A partir dos Bichos de Lygia Clark e da própria experiência artística, Lorenza Gioppo questiona os ganhos e perdas ao preservar a originalidade de obras mutáveis
No auge da pandemia, do isolamento e das atividades virtuais, me percebi sentindo muita falta da materialidade. Numa busca para aliviar essa falta e me conectar com a matéria, experimentei “pintar” um quadro usando argila e os temperos disponíveis na cozinha.
A pintura não é nem de longe a técnica artística que mais me atrai, muito menos a que mais domino. Ainda assim, eu vivia um momento de experimentação e curiosidade muitos intensas, no qual a falta de técnica, de referências ou de método não me afetava nem um pouco. Estar guiada pela vontade de experimentar, de descobrir, de brincar com a matéria e, nesse caso, pela vontade de ativar meu corpo e meus sentidos colaboravam para isso.
Detalho o processo dessa tela neste texto do meu blog, mas em resumo: trabalhei diluindo a argila e os temperos em água quente e fazendo camadas sobre uma tela já preparada, dessas bem simples que compramos em qualquer papelaria. Num desses longos exercícios de paciência, observei com atenção o material, percebendo como ele se comportava, como eu podia – ou não – interferir e direcionar as cores e texturas; acompanhando como a argila secava e como mudava conforme secava.
A tela levou uma semana para secar por completo, definir suas cores, suas formas, suas seguranças e suas fragilidades. Tomou seu tempo para se conhecer e se entender. Quando pronta, decidiu ser bem diferente daquilo que eu tinha planejado, se mostrando inclusive bastante quebradiça, com a argila ameaçando se desprender do suporte. Passei meses pensando em maneiras de contornar essas fragilidades e reverter minha falta de técnica, agora sim bem percebida: talvez se eu tivesse preparado a tela adequadamente ou simplesmente optado por um tecido cru, a argila poderia ter penetrado na trama, ficando segura lá.
Tudo que eu entrego pra terra ela me devolve (2021), tela de Lorenza Gioppo. Imagens: Lorenza Gioppo / Acervo pessoal da artista
É sugerido preparar a tela antes de pintá-la para evitar que o tecido absorva tinta em excesso, o que costuma tornar as pinceladas menos evidentes, supostamente desvalorizando a técnica do/da artista. Além disso, uma tela bem preparada previne o craquelamento e o surgimento de fungos ou outros microrganismos danosos à pintura, ou seja, uma etapa fundamental quando pensamos em conservação de obras. O site Cozinha da Pintura explica isso em detalhes e reúne um vasto material para os interessados nesta técnica.
Pois bem, optei por não agir mais sobre ela e deixar que a matéria tomasse seu rumo. Desde então venho acompanhando com curiosidade a tela se desfazer, se desmontar, se decompor; aceitando o trabalho do tempo, a vontade da matéria, suas mudanças e solturas. Treinando ver beleza no imprevisto, lembrando o que ficou escondido, esquecido, como as palavras rascunhadas na tela antes de colocar a argila e que, não por coincidência, tem a ver com tempo, matéria, natureza, forma, vontade. Percebi que a argila não-queimada muda de cor em dias chuvosos, resgatando da minha memória os “Galos do Tempo”, os quais, a partir de uma reação química, passam de azul para rosa conforme a umidade do ar. Tinha um na lavanderia da casa da minha avó e eu achava aquela transformação toda muito mágica. Ainda acho mágico reagir ao ambiente.
Tudo que eu entrego pra terra ela me devolve (2021), tela de Lorenza Gioppo. Imagem: Lorenza Gioppo / Acervo pessoal da artista
Essa experiência de degradação da obra por falta de técnica na preparação do suporte, me lembra o conhecido e delicado caso de A Última Ceia (1495-1498), de Leonardo da Vinci (1452-1519). Normalmente, murais como a obra em questão são feitos com a técnica do afresco, a qual consiste em pintar a superfície preparada com argamassa de cal ainda molhada, para que os pigmentos, diluídos em água, sejam absorvidos e fundidos à massa. Essa técnica, entretanto, exige um trabalho bastante rápido, antes de a superfície secar, e Leonardo era conhecido por ser um pintor que tomava seu tempo, passando dias para encontrar os detalhes buscados por ele.
Para contornar isso, o artista inventou sua própria técnica, não só pintando sobre a superfície seca, mas misturando tinta à óleo com têmpera – normalmente feita usando gema de ovo como aglutinante, ou seja, duas tintas com bases diferentes –, resultando na deterioração acelerada da pintura, que antes mesmo de finalizada já tinha sinais de desgaste. Com isso, a obra passou por inúmeros restauros desde cedo, gerando confusões entre o que era repintura e o que era trabalho do artista. Somente em 1999 houve um restauro mais minucioso, permitindo uma percepção mais próxima da pintura original. Antes de ser um gênio, Leonardo da Vinci era curioso, observador, obstinado e gostava de experimentar, por isso me pergunto se não teria achado interessante a reação do suporte; a natureza, a ciência e, claro, a matéria exercendo sua vontade.
A Última Ceia (Cenacolo Vinciano), de Leonardo da Vinci. Localizada na igreja Santa Maria delle Grazie, em Milão (Itália).
Esse é um exemplo interessante porque suscita diversas questões. Em primeiro lugar, a influência do suporte, técnica e materiais na preservação das obras. Em segundo, os riscos do restauro – atualmente sugere-se o mínimo de intervenções possível, a diferenciação entre partes restauradas e originais e a busca pela diminuição dos efeitos do tempo¹.
Além do grande dilema entre conservação e exposição – o qual diz respeito à democratização do acesso à obras de arte: a umidade, o calor e os microorganismos da respiração do público visitante de A Última Ceia são fatores de aceleração da degradação da obra, por exemplo. Qual seria a alternativa? Não expor para tentar manter intacta a obra, mantendo-a inacessível ou mesmo desconhecida?
Esse dilema remete a outro caso bastante conhecido, desta vez brasileiro: a série Bichos (década de 1960), de Lygia Clark (1920-1988). Tratam-se de estruturas articuladas feitas de metal, pensadas para serem manipuladas, porém costumam ser expostas sem a possibilidade de manuseio. Inúmeras vezes os vi sem que pudesse tocá-los e, mesmo com várias leituras feitas sobre o assunto, sempre senti falta de alguma coisa. Por sorte, a exposição Lygia Clark: Projeto para um planeta, em cartaz na Pinacoteca de São Paulo, apresenta as obras originais e coloca à disposição do público uma série de réplicas para interação. E, realmente, leitura nenhuma, olhar nenhum dá conta da experiência corpo-obra:
“Esses estranhos objetos, porém, podem nos causar frustração e descontentamento, pois, por vezes, não se dobram como gostaríamos, resistem e nos iludem com a promessa de que é possível tomar qualquer direção. Como seu nome anuncia, eles são criaturas cheias de vontades e nem sempre reféns dos nossos desejos.” (Texto de parede)
Bichos originais, de Lygia Clark. Imagem: Levi Fanan / Divulgação: Pinacoteca de São Paulo
Réplicas para manuseio. Imagem: Levi Fanan / Divulgação: Pinacoteca de São Paulo
Cito este trecho de um dos textos da exposição para tentar resumir a experiência de manuseio dos Bichos, mas a experiência da arte é sempre um tanto opaca. O instante do encontro corpo-obra, corpo-matéria, corpo-realidade. O instante do encontro com a proposição da artista; com o resultado da negociação entre o que ela pretendia e o que descobriu, com o que esbarrou durante o trabalho com o material, que sempre tem certa autonomia. A experiência precisa ser vivida para nós também encontrarmos nossas negociações com a matéria, com o tempo, com o acaso e com a falta de controle. Para além da complexidade e inovação da pesquisa de Clark, Bichos é uma experiência ímpar pelo contato com a materialidade. Em especial depois desse manuseio, fico me perguntando o quanto se perde em prol da preservação dos originais de obras como essas.
Enquanto artista e entusiasta da gestão cultural e arte-educação, me pergunto se a maior contribuição dessa série não seria permitir-se desgastar com o uso. Tenho a impressão que sua presença seria mais profunda e duradoura justamente por estar no plano da experiência. Sem contar o fato de terem sido pensadas para isso: toda a obra de Lygia Clark habita o plano da experiência. O caso de Bichos é bastante interessante também por serem estruturas facilmente reproduzíveis, apesar de complexas; ou seja: se uma se desgastar a ponto de impossibilitar o manuseio, pode ser substituída sem que a intenção e interação seja prejudicada.
De forma alguma quero me colocar contrária à preservação de bens artísticos e culturais. Essas práticas são fundamentais para a memória e identidade de um país e suas comunidades; estes bens precisam ser preservados inclusive com investimento público adequado. Ao mesmo tempo, me pergunto se a preocupação com conservação tal como ela se configura hoje não diz mais respeito a preservação da “aura” da obra e/ou seu valor comercial do que ao seu valor artístico, cultural, humano de fato. O termo bens culturais já sugere essa perspectiva.
Há alguns anos, em uma visita ao MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) fiquei muito impressionada ao ver um vídeo documental sobre o trabalho de um artista de quem infelizmente não lembro mais o nome: me chocou vê-lo tocar suas pinturas, passar a mão na tela sem rodeios ou excesso de cuidado. Ter contato com esse vídeo e esse comportamento dentro de uma sala de exposição na qual não podemos nem chegar perto das obras foi um tanto revolucionário. Existe um lugar muito bonito de intimidade entre artista e obra, no qual se percebe, conhece, escuta a matéria. Sabe-se onde pegá-la, como tocá-la, não necessariamente por um conhecimento técnico como no caso de arquivistas e conservadores (também sem dúvidas fundamentais), mas por conhecer o processo que ela levou para chegar até seu estado “final”. O conhecimento desse processo permite a maravilhosa possibilidade de saber refazer se necessário.
Não me refiro apenas à capacidade de restaurar uma obra, devolvendo a ela seu caráter “original”, ainda que isso também seja possível. Refiro à revolucionária possibilidade de voltar ao processo; de mudar de ideia, deixar-se influenciar pelas vivências, re-atualizar o ontem com os aprendizados de hoje. Continuar ouvindo a vontade e as tendências do material. Descobrir novos caminhos e possibilidades dentro de uma mesma proposta. Dar a obra uma nova vida, garantindo ao mesmo tempo a continuidade da anterior, permitindo novas leituras e potências. Parte do meu desapego com o quadro de argila foi por me dar conta disso: se quiser, posso refazê-lo, retomar o processo para redescobri-lo, chegando em novos lugares, que, inclusive, só serão possíveis por conta do primeiro.
É tão curioso esse processo de sacralização da obra final: como se a obra não pertencesse a um mundo em constante movimento e mudança, como se não estivesse suscetível a ação do tempo, ou não tivesse passado por um processo, cheio de testes e erros; como se o/a artista não fosse também humano em constante processo de construção.
Entendo que a busca por uma desmistificação das obras de arte, colocando-as como processo e não como produto, implica numa conduta mais ética diante da arte e da vida. Compreender artistas não como gênios que trabalham sob inspiração divina, mas como pessoas – como profissionais – que testam, experimentam, erram, aprendem, mudam de opinião e de perspectiva. Entender que as obras não nascem prontas. Aceitar que a matéria, a natureza, o tempo, os outros têm sua autonomia e sua influência: não somos capazes de controlar tudo, nem de nos isolar por completo, estamos em constante negociação com o mundo, em constante construção de nós mesmos e, acredito, as obras de arte deveriam refletir isso.
As obras que atingem mais profundamente seu papel de arte, me parecem ser aquelas que assumem uma transitoriedade ou efemeridade – seja pela possibilidade de deterioração, modificação, reinterpretação; são as que admitem a co-autoria com a matéria, com o tempo, com o acaso, mantendo-se porosas aos encontros. Abraçando os imprevistos e escapando – ainda que por pouco – da lógica mercadológica na qual obras são bens para serem vendidos. Tocando mais profundamente quem tem contato com elas e convidando-nos a ter também outras relações, novas relações com a matéria, tempo, vida, com nós mesmos. Deveríamos estar mais preocupados com a produção, difusão e aprofundamento dessas relações do que com a preservação de originais meramente por serem os originais.
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NOTAS
¹ Para mais informações e uma noção histórica sobre restauro e conservação, sugiro este post do site Vitruvius.
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SERVIÇO
Lygia Clark: Projeto para um planeta, curadoria de Ana Maria Maia e Pollyana Quintella.
Local: Pinacoteca Luz (1º andar)
Data: de 2 de março de 2024 até 4 de agosto de 2024
Endereço: Praça da Luz, 2, São Paulo – SP.
Horário de funcionamento: de quarta a segunda, das 10h às 18h (entrada até 17h). Quintas-feiras com horário estendido, das 10h às 20h (gratuito a partir das 18h).
Ingressos: Disponível na bilheteria ou no site
* Inteira, R$32,00 / Meia, R$17,00
* Sábados gratuitos.
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