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José Anderson Paixão

Combustão

Atravessamos a rua enquanto Matheus traga o cigarro pela última vez e joga a bituca na sarjeta. O sol esquenta nossa pele, é um dia quente e abafado em Recife, um vento leve sopra por entre as árvores aliviando a sensação de estar sob uma redoma. Gosto do cheiro metálico e pungente advindo dos carros ou da boca de um fumante. O odor da fumaça infesta minhas narinas e sinto que a cidade está viva: combustíveis queimam; automóveis seguem seus rumos; pulmões trabalham a todo vapor. Tudo incendeia. A combustão catalisa e degenera essa coisa chamada vida.


Ao chegar no café, pedimos uma cerveja; as gotas não param de escorrer do topo até a base da garrafa. O mesmo processo se repete em minhas costas: o suor produzido cai até o elástico da minha cueca para enfim ser absorvido pelo tecido. Matheus possui dedos grandes e redondos que tocam decididamente a cerveja levando-a até sua boca. Ele esboça um leve sorriso enquanto segura o copo e olha para mim - talvez por destoar dos demais clientes ao beber em horário comercial, talvez por se sentir retraído em minha presença. 


“Tô pensando em deixar a terapia pra lá”, Matheus me conta após uma leva significativa de silêncio. 


“Por quê?”, indago com certa surpresa. “Logo tu que tanto se orgulha de ser bem analisado, sempre sabendo o que dizer e quando dizer.”


“Tava conversando com minha psicóloga e ela disse que alguns sentimentos apenas são. Passo grande parte da minha vida tentando desvendar a origem de qualquer coisa que me aparece, mas agora só quero sentir o jeito que elas se materializam pra mim, sabe? Quero ser mais intuitivo e menos pragmático”, ele disse dando mais um gole da bebida em mãos.

 

“Vai ser tu saindo e eu entrando”, digo em tom jocoso. “Tô doidinho demais.”


“Taca-le pau; vai te fazer bem”, ele conclui com segurança. 


“Ah, e esse papinho de mais intuição é coisa de quem acabou de comprar um guia de tarot”, falo pra provocar.


“Eu não mexo com essas coisas. Mas bem que tu precisa de umas revelações holísticas, Paulinho”, ele brinca com olhos argutos de ironia, fazendo aspas com os dedos ao pronunciar a última palavra.


Um cheiro de cevada e café moído toma conta do local em que nos encontramos. Fixo o olhar em seu rosto enquanto ele continua o assunto. Existe uma aura que me prende ao seu discurso; as palavras fluem como se fossem lidas de um romance de formação bem executado, só que ao vivo. Minhas indagações o incitam a trazer seus pensamentos à superfície. Matheus menciona determinado teórico que rege a prática de sua psicóloga, definindo a vertente como uma linha tênue que se ramifica, uma abordagem rígida mas não engessada. Tento entrelaçar seus pés aos meus por baixo da mesa enquanto ele segura minhas mãos, um tato frio e levemente úmido. Acompanho seus olhos girando ao redor das órbitas para observar o local: a pintura; a iluminação; uma leve rachadura no teto. Nesse momento irrompe em mim a vontade de beijá-lo e sentir a textura de sua pele pós-suor, seu cheiro adocicado que se acentua com a transpiração. O efeito da cerveja começa a bater e minha mente navega pelo pot-pourri de temas e sons ao redor. Só tenho a certeza do toque, quero ser tocado.


Nos conhecemos num evento literário durante a graduação. Éramos monitores e o nosso trabalho se resumia em fornecer direções aos participantes e garantir o bem estar dos autores convidados. Ele era amigo de amigos: cabelo escovinha; tom de pele bronzeado; bagagem de memes engraçados; pouco mais de um metro e oitenta; uma cadência e precisão na voz que fizeram-me perguntar se seria capaz de deixar de ouvi-lo por um único dia sequer. 


Nunca consegui definir o que rolaria depois de encontrá-lo num desses apps de pegação, poderíamos nos reunir para uma simples foda ou para um encontro. No fim, ele foi minha companhia durante longos finais de semana: uma peça nova entrava em cartaz; um restaurante novo a ser desbravado; a interpretação de uma obra de vanguarda em exposições. Nossa comunicação on-line sempre foi resumida a poucos caracteres; nos poupávamos para somar forças na articulação das palavras quando enfim estivéssemos ao vivo. Ele explicava que algumas frases exigiam entonação e olhares precisos, por isso eu tentava ser um ouvinte fiel ao dito (e ao não dito). Eu era um receptáculo e cumpria minhas atribuições com certo prazer, escutava enquanto repelia qualquer toque de tristeza por não me inserir plenamente em suas vivências, ou por me sentir como um anexo impreciso e desajeitado da sua vida.


O fim da tarde se aproxima enquanto pagamos a conta e saímos do café: o sol já reflete menos quente e mais dourado, é possível observar ilhas de luz pelas brechas das folhas. As calçadas são irregulares e sinto oscilações em meus passos que se acentuam pelo efeito do álcool. A cidade é despida e tudo o que resta são suas cores, é possível ser acolhido pelos tons saturados. Caminhamos em direção a um píer com vista pro Rio Capibaribe, não há muitas pessoas no local. Dois adolescentes insinuam pular, me afasto por reflexo. Após o salto só consigo visualizar suas cabeças ao redor de uma água verde-escura de fluxo lento e restos vegetais. Lembro que não sei nadar, também não sei boiar, nunca consegui a leveza necessária para realizar tal ato, alguma coisa me puxa para o fundo. Como uma representação da minha própria vida, lembro que nunca fui de fantasiar, a realidade avassaladora dos fatos sempre esmagou meus delírios. 


Colocamos nossas mochilas no chão, ficamos em posição de lótus. O sol bate em nosso rosto, sua pele fica mais dourada. Estamos sozinhos exceto por alguns transeuntes do outro lado do parque. Matheus me beija enquanto segura meu rosto, ponho a mão em sua cintura, me entrego ao toque áspero de nossas línguas e à maciez de seus lábios. Por um momento fico inclinado com a força física que ele exerce contra mim, nossos corpos fazem um movimento de pêndulo e nossas línguas sincronizam de uma maneira tenra e ao mesmo tempo agressiva. Ao afastar o rosto, observo um raio branco que a luz do sol causa ao refletir na divisão entre sua íris e pupila, observo os poros do seu nariz e sua estrutura óssea. Seu rosto angular fica mais fino à medida que me aproximo. A nitidez do momento me causa sensibilidade, a riqueza dos detalhes pode escapar por completo da minha memória. Quero reter as imagens e as sensações, me sinto vivo. Me pergunto se o ato de viver só alcançará sua plenitude ao entrelaçar minha vida com a de outras pessoas. Me pergunto quantas vidas irei cruzar para que seja necessário viver a minha.


“Parece que tá tudo mais claro. Às vezes a gente força o organizar das coisas que só podem se alinhar de fora pra dentro”, ele fala com o rosto inclinado, observando uma semente entre os dedos. 


“Mas o que tá mais claro e o que se organizou?”, pergunto.


“Não sei… coisinhas internas que não são tão importantes”, diz Matheus de olhos semicerrados. “Mas o lugar… esse momento, sabe? Meio que aprumou tudo e foi bom.” 


Um silêncio paira entre nós. Por um momento, penso em fazer mais perguntas, mas não o faço. Não quero saber que coisas são essas; a dúvida me excita. Só quero observá-lo e aproveitar essa coisa que desponta lá no fundo.


O céu vai se imbuindo de uma tonalidade mais escura e o trânsito começa a ficar empachado. Um som abafado de maracatu soa ao longe sinalizando o início do Carnaval. Seguimos juntos até a saída do parque.


“Valeu pelo dia, hein”, falou. “Sempre bom te admirar.”


“Tu que é o bonito da relação”, digo em tom ambíguo. “Manda mensagem quando chegar.” 


Matheus faz um sinal positivo com o polegar. Seguimos em direções opostas e dou passos leves até o caminho de casa. Me sinto especial, mesmo sabendo que sou apenas um corpo no meio de outros milhares que reproduzem as mesmas sensações.


Ícaro, 2023. Leonardo A. Dresch. (Acervo Pessoal)

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