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Delírio Urbano: dançando o corpo da cidade

Atualizado: 22 de set.

Um ensaio íntimo a partir das pulsações performáticas do coletivo Mover o Cotidiano



Mover o Cotidiano é o nome do nosso coletivo multiartístico. Somos três artistas, eu, Marina Capitulino e Izabel Karime, que pesquisam o gesto ordinário como motor de cena. A sombra e a luz são nosso princípio, o cotidiano é nossa fonte. Nessa performance costuramos vazios com gesto miúdo, deixando que Recife nos puxe pelo braço. Delírio Urbano, ainda ecoando em transformações, põe em jogo bicicleta, escada e cadeiras para torcer rotinas. A trilha é urbana: ruídos, vozes, frevo, coco, brega-funk, brega romântico. Entre improvisação e coreografia, a cidade parece sempre dançar conosco. Entre pausa e movimento, construímos algo, algo que queira nos encantar. Os experimentos desenvolvidos até então foram em performance, videoperformance e fotoperformance em cianotipia.


Há manhãs em que acordo já atravessada pela rua. Não porque meus pés tocaram o asfalto, mas porque o som que chega primeiro é o da cidade. Essa sensação de que o ruído do motor de longe, o freio do ônibus, a conversa na esquina, a chuva forte atacando a janela, o alto-falante do carro vendendo gás, tudo isso chega, quase sempre, primeiro que qualquer pensamento, como comando e lembrete de que viver na cidade grande é viver imerso em ruídos.


O barulho incessante não se apazigua. O corpo delira e responde antes de saber qual será o gesto-reação. Fico percebendo onde começa a pele e onde a cidade insiste em entrar. Essa porosidade parece ser o primeiro território dos dias.


Apoio o pé no chão e o mundo devolve uma vibração: um coro de passos que me precederam, de passos que me acompanham e se colocam comigo, pequenas ondulações que viajam pelo asfalto e tomam o corpo. Tento não caminhar como alguém que percorre um mapa; caminho como quem escreve, um aprendizado que transforma a passagem em experiência estética.


Em ação-reação, cena-contracena, peso-contrapeso, somos três que, por vezes, viram um só tecido. Quando uma ergue o braço, a outra se desloca para rasgar a linha do gesto; quando uma pausa, a outra preenche o silêncio. Há, entre nós, essa malha de pequenos sinais: um afrouxar, apertar, crescer, construir, dividir. A mudança faz mundos de possibilidades.


Recife que eu trago no corpo não tem imagem fixa; se constrói no olhar no olho do coco, na batida contagiante do brega funk, na vertigem e liberdade do frevo. É um Recife que segue mesclando os ritmos, confundindo os sons, criando texturas conhecidas mas pouco comuns. Pede atenção para corresponder.


Firme, circular.

Cortante, retorcido, incisivo.

A inclinar o salto, desafia a gravidade.


A luz revela o foco. A sombra esconde o que continua. Não há ensaio possível para o vivo. É preciso estar inteira para responder ao que não se repete. É aqui que o cotidiano se revela matéria plástica: um ruído que incomoda pode virar impulso. A improvisação não é só estética, o corpo negocia o tempo e o espaço a cada instante.


A bicicleta tem voz e costura margens: encostada, ela chama; em movimento, convoca os olhos a ver um limite, ou abertura. Desenha um espaço imaginário. A bicicleta guarda as ruas, leva meus pés a rodar. Reconheço curvas que ainda não percorri, atalhos que me são oferecidos como segredos.


Ancoragem para o delírio? Trajetórias que não pertencem só a um.


A escada é como vértebra erguida: cada degrau pede uma atenção distinta. Subir exige altura do olhar; descer exige atenção ao peso; sentar é inventar um novo compasso; também o é, imaginar a necessidade de gritar “vai descer, motô”! Uma síncope que muda o andamento do tempo.


Duas cadeiras que a todo momento convidam ao descanso mas que, na verdade, se fazem eixo, criam um ponto íntimo de encontro e princípio. Então, as meninas as separam para a bicicleta rasgar o espaço que havia acabado de criar e, assim, inventam o imprevisível. Se aceitarmos sentar, fazemos pacto com a espera, com o tempo, com o outro. Embora, arrastá-las seja quebrar esse pacto, abrir rastros que não estão ofertados, causar fissura.


Coreografia se faz também no improviso, concorda?

Capoeira, camará.

O som da janela arrastando tem textura que nunca repete sentido: aviso, convite, cenário.

Roda de coco a dançar.

O crec-crec — trrrshhhhh, pequeno movimento que anuncia o fim do improviso. Era apenas um amigo abrindo uma garrafa de vinho e a rolha fez escândalo.


Quando a buzina corta o ar, por um segundo temos a sensação de que a cidade quer impor um compasso abrupto. O trânsito é orquestra de cortes e retomadas, e nossa dança aceita ser interrompida e recomeçar tantas vezes quanto as ondas de ruídos que nos atingem. Há de se ter paciência.


A criança que ainda brinca na rua é raridade que brilha a rotina: seu riso estoura como luz, reconfigura proximidades. A bola entra no gol e o corpo parece que quer entrar no jogo. Será que posso? A presença de quem brinca reaviva possibilidades: o cotidiano, por poucos segundos, se deixa dançar, longe do que é previsível. Tudo explode rapidamente dentro de mim. A pureza das crianças costuma fazer da rua, quintal de sonhos. Será que as ruas ainda as convidam? Tenho dúvidas mas sigo.


Improvisar com o cotidiano é aceitar que o acaso nos dirige tanto quanto nós o dirigimos. Nesse processo, reimaginar faz da cidade protagonista, transformando objetos em partes de um ato performático que nada tem a ver, unicamente, com planejamento. Vai acontecendo em eterno gerundismo. Fazendo a cidade sem a cidade, se preciso for. Escutando essa matéria que pulsa por causa de nós e respondendo com nossos corpos. 


Habitamos em movimento. A cidade se imprime na memória do corpo, que se inscreve no mapa com seus traços e saudades; é processo de corresponder-se, um entrelaçamento vivo e constantemente mutável; como se tudo fosse linha, por vezes pausa, ou pedra… ecoa a voz de Adélia Prado aqui dentro da minha cabeça:


De vez em quando Deus me tira a poesia.

Olho pedra, vejo pedra mesmo.

O mundo, cheio de departamentos,

não é a bola bonita caminhando solta no espaço.

Eu fico feia, olhando espelhos com provocação,

batendo a escova com força nos cabelos,

sujeita à crença em presságios.

[...] O que tem corpo é a alegria.

Só ela fica pendida,

de olhos turvos e boca.

Peito e membros magoados.


Quando me volto para a cidade, falo com ela, grito se for preciso, tenho raiva e amor, um corpo que se magoa e se lembra do sorriso. As palavras dançam comigo. Consegue ouvir? Vai começar o terceiro ato.


“Recife, tu diz que sou louca, fora de controle e tu controla todos os meus sentidos” — enquanto danço, aceito me perder. Aceito os sentidos que a cidade impõe, aceito as perdas e as dádivas. A loucura é insistência em um modo de pertença que não é racional, é sensorial e por isso, delirante. Somos todos restos de delírios mortais. Aqui se faz o reconhecimento de um pacto invisível entre corpo e lugar, entre quem se move e o que dita o movimento.


Entrega: onde o corpo se dobra, se expande, se esconde e reaparece. “Por isso dizem que sou louca, porque tua pele é minha morada e junto a mim me sinto outra” — aceito a loucura da mudança que não exige entendimento, apenas sentimento. Continuo andando, continuo girando, continuo dançando. Paro porque preciso, danço porque vivo.

Queremos, nós três, notar toda fricção: corpo-chão, corpo-cadeira, corpo-escada, corpo-banco, corpo-bicicleta, corpo-som, corpo-luz. Não só nos interessa a evidência heróica do grande gesto, da espetacularização; mas sim a pequeneza do cotidiano que muda o trajeto — aquele mesmo, tedioso e exaustivo, que fazemos de volta pra casa. A cidade é disputa e convivência, e mover o cotidiano é também deslocar ordens, abrir fendas.


A presença é escuta.

A escuta é gesto.

O gesto é argumento.

O que parece repetição não mata a surpresa, pelo contrário: a amplifica.


Mover o cotidiano é mexer nas engrenagens invisíveis do dia: deslocar um olhar, mudar a direção de um passo, interromper um hábito para que algo novo aconteça, aceitar as provocações, ou ativações, de tudo que nos rodeia. É dar ao que é repetido essa chance da surpresa. Mover o cotidiano é ensinar a rua a lembrar seu próprio nome. Esse nome se forma no gesto de cada um. Dance seu nome.


Insistimos em ser muitas, em espalhar pequenas desordens amorosas pela cidade, em forçar brechas para que o cotidiano se comporte de modo inesperado. Não há público imóvel diante de uma cidade que se move a todo momento. O delírio não é fuga da realidade, é mergulho profundo até que as bordas se dissolvam.


Delírio Urbano é a cidade se encolhendo até caber na palma da mão. Até que Recife se reconheça como corpo e dance com todos vocês também. Chamem Recife para dançar. Saiam do comum. Façam mágico o cotidiano.


A cidade mostra seu design, e o corpo é parte dele. A cidade, ao evocar comportamento, potencializa vocabulários do mover. A cidade no nosso foco artístico atual pode ser questionada como um mapa no qual o corpo justapõe o seu e é orientação e acontecimento, um sobrepor de atos e signos, que é desvendado enquanto ocorre e aponta para o movimento como estratégia de permanência. A cidade fixa uma possibilidade de corpo, uma possibilidade de dança. Temos que sofisticar nossa leitura destes mapas para podermos propor questões em diferentes vias de trânsito entre corpo, cidade e dança. (JACQUES E BRITTO em Corpocidade: Discursos e práticas)


Delírio Urbano #2 (2025), Mover o Cotidiano. Foto: Eduardo Romero
Delírio Urbano #2 (2025), Mover o Cotidiano. Foto: Eduardo Romero

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NOTA

Isabel Xará França (bel xará), nascida em 1999 no Rio de Janeiro e naturalizada em Recife, é mestranda em Design e licenciada em Expressão Gráfica pela UFPE. Pesquisa desde 2021 as confluências transdisciplinares entre corpo, geometria, design e tecnologia, investigando o gesto dançado como linguagem visual, pedagógica e artística. Integra o grupo de pesquisa CUIDA - Coletivo de Iniciativas em Design e Antropologia, (depto. de Design da UFPE) e é cofundadora do coletivo multiartístico recifense Mover o Cotidiano (2023-atual). Atua nas áreas de arte-educação, design visual, cultura maker e artes da cena, com experiência em projetos acadêmicos, pedagógicos e independentes. Como artista, mergulha em criações na dança, na música e na poesia, tendo participado de espetáculos, pocket shows, projeto pedagógico e exposições. Na educação, traz práticas integradas de tecnologia, criatividade e arte, com passagem por programas de incentivo à docência da CAPES, pelo FabLab Recife e, desde 2023, como professora no Grupo Gênese de Ensino (GGE).


REFERÊNCIAS

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. Trad. Frederico Bonaldo. São Paulo: Editora G. Gili, 2013.


INGOLD, Tim. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000.


JACQUES, Paulo B.; BRITTO, Flávio D. (Orgs.). Corpocidade: gestos urbanos. Salvador: EDUFBA, 2017.

1 comentário


Nina França
Nina França
11 de set.

muito bom ver coletivos ocupando a cidade <3

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