Ensaio aborda o passado e o presente no longa-metragem Em Trânsito (2018) para analisar a obra do cineasta alemão Christian Petzold
Cena do filme Em Trânsito (Christian Petzold, 2018)
Se há uma imagem que define os filmes de Christian Petzold, esta é a de alguém andando sem rumo, em meio a uma rodovia repleta de automóveis cruzando de lado a lado. Personagens em suspensão, heróis trágicos perdidos em um mundo pós-industrial. São as fronteiras, lojas de conveniência, rodovias e carteiras de identidade que avançam suas tramas: os filmes de Petzold são sempre road movies nos quais não há destino a não ser a estrada, limiar entre os mundos. Melhor cantaria David Byrne (da banda Talking Heads), ao fim de Em Trânsito (Transit, 2018): “We’re on a road to nowhere / Come on inside / Takin’ that ride to nowhere / We’ll take that ride”.
Petzold é o principal expoente da Escola de Berlim, vanguarda cinematográfica que renovou a situação do cinema alemão a partir dos anos 1990, e é também considerado um dos grandes cineastas em atividade. Pode-se argumentar que, desde Barbara (2012), passando por Phoenix (2014) e chegando em Undine (2020), além do recente Afire (Roter Himmel, 2023), seu estilo vem se tornando cada vez mais conciso e potente. Algo permanece, no entanto, de A Segurança Interna (Die innere Sicherheit, 2000) às suas obras mais recentes: esta sensação constante de fuga, de uma narrativa limítrofe, de personagens “em trânsito” — título, aliás, do filme que melhor elucida certos aspectos de sua obra.
Baseado em um romance de Anna Seghers (1900-1983) escrito durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), no longa-metragem Em Trânsito, Georg (interpretado por Frank Rogowski) é um refugiado político alemão que se instala em uma França ocupada pelo nazismo e finge ser um escritor famoso para fugir ao México de navio. Enquanto tenta conseguir seu visto para realizar a viagem, ele é procurado pela polícia, se torna amigo de um garoto refugiado e sua mãe surda, e apaixona-se pela viúva do escritor de quem rouba a identidade (Paula Beer).
Anos 1940? O figurino, a trilha musical e o rigor da decupagem indicam que sim. Ao mesmo tempo, a ambientação em uma Paris contemporânea e a presença constante de carros modernos apontam que talvez esta narrativa não se passe no passado — pelo contrário, Petzold toma o romance histórico e o ambienta em uma espécie de distopia do presente, na qual a ameaça do nazismo se apresenta de forma latente e os traumas jurados como resolvidos não cessam de reaparecer. Há um estranhamento inicial gerado por este anacronismo, que logo dá lugar à reflexão no nível político-ideológico: estamos distantes daquela realidade que prometemos nunca mais repetir?
Georg (Frank Rogowski) e Marie (Paula Beer) em cena do filme Em Trânsito (Christian Petzold, 2018)
A estratégia estética de Petzold, que ele próprio afirma ser “a maneira mais política” de filmar um romance de guerra, está justamente na aproximação entre tempos e espaços. Assim como seus personagens sempre habitam a fronteira entre-mundos, Em Trânsito se encontra também entre diferentes tempos históricos. Não se trata nem da Paris ocupada de 1944 ou da crise dos refugiados de 2018, mas antes de um estado suspenso, um paradoxo de tempos simultâneos, que agrega a experiência histórica e mostra a presença continuada do passado no presente, e presente no passado. Como se a ferida do nazismo fosse uma imagem viva, enterrada sob outras imagens, e o que faltasse era somente alguém para dar a vê-la, encenar com seus fantasmas.
Tudo o que os personagens querem é o “visto de trânsito” para poderem voltar às suas origens. Mas que origem? Se não existem mais campos de concentração nazistas, talvez a própria cidade os seja, cerceada pela força do fascismo. A experiência do refugiado, no entanto, permanece universal: alguém que já não pertence mais ao lugar de origem e nem pertencerá ao ponto de chegada, e está sempre em um estado de indeterminação, em estrada para lugar nenhum. Fugindo de algo que nem se sabe ao certo o que é, seu lugar é o porto, como afirma uma arquiteta alemã refugiada, com quem Georg tem contato no consulado: “portos servem para ser lugares onde as histórias podem ser contadas. As pessoas aqui têm todo direito de contar histórias, e de serem escutadas”.
Sob o véu da ficção, esquecemos muitas vezes de voltar o olhar à realidade e à sua relação intrínseca com as histórias e imagens. Petzold é um grande narrador, é certo, mas apenas porque também entende o momento de romper com a ficção. O automóvel, em seus filmes, e especialmente no de 2018, é esta máquina que parte a narrativa entre dois tempos, um leitmotiv que constantemente irá lembrar que não estamos falando de algo que já morreu. São, talvez, como as laranjas de O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), que prenunciam a morte, ou as corujas de Twin Peaks (1990-1991), presença indicando o perigo que está à espreita. Assim como o helicóptero, que em Afire irá indicar os incêndios florestais e em Dreileben (2011), também de Petzold, a procura da polícia por um assassino em série — elemento que romperá com o idílio da ficção. O carro será, então, a máquina que denota um “isto-é”, que joga o espectador do mundo do filme ao seu próprio mundo. Para citar Hal Foster: o elemento que gera um retorno do real.
Em A Segurança Interna, Petzold retrata o amadurecimento de uma garota de 15 anos, Jeanne, cujos pais são membros de uma facção de esquerda terrorista procurada pela polícia e viajam de carro por Portugal em busca de asilo político. O carro, assim, é também o que leva os personagens de um não-lugar para outro, o que permite o jogo do improviso — experiência fundamental do imigrante, do exilado ou do fugitivo. A figura que caminha pelas beiradas do mundo e que permite escapar de qual for o perigo, como nos ensinou o cinema americano e que o alemão bem aprendeu — apenas observar os filmes realizados por Wim Wenders nos anos 1970 –, ideia que facilmente encontraria sentido no contexto de um país dividido em duas partes (ideologias, culturas, continentes).
Jeanne (Julia Hummer) em cena de A Segurança Interna (Christian Petzold, 2000)
O carro, o navio, o helicóptero e os trens são mais que meios de transporte físicos, são também portais simbólicos que levam os personagens (e espectadores) de uma estrutura de racionalidade a outra. Representam um trauma do real, que não cessa de aparecer e reaparecer: trauma político, mas também romântico e, portanto, essencialmente estético. Um corpo estranho à ficção que aponta para o extracampo, cuja utopia é transcender os limites do filme. Essa estratégia já foi utilizada por cineastas como Jean-Marie Straub (1933-2022) e Danielle Huillet (1936-2006), bem como por Chantal Akerman (1950-2015), em filmes cuja ambientação cênica propõe uma dissonância com o período histórico enunciado pelos discursos. Talvez o pulo do gato de Petzold seja entender que essa ambientação, personificada pelo carro, também pode ser entendida como uma máquina de visão que abre o filme para o campo do real.
Um nome essencial que ainda não foi citado é o principal colaborador nos roteiros de Petzold: Harun Farocki (1944-2014). Em Trânsito, inclusive, foi dedicado ao amigo e mentor de Petzold, e se trata de uma ideia que ele começou a desenvolver antes de morrer, em 2014. Farocki é, por excelência, um cineasta de ensaio, cuja obsessão está em desvelar as máquinas de visão, os dispositivos de vigilância, contrastando mídias atuais para estudar a dialética da imagem técnica, dividida entre um aparelho que suplanta o olhar e um instrumento de controle dos corpos. Segundo Hal Foster em seu livro O que vem depois da farsa? (Ubu Editora, 2021), no qual analisa filmes como Imagens do mundo e inscrição da guerra (1988), Farocki busca o significado imerso das imagens a partir da ideia de que o advento do cinema mudou a operação do olhar e nossa relação com o mundo. Deste modo, ele nos lembra constantemente que a guerra não acabou e, mais do que isso, que agora ela está enraizada no campo das imagens.
O que Petzold deriva de Farocki? Embora não seja a abordagem do ensaio e da releitura a partir do arquivo, certamente há uma similaridade na maneira como os cineastas entendem o papel das imagens no mundo contemporâneo e a função da ficção. Nos filmes de Petzold até Em Trânsito, é comum a onipresença dos dispositivos, em particular de câmeras de vigilância — mais um elemento que aponta para o perigo e para a necessidade de fuga de seus personagens. Também há uma correlação na maneira como os cineastas concebem a história e interpretam a imagem como uma arqueologia de fantasmas, que colocam em cena a microfísica do poder, reinterpretam o mundo mostrando o contemporâneo como um mosaico reconstituído da violência do passado. Se não é, como Farocki o faz, pelo caminho da imagem de arquivo, Petzold o realiza por meio da encenação: daí seu inerente classicismo.
Os filmes de Petzold, portanto, são permeados por imagens de duplos, por crises de identidade e falsificações, por almas reencarnadas em corpos estranhos — onde sua herança hitchcockiana se faz mais evidente; boa parte de seus filmes, inclusive, pode ser entendida como refilmagem de Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock (1899-1980). Petzold entende que essa reencenação de si, quando repetida, instala seus personagens em um campo de indeterminação entre a identidade original e a do hóspede. Como no momento de Em Trânsito em que, personificando um escritor, Georg é perguntado qual foi a última coisa que escreveu. Sua resposta define o que o filme veio a dizer:
“Um homem morreu. Ele deve ser registrado no inferno. Ele espera em frente de uma grande porta. Ele espera um dia, dois. Ele espera semanas. Meses. Então, anos. Finalmente, outro homem passa através dele. O homem esperando lhe pergunta: ‘talvez você possa me ajudar, eu preciso entrar no inferno’. O outro homem olha para ele de baixo para cima, e diz: ‘mas senhor, este é o inferno’.”
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Afire, de Christian Petzold, estreou no circuito comercial brasileiro em novembro de 2023. Fica aqui a recomendação para assisti-lo e ler esta entrevista realizada, em duas partes, por Cauê Dias Baptista para a newsletter Boletins:
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