Luca Scupino homenageia e relembra o legado de Alain Delon e Gena Rowlands
Enquanto o Brasil chorava a morte de Silvio Santos durante o final de semana de 17 de agosto, o mundo do cinema perdeu dois de seus maiores atores: a estadunidense Gena Rowlands (1930-2024) e o franco-suíço Alain Delon (1935-2024) — intérpretes que, por mais diferentes que fossem, elevaram a um ponto limite a potência das artes dramáticas e encarnaram os cinemas de suas épocas como nenhum outro.
É triste que a primeira tenha sido lembrada na mídia unicamente por sua participação no romance Diário de uma Paixão (The Notebook, 2004), dirigido por seu filho Nick Cassavetes – quando é justamente na obra do patriarca da família, John Cassavetes, considerado também o “pai do cinema independente americano”, que Gena Rowlands se consagrou como uma lenda da atuação. De Uma Mulher Sob a Influência (A Woman Under the Influence, 1974) a Noite de Estreia (Opening Night, 1977) e Gloria (1980), Rowlands sempre trabalhou no absoluto limite entre a sutileza e o exagero. Seu retrato de mulheres modernas, levadas a situações emocionais extremas pelas circunstâncias, encontrou um casamento perfeito com a estética improvisacional de Cassavetes, que soube fazer de seu rosto “a melhor locação do mundo”.
No filme de 1980, Rowlands interpreta Gloria, uma mulher de meia-idade que se vê obrigada a cuidar de um garoto órfão porto-riquenho, que teve a família assassinada por um grupo mafioso ligado a um ex-namorado da protagonista. O filme é uma espécie de junção de filmes policiais como os de Richard Fleischer (1917-2006) com a história arquetípica de um adulto desajustado que deve cuidar de uma criança que o ensina a viver, como em Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974), de Wim Wenders.
Mas, claro, com a energia crua de Rowlands, que unida à câmera enérgica de Cassavetes consegue impor sua presença perseguindo mafiosos e segurando uma arma em cada mão enquanto se equilibra em um salto alto. Talvez um dos papeis mais representativos de sua carreira, que mostra a enorme variedade da atriz em comparação às suas interpretações mais introspectivas — como a que vemos em A Outra (Another Woman, 1988), filme subestimado de Woody Allen no qual Rowlands interpreta uma professora de filosofia em crise de meia idade, que desenvolve uma amizade com uma mulher mais jovem e grávida, interpretada por Mia Farrow. Sua solidão preenche a tela com uma melancolia singular, e nos faz lembrar do grande sonho que pode ser uma vida passando: “me pergunto se uma memória é algo que você tem ou algo que você perdeu.”
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Desde boatos sobre uma possível eutanásia, desmentidos pela família do ator em 2023, o mundo já se preparava para se despedir de Alain Delon. Curiosamente, em seus filmes, a morte sempre pareceu uma companheira fiel, refletida nos profundos olhos azuis daquele que foi, em seu tempo, o homem mais lindo do mundo. “Não há solidão mais profunda que aquela de um samurai. A não ser aquela de um tigre na selva, talvez”, diz a epígrafe de O Samurai (Le Samouraï, 1967), de Jean Pierre Melville. De Visconti a Godard, de Antonioni a Melville, Zurlini a Losey, Delon sempre se manteve fiel a seu estilo, transitando de um personagem a outro do cinema moderno com uma presença singular, que parecia remanescente do star system de Hollywood na década de 1940.
Em nenhum filme a solidão lupina de Delon foi tão bem capturada quanto em A primeira noite de tranquilidade (La Prima Notte di Quiete, 1977), de Valerio Zurlini. Nele, Delon interpreta um poeta e professor de filosofia que vive em um casamento infeliz; após começar a dar aulas como substituto em uma faculdade italiana, ele se vê apaixonado por uma de suas alunas. Delon mostra que uma boa atuação não é aquela em que tudo se evidencia facilmente, mas uma em que se escondem sentimentos, pensamentos e pulsões por trás dos olhos do intérprete. Nunca o cinema foi tão forte quanto na cena em que o personagem de Delon observa a aluna Vanina dançando em uma festa; cujo rigor em seu jogo de luz e sombra chega a lembrar a obra de Goethe, citado por Delon na frase que dá título ao filme: a morte é, de fato, a primeira noite de tranquilidade de um homem.
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