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Luca Scupino

Como filmar a história?

Resenha avalia o retrato histórico promovido no filme A Batalha da Rua Maria Antônia, dirigido por Vera Egito


Na epígrafe de seu livro 1968: o ano que não terminou (Editora Objetiva, 2013), o escritor Zuenir Ventura cita Mário de Andrade (1893-1945): “não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição”. Ex-militante que assistiu de camarote às transformações vividas pelo Brasil na esfera da intelectualidade e do comportamento neste ano fatídico de Ditadura Militar (1964-1985), Ventura tem consciência de que falar sobre 1968 é sobretudo reportar-se à história de um fracasso, de uma utopia não concretizada.


Fazer um filme sobre o ano de 1968 significa sempre estar em território espinhoso. Afinal, como representar a luta política esteticamente? Como entender a continuidade e a relação histórica que os eventos desse período representam hoje? Como trabalhar com as imagens do fracasso, sem abaixar a cabeça e ao mesmo tempo não fingir que tudo deu certo? Esses são alguns dos impasses presentes em A Batalha da Rua Maria Antônia (2024), de Vera Egito.


O ano de 2003 deixou lições valiosas a este respeito para o cinema mundial. Não no Brasil, mas na França, que viu o lançamento de dois filmes cujas narrativas giram em torno da juventude no ano de 1968: Os Amantes Constantes (dirigido por Philippe Garrel) e Os Sonhadores (de Bernardo Bertolucci). Temos, em ambos, uma juventude que se descobre entre a política e os amores privados, bem como a presença do ator Louis Garrel (filho de Philippe) figurando entre os protagonistas. Porém, enquanto Os Sonhadores preserva o passado em um sonho erótico que lá permaneceu, ao qual a luta política serve de subtexto romântico, a Philippe Garrel interessa mais a continuidade desse evento: os corpos em estado de latência, o preto e branco encobrindo a tela em imagens obscuras até o esgotamento, como se 1968 não houvesse acabado, mas antes estivesse presente em cada detalhe do presente, como um fantasma que se recusa a ir embora.


Corta para 2024, e o Brasil chega efetivamente à discussão. É certo que a França foi o país mais marcado pelas revoltas dos estudantes e operários no final da década de 1960, mas um pouco ao Sul do globo os brasileiros enfrentavam um dos momentos mais duros da ditadura militar e de maior polarização ideológica — oposição sintetizada pela Rua Maria Antônia, no bairro de Higienópolis em São Paulo: de um lado abrigava a faculdade de Filosofia da USP, de tendência de esquerda; de outro a Universidade Mackenzie, majoritariamente a favor do regime —ou, pelo menos, assim é mostrado no filme e nos livros de história—, tendo alunos que participavam no CCC (Comando de Caça aos Comunistas).


A Batalha da Rua Maria Antônia se faz dessas dicotomias: os dois lados da rua; o preto e o branco, o negativo e positivo da película — ressaltados pela fotografia em alto contraste. A diretora afirmou, em uma exibição especial lotada no Cinesesc, dia 24 de abril: “na rua, não tem um muro e nós escolhemos um lado: o esquerdo”. E, de fato, o filme é inteiramente do ponto de vista de estudantes da USP, que organizam a contagem de votos de uma eleição decisiva para o futuro da política estudantil na cidade de São Paulo. Ao longo deste dia histórico, a protagonista, interpretada por Pamela Germano, irá se descobrir sexualmente e politicamente (justamente a relação entre sexo e política que estava no pivô do movimento estudantil desse momento no século 20, e cuja aproximação talvez seja a única grande conquista mundial da esquerda em um ano marcado por grandes derrotas).


Alguns dados são evidentes de forma mais imediata: além do PB e de uma película que constantemente ressalta sua própria materialidade, com ruídos e transições remanescentes de obras do Cinema Novo e Cinema Marginal, há os 21 planos-sequência que compõem a obra, em referência aos 21 anos de ditadura no país. A reconstituição de época é detalhista e impressionante, e o filme “grita” direção de arte: cartazes de filmes de Glauber Rocha espalhados pela parede da faculdade, fotos de Lenin, letreiros com dizeres políticos, fuscas e motos antigas presentes nas ruas dão um tom que fica entre a reconstituição mais fiel e a caricatura de um período cujos próprios cineastas não viveram diretamente. Enquanto isso, a austeridade do som, com ambiências opressivas e crescentes ao longo do filme, estabelece uma atmosfera quase de suspense.


Em uma pequena digressão pessoal: lembro-me de ler sobre o conflito entre estudantes pela primeira vez em um livro de história, quando estava no ensino médio, e tudo que conseguia pensar (em minha mentalidade incipiente de estudante de cinema) é que alguém precisava fazer um filme sobre a Batalha da Maria Antônia. Afinal, não há evento mais paradigmático para entender a polarização política no Brasil e estruturas presentes tanto ontem quanto hoje, e que no fatídico dia de 02 de outubro de 1968 se mostraram sem máscara. O filme de Vera Egito parte especialmente desta inquietação.


De fato, estava na hora de termos um filme sobre 1968, da mesma forma que os franceses e os estadunidenses os têm em dezenas. A princípio, A Batalha da Rua Maria Antônia parece combinar características tanto de um cinema de autor consciente de suas escolhas artísticas, como também de um filme de interesse comercial ao fazer uma reconstituição de época emocionante e digna da “sociedade do espetáculo” que os jovens tanto criticavam em 68. Aproximação, por sua parte, louvável: chega a ser cansativa a enorme distância existente entre um cinema contemporâneo brasileiro considerado político e aquele que chega aos grandes públicos com o propósito de entreter. Ao mesmo tempo, é nesse ponto que as coisas se complicam.


É certo que o filme toma uma posição e está interessado em buscar os ecos entre a luta política da esquerda dos anos 1960 com eventos posteriores e embates recorrentes na história da Nova República (1985—presente). É também certo que a esquerda contemporânea, fragilizada por um jogo político cujos signos são sequestrados pelo conservadorismo, precisa reforçar a todo momento sua capacidade de se reerguer e afirmar sua força política, a despeito dos erros passados. Como um medo de perder novamente o controle da narrativa ao colocar em risco suas imagens. Me parece que o filme de Vera Egito busca justamente isso: reconhecer, mesmo na derrota, uma vitória evidente na capacidade de mobilização política da juventude e em sua recusa em desistir da utopia.


Assim, o longa se compõe de várias imagens um tanto “heroicas” desse momento: sempre colocando em cena uma juventude romântica com a mão em riste, durante planos-sequência intrincados que mais geram uma admiração pela grandeza das ideias e atitudes ali presentes. A câmera é o dispositivo responsável por localizar seus personagens em meio a um mar de ações, realizando uma cartografia dos interesses políticos e pessoais que se confundem no movimento da História. A obra bem parece, em muitos sentidos, ter a estrutura de uma peça de teatro, na qual várias ações ocorrem ao mesmo tempo, e a tomada única certamente estimula a incorporação do acaso e do pensamento dos atores dentro de um espaço cênico — jogo que eleva seus riscos tanto na realidade da filmagem quanto em uma diegese de bomba-relógio, contando em ordem decrescente do número 21 ao 1. O plano-sequência é, quase sempre, sinônimo de espetáculo: necessário lembrar da frase de Godard, segundo a qual um travelling é uma questão moral (imaginemos, então, como interpretar um plano-sequência em um filme sobre política).


Pois, voltando à frase de Zuenir Ventura: se o objetivo é mostrar a continuidade de 1968 e da luta, por que a necessidade de uma representação “heroica”, que transforma uma tragédia histórica em melodrama edificante? Tomar um lado na História não significa meramente apontar quem estava certo e quem estava errado — mas sim, entender a complexidade do jogo político e os erros cometidos em nome dos próprios ideais que acreditamos. Evidentemente há, sim, uma crítica à organização do movimento estudantil, mas esta é sempre localizada em pontos específicos e que remetem a preocupações contemporâneas — como, por exemplo, o desbalanço de poder entre gêneros na organização do movimento. De modo que não parece haver qualquer tipo de discussão sobre a materialidade da luta, complexidade exemplificada por Zuenir Ventura em seu livro:


O melhor do seu legado não está no gesto — muitas vezes desesperado; outras, autoritário —, mas na paixão com que foi à luta, dando a impressão de que estava disposta a entregar a vida para não morrer de tédio. Poucas — nem a efêmera geração dos caras-pintadas — lutaram tão radicalmente por seu projeto, ou por sua utopia. Ela experimentou os limites de todos os horizontes: políticos, sexuais, comportamentais, existenciais, sonhando em aproximá-los todos. Sem dúvida, há muito o que rejeitar dessa romântica geração de Aquário — o messianismo revolucionário, a onipotência, o maniqueísmo —, mas há também muito o que recuperar de sua experiência. (VENTURA, p. 24, 2013)


Afinal de contas, o filme se depara com um embate: é possível conciliar o retrato da história com uma obra narrativa também interessada nos dramas privados de seus personagens? Como resposta, Vera Egito deriva a materialidade da película de Os Amantes Constantes, que imprime em suas formas a luta e a melancolia do fracasso (a cena de sexo no filme de 2024, a qual por meio de jogos ópticos modula a impressão dos corpos das amantes na película, é particularmente genial). E isso, de fato, é uma herança garreliana: a impossibilidade de se pensar as vivências da História recente dissociadas do cinema e da realidade fotoquímica de sua arte. No entanto, com Philippe Garrel, não há conciliação possível na história, não há maneira de encontrar heroísmo no fracasso. No filme de 2003, a tragédia é profundamente sentida, atravessando os corpos de seus personagens do mesmo modo que o ópio por eles utilizado. 


Me parece haver, assim, em A Batalha da Maria Antônia, uma ideia de passado como fetiche (da política, do sexo, da juventude) semelhante à do filme de Bertolucci. É claro que, por sua natureza, não é possível pensar a política sem algum tipo de fetiche. No entanto, ele deve iluminar o caminho da política em vez de cegá-lo. De modo que só vejo esta representação como problema a partir do momento em que o filme se dispõe a entender a continuidade da luta política no presente, não admitindo suas contradições, as mesmas da própria História. Algo, por exemplo, que Godard realiza em A Chinesa (1967) ao embater as visões de diferentes militantes maoístas na França pré-1968, sem encontrar possíveis soluções. Às vezes, o ato mais nobre está em reconhecer os impasses da política tal como se apresentam.


A Batalha da Rua Maria Antônia parece exemplificar uma crise muito latente na autorrepresentação da esquerda brasileira, que ao mesmo passo reivindica a justa representação de sua própria história, mas se recusa a sentir o peso de suas derrotas, com medo de perder o jogo das imagens. É feliz ver o lançamento de uma obra que suscita tais reflexões, com a coragem de colocar o dedo em um dos momentos mais obscuros e difíceis da História Brasileira, deixando claras as suas posições estéticas e ideológicas. É triste, no entanto, perceber que nosso cinema demorou 55 anos para, valendo-se da ficção, refletir sobre esse evento, e que chegamos 20 anos atrasados para a discussão, com os mesmos velhos problemas. Será que estamos fadados a repetir a tragédia como farsa?



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