Quem tem família grande vai entender: Alcarràs (2022), de Carla Simón, nem parece filme, está mais para um feriado em família. Filmado em um território rural da Catalunha, as paisagens do verão seco europeu nos revelam uma fazenda aparentemente simples, porém riquíssima quando prestamos atenção nas histórias dos Solé.
Dada como presente, a belíssima fazenda de pêssegos já está sob o comando da família Solé há gerações. Sem documentos que comprovem sua propriedade, eles são obrigados a entregar as terras ao seu dono por direito, que pretende devastar aqueles pomares e instalar painéis de energia solar. Não há nada a se fazer, é algo que foge do controle de qualquer um ali. Sem querer e sem pedir por nada disso, começamos a assistir um longo processo de despedida ao lado dos integrantes da família, um processo regado de negação, culpa, saudosismo ou mesmo indiferença.
É como se estivéssemos passando o tempo junto com eles, observando cada passo e cada momento com extrema proximidade e sensibilidade. Carla Simón e Daniela Cajías (que fez a fotografia) conseguem estabelecer uma relação tão próxima e imersiva que é possível notar os inter-relacionamentos dentro da família, as diferentes afinidades entre os personagens, seus problemas e dores individuais, além da visão, significado e importância de cada um quanto ao despejo, à fazenda e ao trabalho agrícola.
Aos poucos vamos entendendo e nos acostumando com os Solé, quase que montando uma árvore genealógica mental. Primeiro, somos apresentados à pequena Íris e seus dois primos, os três imersos naquele mundo da infância em que nada mais importa, apenas "O que vamos brincar agora?". Também nos deparamos com Mariona, uma adolescente bastante observadora e desesperada para sentir que faz parte de alguma coisa. Roger, o neto mais velho, é altamente responsável e nada faz além de dedicar seu tempo à fazenda, esperando algum tipo de aprovação inalcançável. Os irmãos Quimet, Nati e Glòria possuem aquela relação disfuncional típica, em que o tempo e a distância servem como calmantes para suas diferentes opiniões e valores.
E tem o avô, que é um personagem apaixonado por sua terra e suas histórias (que todos já estão cansados de ouvir). Dá pena de vê-lo caminhar sozinho pelos campos, quem sabe se lembrando e simultaneamente se despedindo de cada detalhe daquela fazenda. Não vou negar que me deu uma inveja enorme de sua relação com seus seis netos. Não vou negar que deu vontade de fazer parte daquilo, ajudar a colher os pêssegos e os figos, cuidar de cada fruta com tanto carinho, conhecer a terra e a natureza como se fizessem parte de mim. Que vontade repentina de acordar cedo e correr por aqueles campos como se eu fosse criança, tudo de novo.
Eu adorei Alcarràs. O filme é uma grande despedida, o fechamento de um ciclo e de um momento na história em que vão se lembrar, cada um de sua maneira, para o resto da vida. É um filme único pois nos faz sentir como se fizéssemos parte dele. Somos também obrigados a deixar aquele local. As belas paisagens e as brincadeiras das crianças são uma bela de uma distração enquanto acontecem dores individuais e a sensação de impotência em relação a algo inevitável.
Acho que a graça de Alcarràs é justamente o fato de ser uma união de individualidades que compõem uma grande família, são pequenas realidades dentro de uma grande realidade — uma realidade que está cada vez mais próxima. São pequenas histórias que se somam e se transformam na história em si. E assistir aquele pomar de histórias ser devastado por uma máquina escavadora é… bem, devastador.
que riqueza esses escritos! assisti esse filme mês passado e fiquei querendo alguém pra falar dele. fui profundamente atravessada pelas personalidades que contam essa história, achei lindo que falaste de cada uma delas, aqui <3 a forma como as personagens sentem e lidam, de modo particular, com o luto pelo fim eminente daquela ligação com o espaço, transformou, pra mim, a narrativa em uma experiência curiosíssima
me vi andando pela fazenda e sofrendo junto com toda família…ja vai pra listinha! Adorei!