Entrelinhas
- Harllan Tavares
- 3 de mai.
- 5 min de leitura
Atualizado: 7 de mai.
Observações sobre a expressão corporal em Petra (2024) e Bolero (2025)
Já estava no meu assento, no Teatro Sérgio Cardoso, há um bom tempo antes da peça começar quando percebi uma mulher andando entre o público. Logo, prestei atenção à sua postura e senti uma certa energia aplicada a ela, algo que, refletindo depois, entendi como “tônus”. Ela caminhava de forma ereta, com um ritmo preciso nos passos. Pensei que talvez fosse uma atriz, mas não tinha certeza. Ela circulava entre as cadeiras do teatro desde o primeiro sinal e, ocasionalmente, parava, olhando ao redor como se procurasse alguém. Isso se repetiu por bastante tempo, até que ela se dirigiu ao palco, sentou-se na beira e fez um “três” com os dedos da mão. Em seguida, tocaram os três sinais e a peça começou. Foi nesse momento que percebi a diferença que o tônus causa na presença cênica. Pude notar a distinção entre o corpo em cena e o corpo cotidiano. Mesmo sem saber ao certo se ela era uma atriz, sua postura demonstrava uma energia diferente dos demais, o que me fez questionar sua presença ali.
Quando Petra começa, Marlene (personagem interpretada por Lindsay Castro Lima, atriz da qual me referi anteriormente) acorda a protagonista (interpretada por Bete Coelho), sem dizer uma única palavra – a personagem não tem fala alguma durante toda a peça. Petra é extremamente dependente de sua criada, Marlene, que a desperta nessa cena inicial. Logo de cara, percebo um contraste marcante na linguagem corporal das duas: Marlene se movimenta com precisão e rapidez, quase de maneira metódica. Seus gestos não possuem leveza, mas são sempre direcionados e intencionais. Já Petra, nesse momento, apresenta movimentos lentos, leves e vagarosos, sua voz é arrastada e dramática.
Enquanto escrevo e analiso essas observações, noto que a expressão corporal de cada personagem conta um pouco de sua história, revela a natureza e motivo de cada personagem e nos situa na realidade encenada. Marlene, por ser uma criada devota a Petra, demonstra movimentos tensos, rápidos e precisos, que evidenciam sua busca pela aprovação de sua empregadora. Em contraste, Petra, estilista de grande sucesso financeiro e profissional, vive uma vida abastada e é cuidada por Marlene em quase todos os aspectos de sua vida, por isso, seus movimentos são relaxados e vagarosos.
Conforme a peça se desenrola, Petra se envolve em um relacionamento amoroso não correspondido com Karin (Luiza Curvo). Nessas cenas, ela expressa raiva e tristeza, e sua postura corporal muda completamente: os ombros se contraem, o peito se fecha e o olhar se torna cabisbaixo. Seus passos e seu corpo ficam pesados, como se caminhar ou se sustentar fosse um esforço exaustivo. A sensação transmitida é de embriaguez, mas no pior sentido. Seus movimentos, que antes eram simplesmente vagarosos, tornam-se indecisos, ora explosivos e agressivos, expressando raiva e força, ora lentos e desesperançosos, revelando tristeza e fraqueza. Essa oscilação de sentimentos se torna especialmente nítida após Karin, seu amor não correspondido, abandoná-la. Essa “bipolaridade” é evidente tanto na expressão corporal quanto nas falas de Petra, integrando a narrativa e a expressão corporal na cena, proporcionando coesão e veracidade à obra.

No dia seguinte, fui ao MASP assistir o espetáculo da companhia de dança Studio3, intitulado Bolero. O espetáculo foi encenado naquela data como parte das comemorações do aniversário da cidade. A coreografia e a direção artística era assinada por Anselmo Zolla, enquanto a concepção e a direção cênica era de Jorge Takla.
O palco possui várias plataformas circulares, e os dezesseis dançarinos se juntam em uma delas, ficando tão próximos uns dos outros que suas silhuetas se misturam. Seus movimentos criam formas inesperadas, quase como se os corpos perdessem sua individualidade para se transformar em algo novo, criado em conjunto. Em determinado momento, todos levantam as mãos e mexem os dedos em sincronia, criando um efeito visual abstrato.
Aos poucos, um por um, cada dançarino é expelido dessa roda e se desloca para outra plataforma. Lá, eles começam a marcar o ritmo da composição Bolero (1928), de Maurice Ravel (1875-1937), batendo no chão ou no próprio corpo. Com o tempo, todos passam a participar desse som, cada um produzindo um ritmo e um timbre diferente, construindo juntos uma força sonora intensa. Nesse momento, um casal de dançarinos inicia uma coreografia, enquanto os demais continuam a percussão corporal. Em seguida, a música de Ravel começa a tocar por completo, e todos entram na dança, movimentando-se pelo palco inteiro e alternando entre coreografias solo e com duplas. Percebo que eles ocupam o espaço de maneira equilibrada, sem que nenhuma área pareça excessivamente cheia ou vazia.
Ao longo do espetáculo, percebo como o corpo na dança é utilizado de maneira diferente do que no teatro. Aqui, a expressão corporal não está necessariamente atrelada a uma narrativa linear, mas sim a uma sensação, uma emoção mais abstrata. Os dançarinos se contorcem e assumem formas que eu nunca imaginaria um corpo humano assumir. Isso acontece, acredito, porque a dança tem um contexto diferente: enquanto no teatro o corpo expressa o significado contextual de uma história que está sendo contada, na dança ele se relaciona diretamente com a música, reagindo e respondendo ao som por meio do movimento. A dança é mais abstrata nesse sentido, mas extremamente expressiva, assim como a própria música. Muitas vezes, não é possível descrever exatamente o que está acontecendo no espetáculo, mas é fácil perceber seu tom emocional: se é triste, energético, feliz ou melancólico. Além disso, os corpos dos dançarinos sempre parecem estar em sintonia com o som. Mesmo quando estão separados, respondem gestualmente ao que se escuta. Por exemplo, quando uma nota aguda se destaca, algum dançarino reage a ela, executando um movimento corporal que claramente funciona como uma resposta ao som.
Tanto na dança quanto no teatro, o corpo é um instrumento essencial de comunicação, mas cada linguagem se utiliza dele de maneira distinta. No teatro, a expressão corporal está diretamente ligada à construção de personagens e à narrativa, ajudando a transmitir intenções, emoções e relações entre os elementos em cena. Já na dança, o corpo se liberta da necessidade de contar uma história linear e se torna, muitas vezes, um veículo para sensações e abstrações, dialogando diretamente com a música e explorando formas de expressá-la de maneira corporal e visual. Isso é interessante, pois, já que não podemos ver a música de maneira concreta, existe uma grande liberdade criativa ao traduzi-la por meio do movimento. No entanto, apesar dessas diferenças, ambas as artes compartilham a capacidade de transmitir sentimentos e provocar reflexão, sem a necessidade da palavra falada. De qualquer forma, seja no meio teatral ou na cena dançada, a presença, o tônus e a consciência corporal são habilidades fundamentais que permitem ao corpo se expressar de maneira consciente, fazendo com que ele se torne parte integrante e coerente da obra.

*Petra, de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), esteve em cartaz de 02 a 30 de março de 2025 no Teatro Sérgio Cardoso. Produzido pela Cia.BR116, o espetáculo estreou em 15 de julho de 2024 no Teatro Cacilda Becker, onde permaneceu em cartaz até 07 de agosto daquele ano.
*Bolero, espetáculo da Studio3 Cia. de Dança, foi apresentado nos dias 28 e 29 de março no MASP.
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NOTA
Este texto faz parte de um especial sobre As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. O conjunto inclui: As Personificações de Petra von Kant, de Pedro A. Duarte; e Casa de Bonecas, de Luca Scupino.
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