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Lucas Reis

As linguagens da memória em 'Uma das Marias'

Ensaio reflete sobre os impasses da representação da memória e da história da loucura a partir do curta-metragem Uma das Marias


Still do curta-metragem Uma das Marias

Imagem: Romã Atômica/Divulgação


Pensar a história da psiquiatria nacional — e, consequentemente, a história da loucura e dos dispositivos de biopoder na modernidade brasileira — implica pensar de forma detida sobre a experiência do Hospital Psiquiátrico do Juquery. Fundado em 1898, quando a medicina alienista dava seus primeiros passos em território nacional, o Juquery se tornou o hospício modelar para a medicina mental brasileira no início do século 20. Até o encerramento de suas atividades em abril de 2021, sua longa história foi marcada por abusos e torturas; viradas do “otimismo terapêutico” para empreitadas abertamente autoritárias e disputas políticas pelos direitos humanos. O curta-metragem Uma das Marias (2024), dirigido por Luca Scupino, vem apresentar uma nova perspectiva sobre o local, a partir das lembranças pessoais de Maria Hartmann, que atuou como enfermeira no hospital durante 36 anos. 


Desde o início, este filme levanta algumas perguntas fundamentais para os estudos da memória: Como contar o trauma? Como falar da sua própria dor e das dores de outros com as quais ela se entrelaça? Como elaborar a lembrança de uma ferida aberta cuja memória se estrutura sobre lacunas do esquecimento? Como narrar a loucura e recompor no discurso (literário, teatral, cinematográfico) uma experiência que, em sua essência, é reconhecida e separada das outras pela desordem que causa nos códigos da linguagem? Esses questionamentos complexos, sempre marcados pela aporia, serão abordados de diferentes formas ao longo dos três atos do filme. Cada um deles nos apresenta abordagens estéticas distintas por meio das quais a obra tentará recompor experiências ligadas ao Juquery, nos convidando a passar algum tempo nos limiares entre o pessoal e o coletivo, a história e a memória, o documentário e a ficção. 


À primeira vista, salta aos olhos a dimensão familiar da obra: as duas figuras principais do filme, Maria e Amara Hartmann, são avó e neta. Um dos principais cenários do curta é justamente a casa da família, cujos espaços são explorados cuidadosamente por uma câmera preocupada em mostrar como ali se passa o tempo cotidiano. Se o curta trata das memórias do espaço traumático, ele adentrará esse espaço por meio da experiência pessoal de uma mulher e de seus familiares. 


Na primeira parte do filme, "Raízes", a memória do Juquery se revela pelo testemunho. Este ato nos mostra um depoimento de Maria, sentada à porta da casa, como se conversasse com um conhecido. Tudo na composição dos planos remete a um senso muito terno de familiaridade: a senhora que fala enquadrada pelas paredes de sua casa, com a paisagem de sua cidade refletida nos vidros da janela, o cachorro dormindo ao fundo e um vaso de suculentas cascateando ao seu lado. Ocasionalmente, tomadas com a câmera na mão irão expandir esse senso de intimidade ao explorar as marcas do tempo inscritas na textura da pele daquela mulher.


O depoimento de Maria Hartmann

Imagem: Romã Atômica/Divulgação


É partindo dessa familiaridade que o filme pode recolher o testemunho de Maria das longas jornadas de trabalho na época em que o hospital atingiu sua lotação mais alta, com pacientes por vezes agressivos e práticas psiquiátricas questionáveis. Período que deixou em sua memória imagens traumáticas persistentes, alimentando sua insônia e tornando-a apática às dores cotidianas — "De tanto você ver coisas… você não tem sentimento, você não tem nada", nos diz Maria. Já se coloca aqui a dimensão aporética que marca toda prática testemunhal: pede-se que alguém fale para que possamos saber do passado, mas a dor de recordar o trauma faz a pessoa desejar esquecer aqueles acontecimentos.


O relato da experiência de Maria, ainda que marcado pelo sofrimento, não é apresentado de forma lúgubre: a encenação e a postura aberta dos entrevistadores respeita a leveza do senso de humor da entrevistada. Nesse processo, abre uma porta para que se revelem aspectos positivos de sua vida profissional no Juquery — o carinho maternal da enfermeira pelo interno Virgulino ou a oportunidade rara de estudar sob o fomento do estado. Não se trata, portanto, de promover um olhar de comiseração para a pessoa que fala, mas de criar um espaço de escuta para as ambivalências e as contradições de suas vivências. Mesmo o senso de intimidade da cena recebe seu contraponto quando o filme assume uma posição reflexiva, mostrando a materialidade das circunstâncias da tomada (a iluminação artificial, as câmeras filmando Maria, um certo olhar de desconforto que ela revela nos minutos finais da entrevista quando a equipe desmonta o set), friccionando o acalento do espaço doméstico com a tensão que se estabelece entre a pessoa filmada e o dispositivo de filmagem.


A segunda parte do filme, "Imagens do Juquery", tensiona a experiência vivida com as potencialidades expressivas da arte e da ficção. Este ato se abre com uma narração que, ao mesmo tempo, reconstitui a história do Juquery e confessa a impossibilidade de tornar palpável o que aconteceu naquele lugar. A voz, aqui, passa de uma Hartmann para a outra: é a jovem Amara que lê o texto. Ela tenta, sem sucesso, compreender e remontar aquilo que foi testemunhado por sua avó. Esse discurso é sobreposto a uma série de imagens das obras feitas pelos internos do Juquery em sessões de arteterapia. Se, inicialmente, aquelas pinturas parecem ilustrar as palavras enunciadas na banda sonora, pouco a pouco elas revelam algo que escapa à ordem da linguagem e do sentido, seguindo um movimento de sensações nos quais se revela justamente aquilo que a narração confessa não conseguir recompor: a experiência do encarceramento e da loucura que se inscreve na materialidade das obras de arte.


Diante da impossibilidade de recomposição da experiência, o filme nos traz outra proposta para lidar com a memória do Juquery: a ficcionalização. Apresenta-se um monólogo, "Prenda Clarissa", no qual Amara interpreta uma paciente do Juquery. A interpretação da atriz move-se entre um registro realista-psicológico e um registro reflexivo-épico, nos quais a personagem vai e vem entre sujeito do relato, em primeira pessoa, e objeto do relato, em terceira pessoa.  A delicadeza terna e solar do primeiro ato documental dá lugar, aqui, a uma estilização ficcional soturna e inquietante: a sequência é filmada diante de uma plateia vazia, em um palco teatral iluminado à chiaroscuro, com um cenário reduzido e artificial. — a tatilidade das florestas que vimos anteriormente é substituída pelos galhos e a moldura que substituem uma janela — neste ambiente, uma jovem paciente, sentada à mesa para jantar, conversa com uma enfermeira muda e quase imóvel, relatando experiências de neurose obsessiva e anorexia nervosa. A certa altura da cena, a personagem fala de sua relação tortuosa e imprevisível com a avó, que fora enfermeira de um hospício por 36 anos, e conta uma situação hostil que viveu com ela durante uma quarentena. Ao ouvir isso, a outra mulher se move pela primeira vez para confortá-la e retirá-la da mesa, em um plano que se dissolve na imagem do rosto de Maria. 


A poética da infamiliaridade no monólogo Prenda Clarissa

Imagem: Romã Atômica/Divulgação


A cena teatral emaranha temporalidades. Se toda a encenação remete ao passado do Juquery, que Amara confessara não conseguir atingir, as menções à pandemia de Covid-19 e à história de Maria remetem ao presente e a uma certa dimensão autobiográfica do texto — como se a atriz tentasse se colocar, a partir de sua experiência no presente, no lugar de uma pessoa que teria sido encarcerada no passado. Ela poderia ter sido, em outro tempo, uma das internas cujas histórias são contadas por sua avó. Compõe-se assim um exercício cênico que parte da impossibilidade de narrar o passado para construir uma outra imagem do Juquery, uma imaginação na qual a prática da alteridade produz uma reflexão sobre a natureza mutável do que se classifica sob o signo da loucura. 


O retorno à coletividade é central para o terceiro e último ato do filme, "O Último Trem", no qual Maria reencontra antigas colegas de trabalho no asilo para realizarem uma visita guiada ao Museu Osório César, instituição localizada dentro do complexo hospitalar dedicada a preservar e expor obras de arte produzidas pelos antigos pacientes do hospício. Antes presente apenas como descrição narrativa, figuração artística ou imagem captada à distância pela câmera, o espaço do Juquery torna-se próximo, presente. Nota-se novamente uma disjunção entre a aparência pacífica que o lugar apresenta hoje em dia e os horrores que o filme nos revelou terem acontecido ali. 


No decorrer da visita, os depoimentos das colegas de Maria expandem e complexificam o testemunho solitário visto no primeiro ato, inscrevendo a experiência pessoal daquela mulher numa rede coletiva dentro da qual a memória pode se elaborar. Acompanhamos também uma troca entre a equipe do Museu e as antigas funcionárias, na qual a narração das experiências do passado servirá como base para a criação de novas interpretações sobre as obras, criando novas relações que antes não seriam pensáveis.


As antigas funcionárias do Juquery visitam o Museu Osório César

Imagem: Romã Atômica/Divulgação


De certo modo, este ato irá operar uma síntese ou um encontro entre as abordagens apresentadas nos atos anteriores: a testemunha que batalha com as imagens de sua memória se vê em frente das imagens do Juquery feitas pelos internos, uma imagem elabora e reinterpreta a outra mutuamente. Quando, ao final do filme, Amara apresenta para Maria uma tela na qual ela pinta um dos prédios do Juquery, acompanhamos de perto o processo pelo qual a antiga enfermeira pode elaborar suas imagens em arte, cor e sensação. 


Se Uma das Marias oscila entre o familiar e o infamiliar, o afetuoso e o inquietante, a última imagem que o filme nos deixa é a do retorno à casa que exploramos tão minuciosamente no início, espaço complexificado e ressignificado pelo peso das histórias contadas pelas duas Hartmann, mas não por isso menos carregado de afeição. A escolha do filme, ao fim, é pela ternura: ainda que ela não seja capaz de fechar as feridas do passado, é ela a posição regeneradora a partir da qual pode se produzir algum esquecimento feliz.


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