De Fernanda Maia, Lembro todo dia de você busca compreender como os relacionamentos moldam o indivíduo
Lembro todo dia de você é um musical brasileiro escrito por Fernanda Maia em colaboração com Rafa Miranda, que compôs a música. A montagem dessa peça, realizada pelo Núcleo Experimental, teve sua estreia em 18 de maio de 2017 no CCBB sob a direção de Zé Henrique de Paula.
O musical conta a história de Thiago, um rapaz gay em seus vinte e poucos anos que passa a viver com o vírus HIV. O ponto de partida da narrativa se dá com a tentativa de Thiago em se reconectar com Julio, um ex-namorado a quem ele amou muito. A partir daí o espetáculo irá explorar as relações do jovem com sua família, sua melhor amiga e seus ex-namorados. O musical possui sete atores em cena — cinco deles desempenham dois papéis ao longo da narrativa. Em vez de retratar a jornada de seu protagonista, Lembro todo dia de você é uma obra de estudo de personagem.
Elenco original de Lembro todo dia de você em apresentação no teatro do CCBB-SP em maio de 2017. (Imagem: Giovana Cirne/Núcleo Experimental)
De forma a analisar esse musical, é preciso ter em vista que sua dramaturgia divide a peça em dois atos distintos. O primeiro parece seguir uma linha dramatúrgica mais “tradicional” (para ser exato, mais familiar ao público comum), enquanto o segundo parece ser fundamentado em uma estrutura de tribunal.
A revelação de que o segundo ato se passa inteiro dentro da psique de Thiago não só muda a maneira como compreendemos seu desenrolar, como também acaba por estilhaçar todo o primeiro ato em peças de um quebra-cabeça – não é à toa que a cena que finaliza o primeiro ato possui um jogo de Tetris aparecendo em projeções no cenário.
Ou seja, nos é revelado que não apenas o segundo ato se passou dentro da cabeça de Thiago, como também o primeiro ato em sua integridade ocorreu enquanto o jovem estava no divã de seu Terapeuta – é este o momento que suas lembranças emergem (como o título da obra indica). De forma a construir o reino da memória, o primeiro ato tem como estrutura o “drama de estação”, também chamado de “drama do Eu”, uma forma dramatúrgica desenvolvida por August Strindberg (1849–1912).
Strindberg acreditava não ser possível aos autores dar conta da vida de outras pessoas ao retratá-las na ficção, jamais saberíamos quais são as verdadeiras intenções por trás das ações do Outro. Assim, ele afirmava que “só se conhece uma vida, a sua própria”. O drama de estação nada mais é do que a maneira por meio da qual o teatro daria conta de revelar ao espectador toda a vida interna do protagonista de uma peça, sendo uma espécie de primo-irmão do romance psicológico.
De forma a realizar esta empreitada, o “drama de estação” leva à substituição da unidade da ação pela unidade do Eu. Ou seja: as cenas não aparecem em uma relação de causa e efeito como em um drama tradicional onde a primeira cena traz a semente para a segunda e assim por diante; aqui, cada momento da peça aparece como que pedras isoladas, sendo perfeitamente possível destacá-las da narrativa. Por exemplo, é perfeitamente possível apresentar as cenas de Thiago e sua Mãe de forma isolada, sem que seu sentido e a compreensão do público sejam prejudicados.
As categorias de unidade de tempo e lugar acabam caducando no drama de Strindberg, uma vez que estão sujeitas à memória inconstante do ser humano. O mesmo é visto em Lembro…: A cena em que Thiago revela a Paulo que vive com o vírus HIV se torna uma cena dupla a partir do momento em que Maristela entra para confrontar seu melhor amigo Thiago por ele não ter lhe contado sobre seu diagnóstico soropositivo; por mais que o espectador saiba que ambos os momentos aconteceram separadamente, não é possível saber se a distância entre cada momento foi de minutos ou uma questão de meses. Tentar montar uma cronologia de Lembro… é um trabalho meticuloso - podemos apenas inferir a idade de Thiago a partir de pequenos comentários dos personagens.
Também há momentos de completo delírio. Há uma cena em que Thiago se imagina confrontando o Homem de Barba por acreditar que o ex-namorado foi quem lhe passou o HIV (“Infecto pas-de-deux”). Tanto Thiago quanto Julio afirmam que, nos primeiros estágios do tratamento para o HIV, o paciente acaba sofrendo de delírios e apagões de memória. Neste sentido, a peça Lembro… é herdeira de Vestido de Noiva (1943), de Nelson Rodrigues (1912–1980), uma obra que mescla realidade, memória e delírios.
O “drama de estação” é uma forma que isola e intensifica seu personagem central, que deve ser distinguido com máxima clareza dos personagens que ele encontra em seu caminho. Os coadjuvantes só aparecem sob a perspectiva do “herói” e em relação a ele, nunca de forma individual. Thiago é quem guia a história de Lembro todo dia de você. Por mais que Julio pareça ter uma carga significativa na história, sua participação no primeiro ato é mínima, aparecendo apenas no começo dele; sua única função é ser a força que obriga Thiago a se acertar psicologicamente com seus relacionamentos. Os demais personagens também aparecem apenas para demonstrar como Thiago se tornou a pessoa que vemos no segundo ato, eles desaparecem assim que a ilustração de seu relacionamento com o herói é finalizada.
Pier Marchi (Julio) e Davi Tápias (Thiago) em apresentação no teatro do Núcleo Experimental em agosto de 2017. (Imagem: Giovana Cirne/Núcleo Experimental)
Lembro todo dia de você, então, é essencialmente uma peça narrada em primeira pessoa. As implicações disso é que jamais teremos uma visão objetiva dos fatos apresentados, uma vez que tudo o que nos foi apresentado passou pelo crivo da mente de Thiago. Nenhum narrador em primeira pessoa é confiável: seja porque ele tem objetivos próprios a atingir com sua narrativa (como é o caso de Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis), seja porque a memória humana não é confiável (como é o caso de Estevão em O Jardim do Diabo, de Luís Fernando Veríssimo). O segundo caso é justamente o desta peça: como ter certeza de que o que estamos vendo é verídico quando o próprio protagonista afirma que sofre com delírios e não saber quem é? Como ter uma noção do mundo objetivo, sendo que a narrativa inteira ocorre dentro da psique do protagonista?
Assim, jamais teremos noção de quem é Maristela, quem é Julio ou Paulo, ou mesmo todos os outros personagens cujos nomes nos são negados. O próprio Homem de Barba nos alerta: “Olha só: Eu não sou aquele cara do primeiro ato, está bom? Aquilo é uma invenção da sua cabeça, uma caricatura que você fez. Você me pintou como um vigarista ridículo que canta bolerão de novela mexicana.” Como saber quem de fato era o Homem de Barba? A situação se complica a partir do momento em que este personagem se torna a mesma figura que o padrasto de Thiago.
O papel das projeções, então, é uma tentativa de explicar a maneira com a qual Thiago se relaciona com o Outro. O ser humano espelha suas paixões, seus afetos: ele olha para o Outro e espelha nele todos os seus desejos e vontades, isso pode fazer com que ele se apaixone pelo seu próprio desejo. São nossos desejos que moldam quem nós realmente somos.
Se por um lado, não podemos saber como de fato as coisas aconteceram e também não temos como saber quem são os outros personagens, por outro lado o personagem de Thiago se apresenta diante do público como um livro aberto: a cada página que viramos, a cada cena que muda, uma nova camada nos é revelada.
Davi Tápias (Thiago) e Anna Toledo (Mãe/Médica) apresentando o número “Não Chora”.
(Imagem: Giovana Cirne/Núcleo Experimental)
Thiago sofre com a sensação de solidão, resultado do abandono de seu pai. Este relacionamento molda a maneira como ele gerencia todos os outros: Thiago deixa a sua mãe e todos os seus ex-namorados. O tempo todo ele se vê como a vítima da história e esta imagem que ele tem de si se agrava com o advento do HIV: a infecção seria uma maldição jogada por sua mãe, e uma punição infligida por seu padrasto homofóbico, ambos representantes de uma sociedade heteronormativa.
É comum que muitas pessoas se sintam definidas pela soropositividade. Nos anos 1980, mesmo quem não tivesse contraído o vírus do HIV, sentia como se a infecção fosse um fato dado, destinado a acontecer a qualquer momento. É uma infecção que definiu não só a maneira como a sociedade via os homens homoafetivos, como também definiu a maneira como os gays viam a si mesmos.
Esta sensação do vírus ser o definidor de uma pessoa parece aparecer na canção “Existe um outro de você em mim”, quando Thiago afirma que para este outro, esta outra parte, que “não tem cura”. Ela ocorre instantes após Thiago transar sem camisinha com Julio, momento em que ele imagina que infectou o namorado com o vírus do HIV. Este momento acaba funcionando como um gatilho que leva Thiago ao segundo ato da peça, ao acerto de contas consigo mesmo.
No entanto, após Thiago descobrir que Julio continuou lhe amando mesmo após ter sido infectado pelo namorado e que o término do relacionamento ocorreu porque Thiago o havia abandonado, nosso herói finalmente faz as pazes consigo mesmo e é capaz de compreender que as pessoas que ele encontra em sua vida sempre estarão com ele: “são partes, pedaços de afeto que andam comigo” (“Existe parte de você em mim”).
Por meio de um estudo de personagem, pontuando a maneira como o herói se relaciona com outras pessoas, o musical Lembro todo dia de você tem como objetivo destacar a necessidade do afeto ao lidar com outras pessoas. Ele nos afirma que, na verdade, o que nos define são nossas relações pessoais e como lidamos com elas.
Elenco do musical em cena. Da esquerda para a direita: Bruna Guerin (Maristela/Enfermeira), Zé Henrique de Paula (Padrasto/Homem de Barba), Fabio Redkowicz (Pai/Paulo) e Anna Toledo. (Imagem: Giovana Cirne/Núcleo Experimental)
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REFERÊNCIA
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880–1950]. 1ª Edição. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. 184 p.
NOTA
Esse texto foi publicado originalmente no blog pessoal de pedro a duArte em 9 de março de 2019, em ocasião da segunda temporada do espetáculo realizada no teatro do Núcleo Experimental.
SERVIÇO
Lembro todo dia de você — Teatro do Núcleo Experimental (R. Barra Funda, 637 - Barra Funda, SP)
Temporada: 8 (sexta) a 11 de dezembro (segunda) / Sexta, sábado e segunda às 21h, domingo às 19h.
Ingressos: a temporada está esgotada; haverá fila de espera nos dias de apresentação.
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