que se assemelhavam aos de um maestro (ainda que de forma suave). Em casa, pude espiar sua coleção de livros: um amontoado de Shakespeare; O círculo de giz caucasiano, de Brecht; On earth we’re briefly gorgeous, de Ocean Vuong; Orlando de Virginia Woolf. Aquela coleção de livros tentava embeber sentido às suas necessidades pessoais. Observados em conjunto, os livros denotam as necessidades de uma pessoa, de uma cidade, de um país.


No mesmo dia, ele me levou para assistir a uma leitura encenada no Centro MariAntonia. Ao esperar pelo início da sessão, observei ao longe os jovens atores: estavam em uma sala pequena, um cubículo pouco iluminado na base de um prédio brutalista. Eles fumavam e gesticulavam freneticamente com as mãos; acredito que todos ali tinham consciência do nível de atenção que iam receber. Durante a leitura, o elenco era banhado em uma luz cenográfica quente: foi possível ouvir a respiração no silêncio que se estabelecia durante o intermédio entre uma fala e outra; foi possível ouvir detalhadamente o som que o papel produzia ao ser manuseado e quando, improvisadamente, substituíam as palavras.


A medida que escrevo, sou levado a acreditar que o trunfo de observar e ser observado é não notar ser visto, de modo a manter a naturalidade das ações e a materialidade das coisas. Não atuar, como aqueles atores antes de entrar em cena. Me pergunto como sou observado de fora, como as pessoas me veem? Minhas mãos grandes, meus óculos redondos e meus passos rápidos talvez carreguem um tom simbólico para um transeunte que derrame o olhar sobre mim numa primeira e última vez. Talvez eu seja observado por coisas que fujam do meu escopo lógico, pois o meu direcionamento observacional depende do que sou, e sou limitado. 


Poderia tirar conclusões sobre as pessoas que observei e sobre os objetos que encontrei, mas prefiro seguir por outro caminho. É deveras interessante imaginar todos aqueles corpos distintos unidos em um fragmento temporal. É curioso pensar sobre as ações do passado que nos inseriram ali, naquele vagão; e sobre as ações do futuro que levarão à eterna divergência em nossos caminhos. Poderia continuar a devanear, mas, neste instante, me empenho na atividade de prestar atenção; de capturar momentos inúteis: como a languidez de um copo vazio sobre a mesa.

Como o incenso apagado ao lado de um bloco de notas amarelo.


REFERÊNCIAS

BERGER, John. Modos de ver. São Paulo: Editora Fósforo, 2023. 192 p.

ERNAUX, Annie; MARIE, Marc. O uso da foto. São Paulo: Editora Fósforo, 2025. 144 p.

TARTT, Donna. O pintassilgo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 728 p.

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