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Solidão e Amor

Foto do escritor: Ana Karoline OliveiraAna Karoline Oliveira

Ensaio reflete sobre a correlação entre a vivência da solidão e as dificuldades em estabelecer relacionamentos a partir do filme “Medianeras” e dos poemas de Vanessa C. Rodrigues e Nina Camargo


Colagem de Ana Karoline Oliveira / Acervo Pessoal

E se parássemos para pensar que as cidades, as ruas, vielas, esquinas, os prédios, as casas, construções antigas e abandonadas, estações de metrô vazias, paredes e as janelas, todos esses e tantos outros elementos dialogam entre si, por quem passa por eles em mais um dia corriqueiro? 


No longa-metragem Medianeras (2011), do cineasta argentino Gustavo Taretto, Martin (interpretado por Javier Drolas) e  Mariana (Pilar López de Ayala), são vizinhos que passam lado a lado nas ruas, mas que não se reconhecem. Não se percebem. Ao mesmo tempo, no início da narrativa, a protagonista afirma ser alguém perdida entre multidões. No decorrer desta história, é possível admirar e correlacionar a vivência da solidão e as dificuldades em estabelecer relacionamentos na atualidade, assimilando esses aspectos à arquitetura de Buenos Aires. É uma obra que mostra as formas de um encontro e o romper abrupto de laços dentro de cada um quando ocorre o desencontro.


Esta solidão também foi retratada por Vanessa C. Rodrigues em sua antologia poética Noturno e cinza (Medusa, 2014), na qual mostra com afinco os fragmentos da ausência e da existência de um corpo. Ao lado do filme de Taretto, esta obra retrata a importância de falarmos sobre as pequenas tragédias diárias e grandes dores abstratas. No poema a seguir, Vanessa trata da questão da solidão, dando ênfase na importância da interrupção do silêncio.


Armadura

De dentro pra fora revisto minhas vísceras,

protejo meu corpo com tua sucata,

respiro diariamente partículas invisíveis de brutalidade

Não me assusta o silêncio nem vou enlouquecer.

Estou sozinha, mas com o mapa da cidade.

Estou sozinha, mas respiro teu corpo.

Falo alto pensamentos corriqueiros 

— Vê, tem mais de um mês que não chove.

Tem mais de um mês que não vejo ninguém.


Vanessa C. Rodrigues nos mostra a importância e a força em sermos vulneráveis, o que nos leva a ter um olhar mais atento para aquilo que nos atravessa. Ao nos aproximar do fim da obra cinematográfica, podemos observar Mariana abrindo a janela de seu apartamento e encarando a cidade de lá de cima como costumava fazer algumas vezes. De repente, pensa ter encontrado aquele que sempre foi um enigma a ser desvendado em um livro que mantinha guardado desde os quatorze anos de idade, chamado Onde está Wally?, livro infantil cuja brincadeira envolvia a tentativa de encontrar, no meio da cidade, um rapaz de camisa branca com listras vermelhas. 


Após esta recordação e assimilação, Mariana passa a acreditar ter desvendado o possível Wally da sua realidade. Deixa, então, seu apartamento e se coloca a correr até encontrar Martin pessoalmente, esse que estava bem ali a alguns passos acelerados e em um atravessar de ruas.


Ao me debruçar sobre este filme, percebo um poema de Nina Camargo, poetisa ilhabelense, enquanto espelho no qual os personagens do longa são refletidos. Um espelho que trata sobre perspectivas que se diferem, mas são completamente, onde no final do dia, caminham lado a lado. Visões e vivências que permitem entrelaçar os mindinhos em uma promessa de existir muito amor depois de muito amar e vice-versa. Um diálogo sobre o amar depressa e barulhento:


o amor é devagar. o amor, posto que é projeto, é quieto

o amar, não. o amar é depressa. barulhento

o amar começa a obra às 07h00 da manhã de uma

segunda-feira. você abre os olhos e o encontra de pé,

com um espelho em riste ao lado da cama. é cedo para

você se ver e ele não se importa. o amar não tem dó

o amar é sofrido. o amar atropela o peito quando

demora uma hora a mais entre uma mensagem e outra 

do que no dia anterior. o amar reclama de como você

não amassa o alho antes de o descascar

o amor vem antes e depois do amar. e durante. e de novo

o amor começa no desenho da planta. o amor rega

as flores depois que a casa está pronta. o amor começa na

argamassa, continua nas rachaduras quando a casa já é

gasta e precisa trocar a fiação

o amor é até onde a casa pode ser casa. uma casa pode

ser uma casa depois de demolida. pode ser uma casa em

cima de outra. pode ser um outro tipo de casa. depende

o amor é bicho gordo e dorminhoco. o amor é um

gato velho. o amor descansa

o amar é impaciente. é filhote ainda que tenha anos,

percebe: o amar de novo no canto da sala escalando a

cortina com um brinquedinho de plástico na boca

o amar enche o saco

o amar, por natureza, desaba. amar procurando se

proteger do desabamento não estrutura o amor. já passa

das 19h00. não sobra tempo

o amar é cacofonia. o amor é repertório de silêncios

o amar alimenta o amor e vice-versa, mas varia. há de

ser delicado ao brincar com os dois ao mesmo tempo

o amar é novidade, mas o amor é cotidiano

o amar é volúvel, posto que é dia

o amor é teimoso, posto que é ano


(poema de NINA CAMARGO, atualmente inédito, que fará parte de seu segundo livro Garganta)


Este poema nos faz contornar e acompanhar o trajeto dos olhos, do “Amor” e do “Amar”, dando pluralidade para os nossos sentimentos e para o que vemos. A partir do encontro do casal de protagonistas, suas histórias se entrelaçam ainda mais e, mesmo que cada um levasse consigo as suas faltas e as suas dificuldades de fazerem com que um relacionamento fosse algo além do abstrato, que só existisse, por exemplo, em uma das ideias que tinham sobre as palavras “amor” e “amar” - para eles, o encontro acabou sendo o mais correto a ser feito e a acontecer, de certa forma.


Por conseguinte, ainda com a angústia de se descobrirem como seres faltantes e alguém perdido entre multidões, é possível termos a percepção de que a solidão acompanha o amor e o amor acompanha a solidão. A certeza de que esses aspectos andam lado a lado é o que fica gravado e guardado em algum canto de nós após contemplarmos essas obras. Há muito barulho e muito silêncio para se partilhar um com o outro. Bem como nos deixa a singela mensagem de que nos resta abrir e fechar as janelas quando for necessário e, assim, nos permitir ao amor outra vez.

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