Galérica promove retrospectiva (de algumas) das peças teatrais que estiveram em cartaz na cidade de São Paulo durante o ano de 2023
De acordo com o Observatório Cidadão Nossa São Paulo, a cidade de São Paulo (SP) possuía um total de 294 teatros no ano de 2017. É possível supor que o número, atualmente, seja bem maior, levando em consideração que a cada ano novos espaços culturais são abertos por companhias e grupos pequenos - sem falar na possibilidade de utilizar parques e ruas como espaços de apresentação. Com tantas salas espalhadas pela capital, é bem possível que em um único final de semana ofereça aos moradores e turistas centenas de peças em cartaz - tornando praticamente impossível a tarefa de assistir a todos os espetáculos em cartaz.
Mas eu até tento. Neste ano assisti a um total de 60 espetáculos teatrais, entre musicais, óperas, monólogos e leituras dramáticas; de grandes produções a peças feitas de maneira completamente independente. Para encerrar o ano de 2023, ofereço aos leitores da Galérica uma retrospectiva panorâmica com os espetáculos que mais chamaram a minha atenção como uma maneira de celebrar esta forma de arte milenar.
Confira a seguir alguns destaques do ano de 2023 (em ordem alfabética).
PEÇAS TEATRAIS
Amadeo (2012), de Côme de Bellescize
Nesta peça francesa dirigida por Nelson Baskerville, Thalles Cabral interpreta um jovem apaixonado por corridas automobilísticas. Após sofrer um acidente de carro que o deixa tetraplégico, os sonhos de Amadeo para se tornar um piloto são soterrados. A partir deste incidente, a peça se divide entre o plano da realidade (no qual a mãe de Amadeo, sua namorada e Thomas tentam lidar com a nova condição do jovem) e o plano mental de Amadeo (no qual o garoto precisa decidir se irá permanecer vivo). Ao ser capaz de se comunicar utilizando um controle remoto controlado por seu dedão, o garoto pede pelo suicídio assitido. Esteve em cartaz de 10 de março a 28 de maio no Tucarena.
Ana Lívia (2023), de Caetano W. Galindo [Cia.Br116 - Teatrofilme]
Duas atrizes já idosas tentam dialogar. Enquanto Ana precisa informar que sente estar morrendo, Lívia a impede constantemente com a notícia de que irá interpretar um novo solo. Sob a direção de Daniela Thomas, as atrizes Bete Coelho e Georgette Fadel interpretam, respectivamente, as duas atrizes - que podem ser irmãs, que podem ser a mesma pessoa ou que podem ser personagens que se rebelam contra seu dramaturgo. A peça caminha por um ambiente ambíguo no qual as memórias das personagens se entrelaçam; na qual traumas do passado voltam à tona e procuram ser resolvidos; e no qual a memória começa a se desfazer.
É sempre uma sorte grande para o público assistir três atrizes veteranas (em algumas sessões, Georgette foi substituída por Iara Jamra) que dedicaram suas vidas ao teatro e, hoje, tem pleno domínio de sua técnica.
Esteve em cartaz de 10 de novembro a 17 de dezembro no Teatro Anchieta do Sesc Consolação.
Ana Lívia (Imagem: Matheus José Maria/Sesc Consolação)
O Avesso da Pele (2023), de Beatriz Barros e Vitor Britto a partir do livro de Jeferson Tenório [Coletivo Ocutá]
Em 2 de março, estreou a adaptação teatral do livro O Avesso da Pele (2020), escrito por Jefferson Tenório, realizada pelo Coletivo Ocutá. Em cena, quatro homens negros contam a história de um rapaz que busca reviver a lembrança de seu pai. Sob a direção de Beatriz Barros, eles se dividem entre os diversos personagens da história ao mesmo tempo que refletem sobre masculinidade e negritude, sobre a violência policial e racismo, além do poder de uma educação transformadora. O coletivo de artistas desafia a plateia a confrontar suas noções sobre o tema, ao mesmo tempo que cativam os espectadores com uma atuação carismática.
A peça fez sua temporada de estreia de 2 de março a 2 de abril no Sesc Paulista. Ao longo do ano foi apresentada no Galpão Folias e no Teatro da USP; fizeram uma temporada breve no Centro Cultural SP, ao mesmo tempo em que estavam em cartaz no Rio de Janeiro; e concluíram o ano apresentando-se no Theatro Municipal em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.
Banco dos Sonhos (2023), de Kiko Marques [Velha Companhia]
O texto de Banco dos Sonhos foi escrito e dirigido por Kiko Marques em comemoração ao vigésimo aniversário da Velha Companhia, fundada por ele ao lado de Virgínia Buckowski e Alejandra Sampaio em 2003. Uma atriz (interpretada por Alejandra) é atropelada e vê sua vida passar diante dos seus olhos ao mesmo tempo em que uma entidade chamada Enoque (Virgínia) vem lhe fazer uma cobrança: a atriz deve pagar a um Banco por todos os sonhos que ela teve em vida, fabricados com esmero por aquela instituição.
Ainda que reflita de maneira crítica sobre a uberização das profissões, a especulação imobiliária desenfreada vivida por São Paulo e como esses movimentos destroem as memórias (e identidades) dos habitantes da metrópole, Banco dos Sonhos consegue ser uma experiência divertida, recheada de momentos de humor, e até esperançosa.
Esteve em cartaz de 2 de março a 2 de abril no Sesc Pompéia. Além disso, foi apresentada no 7º Festeju, festival de teatro de Jundiaí (SP), e foi uma das peças de abertura do 17º Feverestival, festival de teatro de Campinas (SP).
Banco dos Sonhos (Imagem: RebecaFigueiredo/Sesc Pompeia)
Denise (2023), de Fernanda Maia [Núcleo Experimental]
Conhecida pela direção musical em diversos musicais (de grande porte ou até independentes) e pela dramaturgia de musicais premiados como Brenda Lee e o Palácio das Princesas (2021/2022) e Lembro Todo Dia de Você (2017), Fernanda Maia também é atriz. Em setembro, ela retornou aos palcos com Denise, solo escrito por ela, no qual ela interpreta três gerações de mulheres sob a direção de Zé Henrique de Paula.
A história se inicia a partir do ponto de vista de Nina, uma mulher de meia idade que tem dificuldades de se comunicar com sua filha; a jovem havia passado por um episódio grave de depressão em anos anteriores. O cotidiano de Nina sai dos eixos a partir do momento em que precisa morar com sua mãe, uma senhora que sofre de Alzheimer. A partir do relacionamento dessas mulheres, Denise investiga a força do afeto nos laços familiares ao lidar com traumas passados e presentes.
Além da sensibilidade do texto, vale destacar a atuação de Fernanda, que deu vida a três personagens diferentes ao esculpir cuidadosamente os trejeitos, personalidade e temperamento emocional de cada uma delas.
Denise esteve em cartaz de 1 de setembro a 2 de outubro no teatro do Núcleo Experimental.
Denise (Imagem: Laerte Késsimos/Núcleo Experimental)
Dos Prazeres (2020), de Maristela Chelala e Ivan Marsiglia a partir de um conto de Gabriel García Marques
Após um sonho premonitório, María dos Prazeres, uma imigrante brasileira de 76 anos que vive em Barcelona, dá início aos preparativos do seu funeral. Ao mesmo tempo que interpreta o texto do conto de Gabriel García Márquez (1927-2014), Maristela Chelala revisita suas memórias de infância para falar sobre o falecimento de seus pais, sua carreira como atriz em São Paulo e também como se deu a criação do próprio espetáculo que o público assiste.
Sob a direção de Ivan Andrade, a atriz brinca com diversos elementos cênicos transformando uma penteadeira em uma tumba, e a tumba numa mesa de jantar ou uma peruca chanel em um cachorrinho. Conforme María planeja seu funeral, mas segue viva por anos a fio aguardando a morte, Maristela vê seu jogo cênico se desmontando diante de si e perdendo o controle de seu jogo lúdico. Conforme a ficção e a realidade se misturam, María-Maristela vivem uma jornada de aprendizado para enfrentar a vida que se apresenta diante delas.
Dos Prazeres esteve em cartaz de 04 a 27 de agosto no mezanino do SESI-Paulista e também cumpriu foi apresentada na mostra Segundas de Solo realizadas pelO Andar durante o mês de setembro.
Dos Prazeres (Imagem: Ligia Jardim)
Guará Vermelha (2023), de Fabiana Vasconcelos e Cia. do Tijolo a partir do livro de Maria Valéria Rezende
Uma companhia teatral decide adaptar para os palcos o livro O Vôo da Guará Vermelha (2005), de Maria Valéria Rezende, que conta a história de amor entre Rosálio (Rodrigo Mercadante), um pedreiro analfabeto que sonha em se tornar escritor e contador de história, e Irene (Karen Menatti), uma prostituta cuja saúde está debilitada após ter contraído o HIV. Durante 23 dias, Irene ensina Rosálio a ler, enquanto ele lhe oferece conforto e as histórias que conhece. Em meio a isso, a companhia teatral conta sobre sua relação com o teatro e com a educação popular - uma teia de histórias se enreda e desenreda enquanto o público é convidado a tomar as rédeas do tempo que tem em suas mãos.
Guará Vermelha esteve em cartaz de 29 de setembro a 29 de outubro no Sesc Paulista.
Guará Vermelha (Imagem: Divulgação/CiaDoTijolo)
A Herança (The Inheritance, 2019), de Matthew Lopez
A primeira vista, A Herança parece impor um desafio a seus espectadores: ao todo são seis horas de peças divididas em dois dias de apresentações; cada parte possui três horas de duração (separadas por dois intervalos). Passado o susto inicial, o público acompanha a história de Eric Glass (Bruno Fagundes), um homem gay sonhador, e de seu grupo de amigos - a rotina de Eric é perturbada com a descoberta que irá perder seu apartamento no centro de Manhattan e com a chegada de Adam (André Torquato, um jovem atraente que chama a atenção de seu namorado Toby Darling (Rafael Primot).
O texto do dramaturgo estadunidense Matthew Lopez (também diretor do filme Vermelho, Branco e Sangue Azul) faz parecer que estamos maratonando a uma série de sitcom recheada tanto de momentos divertidos quanto emotivos. Sob a direção de Zé Henrique de Paula, a montagem brasileira de A Herança reuniu um grupo talentoso de atores com experiências variadas no teatro e no cinema brasileiro e trouxe a participação mais-que-especial de Miriam Mehler - juntos, eles refletem sobre o que significa ser gay nos dias de hoje e qual o legado que as gerações anteriores deixaram para nós.
A Herança fez uma primeira temporada de 9 de março a 30 de abril no Teatro Vivo com os ingressos esgotados após a noite de estreia; o que levou a peça a realizar uma segunda temporada no Teatro Raul Cortez (agora parte do Sesc 14 Bis) entre 1 de junho e 3 de setembro. A montagem também esteve em cartaz no Rio de Janeiro.
Judy: O Arco-Íris é Aqui, de Flávio Marinho em colaboração com Luciana Braga
Após uma temporada de sucesso no Rio de Janeiro em 2022, Judy: O Arco-Íris é Aqui estreou em abril na cidade de São Paulo. Em um solo interpretado por Luciana Braga, a mitológica atriz estadunidense Judy Garland relembra a sua trajetória na atuação ao mesmo tempo que a própria Luciana relaciona tais eventos com sua trajetória no ofício - além de, é claro, cantar os sucessos que fizeram a carreira de Judy.
Esteve em cartaz no Teatro FAAP entre 07 de abril e 28 de maio.
Judy: O Arco-Íris é Aqui (Imagem: Betti Niemeyer)
Mundaréu de Mim (2023), de Vitor Rocha [ibt]
Um projeto ambicioso do Instituto Brasileiro de Teatro (ibt) apresentado gratuitamente no Parque da Água Branca. Com texto e letras de Vitor Rocha e composição de Guilherme Leal, Mundaréu de Mim conta a história de Graciela (Sara Chaves), uma garota que sonha em assistir a um desfile de carnaval, mas é impedida por sua mãe Aurora (Cainã Naira. Ela acaba esbarrando (ou melhor, atravessando) em José (Flávio Pacato), uma saudade (a alma de um homem que morreu em carnavais passados) e os dois fazem um acordo: José irá ajudá-a a assistir ao desfile, se Graciela entregar uma mensagem de José para uma mulher por quem ele foi apaixonado em vida.
Sob a direção de Duda Maia, o musical infantil era apresentado em uma estrutura colorida, parecida com os “brinquedões” de bufês de aniversário, instalado em uma arena ao ar-livre. A única coisa capaz de parar o show foi a chuva. Vale destacar a maneira criativa com a qual a acessibilidade para pessoas surdas foi implementada: além de legendas projetadas acima do cenário, o ator e intérprete de Libras Wesley Leal participava da ação da peça ao interagir com os demais personagens e membros do elenco, além de puxar coreografias inteiramente criadas a partir dos gestos que compõem a Linguagem Brasileira de Sinais.
Once (2011); texto de Enda Walsh, letra e música de Glen Hansard e Markéta Irglová
O enredo de Once é simples: o garoto conhece a garota, eles se apaixonam. O que torna este espetáculo um deleite para os olhos, ouvidos e coração é a maneira como esse romance é narrado: o próprio elenco do musical é responsável por tocar ao vivo todas as canções em instrumentos de cordas e sopro; ao mesmo tempo em que dançam! Esta efusão de música se justifica uma vez que o garoto (Lucas Lima) é um rapaz que sonha em ser músico e, ao conhecer a garota (Bruna Guerin) os dois embarcam em uma jornada para gravar seu primeiro disco. Resta apenas a pergunta: de quais sonhos precisaremos abrir mão para poder realizar o maior deles?
Once esteve em cartaz no Teatro Villa Lobos entre 17 de março e 21 de maio. Uma nova temporada de Once está programada para voltar em cartaz no Teatro Villa Lobos a partir de 25 de janeiro de 2024 - os ingressos podem ser adquiridos na bilheteria do teatro ou no Sympla.
Once (Imagem: Divulgação)
Paradoxo Hamlet (2023); de Daniel Warren e João Paulo Bienemann
Quem lê o título dessa peça, a princípio relaciona sua proposta ao texto clássico Hamlet (1599-1601), de William Shakespeare (1564-1616). Mas João Paulo Bienemann explica que a peça, na verdade, surgiu a partir do texto O Paradoxo sobre o Comediante (1770-1778) do filósofo francês Denis Diderot (1713-1784) - neste ensaio Diderot traz um diálogo ficcional entre dois atores: o primeiro acredita que o ator deve dispor de frieza e tranquilidade (em oposição à sensibilidade); enquanto o segundo, por acreditar na interpretação clássica, pensa de acordo com o senso-comum. Hamlet chegou depois para trazer o dispositivo dessa peça na qual acompanhamos os ensaios de uma trupe teatral que foi comissionada pelo príncipe dinamarquês a apresentar uma peça para o rei.
Além de elaborarem o texto juntos, João Paulo e Daniel Warren dirigiram e produziram a peça na qual também atuam. Eles não acreditam em um teatro que divide plateia e atores por meio da linha do proscênio (que às vezes sequer é demarcada fisicamente), então Paradoxo Hamlet se inicia assim que o primeiro espectador chega na casa onde o espetáculo é encenado - João Paulo e Daniel recebem seus convidados oferecendo lanchinhos, conversa e companhia e, assim que a peça termina, nos convidam a ficar mais um pouco para compartilharmos nossas impressões. A peça é encenada em diversos cômodos de uma casa e, para além da química deliciosa entre os dois atores em cena, vale destacar o jogo de luz idealizado pela dupla capaz de criar ambientes acolhedores ou até mesmo fantasmagóricos.
Esteve em cartaz de 17 de junho a 6 de agosto e de 29 de setembro a 30 de outubro no Espaço de Artes Integradas.
Pontos de Vista de um Palhaço (2017); de Maristela Chelala, a partir do livro de Henrich Böll
Um palhaço vai ao psicólogo em busca de ajuda: a parceria com seu sócio, foi abalada quando a noiva do sócio, uma moça católica, o abandonou. O palhaço precisa retirar seu parceiro do estado em que se encontra para que os dois possam voltar ao picadeiro. Neste solo dirigido por Maristela Chelala (que também adaptou o livro homônimo de Henrich Böll para o teatro), Daniel Warren interpreta os dois personagens que, no fim das contas, são a mesma pessoa. Por meio da atuação dinâmica de seu ator, trazendo todo o trabalho de corpo digno de um palhaço, Pontos de Vista de um Palhaço irá refletir sobre o conservadorismo na sociedade e como seguir em frente quando um grande amor acaba.
Esteve em cartaz nO Andar como parte da mostra Solos de Segunda ao longo do mês de agosto. Também fez apresentações nas periferias da cidade de São Paulo nos últimos meses do ano.
Tom na Fazenda (Tom à la Ferme, 2011), de Michel Marc Bouchard
A primeira montagem brasileira de Tom na Fazenda estreou em março de 2017 no Rio de Janeiro e insiste em voltar em cartaz desde então, tamanho foi seu sucesso. Antes de voltar em cartaz na cidade de São Paulo no mês de maio, a montagem cumpriu uma temporada na capital francesa no Théâtre Paris-Villette durante o mês de março.
O enredo conta a história de Tom (Armando Babaioff), um publicitário que vai para a fazenda onde Guillaume, seu namorado, viveu durante a infância; sua tarefa não é fácil: ele está lá para velar seu parceiro, porém a família não sabia da sexualidade do rapaz. Tom percebe que sua integridade está em risco ao se deparar com Francis (Gustavo Rodrigues), o irmão homofóbico de Guillaume. Sob a direção de Rodrigo Portella, o confronto entre Tom e Francis se dá em um palco vazio e coberto de lama; a encenação parece aprisionar os espectadores, obrigando-os a mergulhar nas angústias e dores dos personagens.
Esteve em cartaz de 5 de maio a 25 de junho no Teatro Vivo; e de 09 de agosto a 28 de setembro no Teatro FAAP.
Tom Na Fazenda (Imagem: Victor Pollak)
O GRANDE OFICINA
O Teatro Oficina Uzyna Uzona é uma das companhias teatrais mais icônicas da cidade de São Paulo. Em atividade desde 1958, o grupo foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da Tropicália nos teatros brasileiros com a montagem de O Rei da Vela (1933), de Oswald de Andrade (1890-1954) em 1967. Este ano, o grupo perdeu um de seus membros fundadores e diretor artístico Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023), vítima de um incêndio que ocorreu em sua residência.
Teatro também se planta! Há 45 anos, o Teatro Oficina vem travando uma disputa contra o grupo Silvio Santos pelo terreno ao lado do edifício que sedia a companhia. De um lado, o grupo do magnata da televisão propõe a construção de torres residenciais que inviabilizariam as atividades da companhia e bloqueariam a vista dos janelões icônicos do teatro - e, assim, descaracterizando o projeto arquitetônico projetado por Lina Bo Bardi (1949-1992) e tombado pelo Iphan em junho de 2010. De outro lado, os artistas propõem a construção de um parque que traria mais área verde e opções de lazer para os moradores de todo o bairro do Bixiga usufruir.
Em 2020, um projeto de lei municipal para a criação do parque foi aprovado em duas votações pela câmara dos vereadores e vetado pelo prefeito em exercício Eduardo Tuma. Este ano, o projeto voltou a tramitar na Câmara e foi aprovado em 1ª votação, para que ele vá adiante é necessário apoio popular - para saber mais sobre o projeto, dos detalhes para a criação do Parque do Rio Bixiga e para assinar a petição favorável ao projeto, basta clicar aqui.
Dorival e a Mar (2023)
O palco do Teatro Oficina tem se mostrado um espaço excelente para shows musicais. Dirigido por Cyro Morais, Dorival e a Mar homenageia o cantor e compositor Dorival Caymmi (1914-2008). O espetáculo criou cenas e atmosferas para as canções “O Mar”, “O Bem do Mar”, “Saudade de Itapoã”, “Dora”, “O Vento” e “Canção da Partida”. Nelas, é possível encontrar inspirações na cultura dos pescadores e em religiões de matriz africana que possuem o Mar como seu interlocutor principal. A cada canção, o Teatro Oficina, com suas vigas de aço, bancos de madeira e paredes de tijolo se transformava no melancólico, brilhante, ardiloso, gentil oceano.
Dorival e a Mar teve duas apresentações especiais no Teatro Oficina em 20 de novembro e 11 de dezembro.
O Jogo do Poder (2023)
Um dos primeiros espetáculos concebidos pela companhia após a passagem de Zé Celso, O Jogo do Poder traz uma coletânea de peças Shakespearianas para examinar as três fases do poder: ambição, exercício e queda. Sob a direção de Marcelo Drummond, ator e viúvo de Zé Celso, a companhia explora pecados como ressentimento, orgulho, manipulação, corrupção, além da maneira como governantes fabricam, mantém e manipulam seu poder; a capacidade dos poderosos de subjugar quem está abaixo deles; e como absolutistas deixam a vida para entrar na História.
O Que nos Mantém Vivos? (2023) [Companhia Teatro Promíscuo]
Esta peça já teve diversas versões ao longo de sua existência. Originalmente intitulada O Que Mantém um Homem Vivo?, a primeira montagem ocorreu em 1973, durante o auge da repressão promovida pela ditadura militar (1964-1985) logo após Renato Borghi, idealizador da peça, ter deixado o Teatro Oficina para fundar sua própria companhia; o espetáculo foi remontado em 1982 no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), no contexto da redemocratização. Em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, a peça voltou em cartaz no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação.
Agora renomeada para O que nos Mantém Vivos?, a nova versão do espetáculo estreou em julho trazendo um texto novo, porém com o mesmo dispositivo das montagens anteriores: oferecer ao público uma coletânea de cenas de diversas peças de Bertolt Brecht que, de alguma forma, pudessem servir de ferramentas para analisarmos o tempo presente. Desta vez, as obras escolhidas por Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas foram: A Vida de Galileu (Leben des Galilei, 1943); Santa Joana dos Matadouros (Die heilige Johanna der Schlachthöfe, 1959) e A Resistível Ascenção de Arturo Ui (Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui, 1958).
A primeira temporada paulistana de O que nos mantém vivos? ocorreu no Itaú Cultural de 13 a 23 de julho. A segunda ocorreu no Teatro Oficina de 29 de setembro a 29 de outubro, marcando o retorno de Renato Borghi, membro fundador do Oficina ao lado de Zé Celso, a este espaço desde sua saída do grupo há 50 anos.
O Que Nos Mantem Vivos (Imagem: Divulgação/Bob Souza)
Rasga Coração (2023)
Neste espetáculo musical, o homenageado foi o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Para este show, a companhia reorquestrou várias obras da série Choros, composta originalmente na década de 1920 e que o próprio compositor definia como uma “brasilfonia”. O décimo choro da série, “Rasga Coração” empresta seu nome ao espetáculo dirigido por Felipe Botelho e Marcelo Drummond. A peça também inclui movimentos de Florestas dos Amazonas (1958), uma das últimas obras de Villa-Lobos.
Rasga Coração esteve em cartaz de 05 de agosto a 24 de setembro no Teatro Oficina. Também foi apresentada nos dias 08 e 09 de dezembro no Sesc Santo André; e nos dias 15 e 16 de dezembro no Sesc Jundiaí.
TEATRO INDEPENDENTE
A Igreja do Diabo (2023), de Guilherme Gilla a partir do conto de Machado de Assis
O musical A Igreja do Diabo estreou no teatro do Núcleo Experimental estreou no teatro do Núcleo Experimental em 27 de fevereiro e cumpriu temporada até o dia 25 de abril. Sua dramaturgia adapta o conto homônimo de Machado de Assis (1839-1908) para a atualidade buscando compreender a mentalidade de brasileiros que foram cooptados por discursos reacionários e de extrema-direita durante os últimos anos. O musical foi responsável por revelar o talento de seu dramaturgo e diretor, Guilherme Gila, que recebeu os prêmios de Melhor Musical OFF na 10ª edição do Prêmio Bibi Ferreira, além do Destaque Dramaturgia do Prêmio Did.
O Bosque dos Sonâmbulos (2022), de Matheus Marchetti
Uma expansão de seu curta-metragem de conclusão na graduação em Cinema, o musical Bosque dos Sonâmbulos foi escrito e dirigido por Matheus Marchetti a partir de uma amálgama de suas memórias de infância, sonhos (ou pesadelos) e fantasias. Um conto de amadurecimento vampiresco no qual Oliver (Mateus Torres e Lucas Bocalon/Andy Cruz) retorna ao hotel em que passava suas férias de verão na infância com o intuito de investigar o desaparecimento de seu irmão Thomas (Bruno Germano/Giuliano Garutti).
Esta foi a segunda temporada do musical, que ficou em cartaz de 6 de setembro a 4 de novembro no Teatro Viradalata. A primeira temporada foi realizada no Pequeno Ato entre 08 e 29 de novembro de 2022.
ÓPERA
Il Guarany (O Guarani); composta por Carlos Gomes, com libreto de Antonio Scalvini e Carlo D’Ormeville
Uma das obras-primas do compositor brasileiro Carlos Gomes (1836-1896), Il Guarany fez sua estreia no Teatro Alla Scala, em Milão na Itália, em 19 de março de 1870 - a primeira apresentação brasileira ocorreu em 2 de dezembro daquele mesmo ano Theadro D. Pedro II. Adaptada do romance de mesmo nome do escritor José de Alencar (1829-1877), Il Guarany narra uma história de amor, em que a jovem Cecília, filha de um nobre português, se apaixona por Peri, um indígena da etnia guarani - em meio a isso, também retratado o conflito entre os Guaranis e Aimorés e a tentativa da Espanha de dominar as terras indígenas e da colônia portuguesa.
Concebida por Ailton Krenak e sob direção cênica de Cibele Forjaz, a montagem apresentada no Theatro Municipal de São Paulo entre os dias 12 e 21 de maio, trazia dois pares de intérpretes para interpretar os amantes: os atores indígenas David Vera Popygua Ju e Zahi Tentehar interpretavam respectivamente Peri e Ceci, ao lado dos solistas Atalla Ayan/Enrique Bravo e Nadine Koutcher/Débora Faustino.
A montagem valorizava a cultura indígena ao projetar ilustrações de Denilson Boniwa (cenógrafo e co-diretor artístico desta montagem) nas paredes da Sala de Espetáculo e ao trazer a Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá para apresentar-se nos momentos em que, originalmente, o corpo de baile interpretava os indígenas retratados na ópera. Ao mesmo tempo, não deixava de promover uma crítica ao projeto colonial que buscava drenar as riquezas do território e deixar a terra arrazada.
PROJETOS ESPECIAIS
História do Musical Brasileiro - Núcleo Experimental
Em uma aula-espetáculo conduzida por Fernanda Maia, o público foi convidado a conhecer um pouco da história do Teatro Musical Brasileiro, passando das peças de Chiquinha Gonzaga (1847-1935) até os dias atuais (com o trabalho do próprio Núcleo). As músicas eram embaladas por um coro de atores e atrizes, além de uma pequena orquestra. Mais do que um momento de aprendizado, História do Musical Brasileiro se mostrou uma opção excelente para quem gostaria de sair de casa para ouvir música boa e curtir a noite com um pouquinho de cultura.
Incubadora de Musicais - Núcleo Experimental
Em abril, o Núcleo Experimental lançou sua Incubadora de Musicais, uma iniciativa para estimular novos autores de teatro musical contemplada pela 40ª Edição do Programa de Fomento ao Teatro da Secretaria Municipal de Cultura. Seis projetos foram selecionados para serem desenvolvidos sob a mentoria de Fernanda Maia, são eles: Uma História de Terror no Carnaval, texto de Demerson Souza e música de Guilherme Gila; Maria Luísa e os Fios de Ouro, de Pedro Vittorio; O Papagaio da Imperatriz, de Jessé Scarpellini; Quem é Juão, texto de Vivian Moraes e música de Jota.pê; Salve Ela!, de Miriam Limma; e Stella Dalva, de Gabi Gatti, Letícia Spanghero e Lucas Cuevas. Após seis meses de aulas sobre dramaturgia de musicais e encontros para a escrita dos projetos, os musicais tiveram leituras dramáticas apresentadas de maneira gratuita para o público.
VALEU A PENA VER DE NOVO
Nesta lista são registradas as peças que nosso editor já havia assistido em anos anteriores e que foi reassistir nas temporadas realizadas em 2023.
Anjo de Pedra (Summer and Smoke, 1948), de Tennessee Williams
Durante o verão de 1916, Alma (Sara Antunes) se reencontra com John (Ricardo Gelli), um jovem médico, e ambos percebem a paixão que nutriam um pelo outro durante a infância reflorescer. Porém, enquanto Alma vive reprimida pela doutrina anglicana, John se deixa levar pelos seus desejos carnais e espírito livre. Neste melodrama dirigido por Nelson Baskerville, testemunhamos o embate entre Fé e Ciência, Paixão/Desejo e Amor Platônico.
Esteve em cartaz de 02 de junho a 27 de agosto no Tucarena. A primeira temporada do espetáculo foi encenada entre 19 de março e 15 de maio de 2022, também no Tucarena.
Eu de Você (2019), de Denise Fraga, Luís Villaça e Rafael Gomes
No final de 2018, a atriz Denise Fraga e o diretor Luiz Villaça fizeram uma chamada em jornais e nas redes sociais pedindo que as pessoas lhe enviassem histórias que tivessem vivido. Em um dispositivo similar ao da série de sucesso da dupla, Retrato Falado (1999–2001 e 2003–2007), 25 histórias foram selecionadas e encenadas em um monólogo intitulado Eu de Você. Histórias de vida de pessoas comuns são misturadas com versos de poesia e canções, além das histórias de vida da própria atriz. O público se surpreendeu com a atualidade da peça que parecia versar sobre o momento pós-pandêmico no qual as relações interpessoais pareciam mais delicadas.
O monólogo esteve em cartaz de 20 de janeiro a 12 de março no Teatro Sérgio Cardoso; e de 18 de agosto a 10 de dezembro no TUCA - além de uma apresentação especial no Theatro Municipal de S. Paulo em 01 de agosto. A primeira temporada paulistana da peça foi encenada entre 19 de setembro a 15 de dezembro de 2019 no Teatro Vivo.
Lembro todo dia de você (2017), de Fernanda Maia [Núcleo Experimental]
Thiago (Davi Tápias) é um jovem gay que se descobre soropositivo. A partir de uma tentativa de reaproximação com seu ex-namorado Julio (Gabriel Malo), as memórias de Thiago sobre sua melhor amiga, sua mãe, seu pai, padrasto e ex-namorados voltam à tona. O rapaz precisa atravessá-las para que compreenda melhor a si mesmo. Lembro todo dia de Você é dos musicais mais queridos do Núcleo Experimental, que fez com que várias pessoas conhecessem o trabalho da companhia e se apaixonassem por ela.
O musical esteve em cartaz durante um final de semana entre os dias 8 e 11 de dezembro como parte dos preparativos para a encenação de Codinome Daniel, musical biográfico que estreia no Núcleo Experimental em 12 de janeiro de 2024. Sua primeira temporada foi encenada entre 18 de maio de e 26 de junho de 2017 no CCBB-SP.
Brenda Lee e o Palácio das Princesas (2021/2022), de Fernanda Maia [Núcleo Experimental]
Neste musical biográfico, conhecemos a história de Brenda Lee (1948–1996), uma ativista pelos direitos da população trans que, nos anos 1980 transformou seu pensionato para travestis em uma casa de acolhimento para pessoas soropositivas. Dirigido por Zé Henrique de Paula e com dramaturgia de Fernanda Maia, o musical celebra o legado de Brenda ao mesmo tempo que reflete sobre a vivência de pessoas transvestigêneres nos anos 1980 e nos dias atuais. É preciso destacar o elenco, formado em sua maioria por pessoas trans, que cativa espectadores a cada apresentação.
O musical cumpriu temporada em diversos teatros da Grande São Paulo ao longo do ano, incluindo temporadas no teatro do Núcleo Experimental. Sua primeira temporada foi encenada entre 9 de junho e 3 de julho de 2022 no Núcleo Experimental. Uma versão cinematográfica do espetáculo foi ao ar em 14 de outubro no canal de YouTube do Núcleo - ela segue disponível para visualização.
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MELHORES DO ANO
Melhores Peças:
* Banco dos Sonhos
* Dos Prazeres
Menções Honrosas:
* Ana Lívia
* Denise
* O que nos Mantém Vivos?
* Tom na Fazenda
Melhor Musical:
* Once
Menções Honrosas:
* Judy: O Arco-Íris é Aqui
Destaque - Espetáculo Musical:
* Dorival e a Mar
* História do Musical Brasileiro
Destaque - Dramaturgia:
* Fernanda Maia, pelo conjunto da obra
* Kiko Marques, pelo texto de Banco dos Sonhos
* Maristela Chelala, pelo conjunto da obra
Destaque Atrizes:
* Alejandra Sampaio, por sua atuação em Banco dos Sonhos
* Denise Fraga, por sua atuação em Eu de Você
* Fernanda Maia, por sua atuação em Denise
* Luciana Braga, por sua atuação em Judy: O Arco-Íris é Aqui
* Maristela Chelala, por sua atuação em Dos Prazeres e Banco dos Sonhos
* Virgínia Buckowski, por sua atuação em Banco dos Sonhos
Destaque Atores:
* André Torquato, por sua atuação como os personagens “Adam” e “Leo” em A Herança
* Renato Borghi, por sua atuação em O que nos mantém vivos?
Destaque “Rumo ao Sublime”:
* A Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá - Kyre’y Kuery apresentando-se durante a ópera Il Guarany no Theatro Municipal de São Paulo
* Eu de Você, que sempre emociona como se estivéssemos assistindo pela primeira vez
* O final esperançoso de Banco dos Sonhos, apesar de tudo
* O ensemble de Once apresentando os números “Raio de Sol” e “Raio de Sol (Reprise)”
* Assistir ao Renato Borghi no Teatro Oficina
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